entrevista de Bruno Lisboa
Nascido no Brooklyn, em Nova Iorque, Josh MacPhee é um artista, designer, ativista e autor cuja obra se destaca por seu engajamento com a política de esquerda e a arte de resistência. Ele é co-fundador do coletivo artístico Justseeds Artists’ Cooperative, iniciativa que tem se dedicado a apresentar como se dá à intersecção entre a cultura visual e a justiça social.
MacPhee é autor e editor de diversas publicações e, entre suas várias contribuições, uma merece destaque especial: o livro “An Encyclopedia of Political Record Labels”. Lançado em 2019, MacPhee mapeia nesse trabalho monumental a história de selos musicais ao redor do mundo que têm/tiveram como base a política e a luta por mudanças sociais, explorando a rica interconexão entre música, cultura e ativismo.
A editora paulistana Sob Influência pretende lançar uma edição revista e ampliada de “An Encyclopedia of Political Record Labels” no Brasil. Sob o título “Radical Records – Uma enciclopédia da música independente e lutas por libertação”, a obra tem como recorte selos e artistas que lançaram discos em formato vinil entre os anos 1960 e 1990 mostrando sua relação com movimentos sociais mundo à fora. Não é apenas uma compilação de selos, mas uma celebração da música como um poderoso instrumento de resistência e transformação social.
Marcelo Viegas e André Maleronka são os responsáveis, respectivamente, pela tradução e o prefácio da edição nacional que está em campanha de financiamento coletivo. Em entrevista concedida por email. Josh fala sobre as motivações de sua pesquisa, sua relação com o universo da música, a importância da interface entre música e política, a relevância de selos musicais na atualidade, os desafios da construção da enciclopédia, o mercado da música na era do streaming e muito (mas muito) mais. Confira!
O que te motivou a começar a documentar selos de discos políticos e por que você acha que este projeto é importante hoje?
Eu cresci envolvido na cena punk “faça você mesmo” aqui nos EUA na virada dos anos 1980 para os 1990. A música sempre foi política para mim, mas em meados dos anos 1990 fiquei desiludido com o punk e deixei a cena para me envolver mais diretamente com o ativismo e a organização política. Com o tempo, meu interesse pela música oscilou, e no final dos anos 2000 eu praticamente parei de ouvir música. Um algoritmo decidindo o que tocar a partir de uma pasta virtual de arquivos digitais transmitidos por alto-falantes de computador de som metálico e terrível fez a música se tornar – na melhor das hipóteses – um ruído de fundo que eu mal percebia.
Isso mudou em 2015, quando eu estava ajudando meus amigos Silvia Federici e George Caffentzis a limpar o apartamento deles aqui no Brooklyn. Silvia, uma acadêmica marxista feminista e uma das fundadoras do movimento Salários para o Trabalho Doméstico na década de 1970, estendeu a mão em seu armário, puxou uma pequena pilha de singles de 7” e os entregou a mim, dizendo que eu poderia me interessar e que eu poderia ficar com eles. Olhei através da pilha e encontrei essas capas incríveis de músicas com títulos como “Year of the Gun”, “Age of Rebellion” e “Let’s Take Over the City”! Os discos pareciam quase punk, e fiquei muito animado para levá-los para casa e ouvir. Muitos foram produzidos pelo grupo autonomista Lotta Continua (organização militante de extrema-esquerda italiana), outros – como “Anarchist Songs” e “Prisoners Songs” – eram do grupo de revival folk Cantacronache. Os discos definitivamente não eram punk, na verdade, muitos soavam como música folk americana em italiano (e alguns deles são exatamente isso, músicas de Buffy Saint-Marie com letras adaptadas).
Isso me levou a explorar a música folk, não a versão que nos foi empacotada nos EUA como um gênero musical – ou produto – melhor definido por Joan Baez e Bob Dylan, mas o significado original da raiz da palavra “folk” – a música do povo. Tantos países, regiões, movimentos trabalhistas e comunidades têm suas próprias tradições culturais folk ricas. E uma grande parte disso é a música. O revival dessas canções se tornou um elemento central de tantos movimentos sociais ao longo dos anos 1960, 70, 80 e 90.
Nas décadas de 1950, 60 e 70, essas tradições folk eram vistas como a base da resistência ao imperialismo e ao capitalismo. Infelizmente, agora elas parecem mais como formas de estilo que o capitalismo pode usar para nos vender produtos em um mercado digital sem atritos. Mas os discos de vinil nos mostraram que isso pode funcionar nos dois sentidos, que enquanto o rock’n’roll estava sendo exportado pelo mundo como uma forma empacotada de rebelião, localmente as pessoas estavam se organizando para produzir seus próprios discos e os usando para construir comunidades, economias e paisagens sonoras alternativas.
Seu livro abrange selos de várias partes do mundo. Houve alguma região ou país em particular que te surpreendeu pela quantidade de selos politicamente ativos?
Antes de trabalhar neste projeto, eu praticamente não conhecia nada sobre música do Sul Global, exceto reggae e um pouco de Fela (Kuti). O projeto abriu completamente meus ouvidos para um mundo inteiro de música e, mais especificamente, para algumas das complexidades da produção de discos em outras partes do mundo. Eu não tinha ideia do impacto profundo que a “nueva canción” chilena teve na música, não apenas na América Latina, mas em grande parte do mundo (aqui nos EUA, todos sabem quem é Bob Marley, mas poucos conhecem Victor Jara), e como a “nueva canción” gerou um universo inteiro de pequenos selos independentes na América Latina, centenas no Chile, Uruguai, Argentina, Peru e em todo o continente.
Isso, na verdade, traz à tona uma das ironias engraçadas de ter o livro publicado no Brasil. O projeto realmente examina a política através das condições materiais de produção e distribuição de música (portanto, o selo musical como foco central), em vez do conteúdo da música em si. Mas, ao contrário do Chile, no Brasil a ditadura e a estrutura da indústria fonográfica não permitiram a criação de selos independentes e politizados; em vez disso, músicos com inclinações políticas, como Gilberto Gil e Milton Nascimento, tiveram que, em grande parte, disfarçar suas políticas dentro da MPB mainstream, então o conteúdo era politizado, mas não a forma que tomava. Assim, muita música brasileira, embora politizada, não está representada no livro porque a política não fazia parte da estrutura física da produção musical.
Como você acha que os selos politizados influenciaram os movimentos sociais ao longo da história? Pode compartilhar alguns exemplos de iniciativas que tiveram um impacto nesse sentido?
Discos de vinil foram importantes ferramentas de agitação e organização para muitos movimentos na segunda metade do século XX. Do Movimento dos Direitos Civis nos EUA à luta pela liberdade no Chile, até o movimento anti-apartheid na África do Sul. Se voltarmos ao Chile, temos o exemplo incrível da DICAP, Discoteca del Cantar Popular, que foi criada por um grupo de jovens comunistas em 1968 e se expandiu para se tornar um dos selos mais importantes do país, antes de ser forçada ao exílio em 1973 com o golpe fascista. A música lançada pela DICAP foi central para o movimento da Unidade Popular e a eleição de Salvador Allende em 1970, e canções como “El Pueblo Unido, Jamás Será Vencido”, do Quilapayún, ainda são cantadas por movimentos populares ao redor do mundo.
Outro exemplo é a imensa produção de discos por sindicatos e organizações de trabalhadores. No Reino Unido, em meados dos anos 1980, dezenas de discos foram lançados para apoiar a greve massiva dos mineiros em todo o país. Alguns aumentavam a conscientização sobre a greve, outros criavam uma trilha sonora para as linhas de piquete, enquanto outros arrecadavam dinheiro muito necessário para fundos de greve—dinheiro usado para libertar trabalhadores presos ou alimentar crianças enquanto seus pais estavam fora do trabalho lutando por seus empregos.
Como qualquer forma de cultura, não existe um disco que possa ser apontado e anunciado: “este disco mudou o mundo”. A ideia é absurda. Mas a cultura, e a música especificamente, têm sido parte de quase todas as lutas, e selos como DICAP, e Paredon (nos EUA), Expression Spontanée (na França) ou Demos (na Dinamarca) todos contribuíram para muitas lutas, trabalhando lado a lado com organizadores, ativistas e até militantes armados.
Com o surgimento das plataformas digitais e dos serviços de streaming, você acha que o papel tradicional dos selos de discos mudou, especialmente os motivados politicamente?
Com certeza. Acho que muitos selos tiveram dificuldades no início dos anos 2000 para descobrir como fazer a transição de produzir objetos físicos (vinil, CDs, cassetes) para negociar acordos de streaming. Os selos que sobreviveram agora estão prensando vinis novamente, mas para serem relevantes também precisam defender seus músicos em relação à gestão de direitos digitais, ajudar a agendar turnês, etc. Acho que no passado os selos podiam mais facilmente defender projetos políticos, pois tratava-se de distribuir discos de vinil para um público mais amplo, construindo relações com lojas de discos físicas, trabalhando com outros selos para criar uma distribuição cooperativa, tudo isso essencialmente sendo projetos sociais, o mesmo tipo de organização que os movimentos políticos precisam fazer. Hoje é mais sobre descobrir algoritmos e postar conteúdo em plataformas privatizadas que não possuímos nem entendemos, o que é fundamentalmente antissocial, trabalho administrativo voltado a enriquecer ainda mais os ricos. Não tenho certeza se um selo de discos dos anos 2020 pode ser um projeto político da mesma forma que os selos eram nas décadas de 1960-90.
Lendo o livro é interessante perceber como a ideologia do DIY (faça você mesmo) moldou o cenário dos selos de discos políticos, para muito além da cultura punk. Você acha que esse ethos ainda está vivo na era digital?
O ethos DIY estava moldando o cenário da música muito antes do punk moderno! No final dos anos 1960/início dos anos 1970, pequenos selos independentes como DICAP (Chile), MNW (Suécia) e URC (Japão) estavam descobrindo como produzir música, fabricar vinil e construir sistemas de distribuição cooperativa fora da indústria musical convencional. Selos como esses e muitos outros experimentaram diferentes formas de propriedade e organização (propriedade dos músicos, propriedade coletiva e governança, financiamento por sindicatos e partidos políticos, etc.), desafiando a grande indústria em questões tão diversas quanto preços de varejo para discos, anti-copyright e royalties significativamente mais altos para os artistas. É difícil comparar aquela época com a atual. Esses selos estavam construindo suas próprias fábricas de prensagem – a coisa comparável hoje seria criar um serviço de streaming de propriedade cooperativa, rodando em uma fazenda de servidores movida a energia solar, construída em terras comunitárias. Isso parece quase impossível. E nem sei se é justo comparar. Prensar discos é bem diferente de construir uma internet alternativa! Mas eu espero que esses exemplos históricos incentivem os selos e as pessoas envolvidas na produção musical hoje a ultrapassar os limites do que aceitamos em termos de plataformas corporativas, sistemas de distribuição e canais de venda.
Sua pesquisa faz um belo apanhado de uma ampla gama de gêneros musicais que tiveram relação com selos com viés político de esquerda. Mas houve algum específico que lhe chamou mais atenção ou lhe surpreendeu? E ainda: por que você acha que eles se conectaram tanto com o ativismo?
Várias formas de música folk foram o sustento dos selos políticos durante o auge da produção de vinil. Isso provavelmente se deve a vários motivos: era o que as comunidades políticas que ouviam os discos estavam interessadas; era uma música que era mais fácil de integrar em reuniões, marchas e piquetes, pois não precisava necessariamente ser amplificada e o foco geralmente estava tanto nas letras quanto na música; e, finalmente, tudo isso estava acontecendo no contexto mais amplo de movimentos políticos internacionais como o Comintern (Internacional Comunista), que proclamava que a música folk era a única música legítima da revolução comunista que estava por vir.
Quais desafios você enfrentou ao pesquisar e compilar os selos para esta enciclopédia?
É justo dizer que, até recentemente, o público comprador de música nos Estados Unidos não estava exatamente interessado em diversidade. Muito poucas lojas de discos nos EUA antes dos anos 2000 tinham seções “internacionais”, e quando tinham, geralmente estavam abarrotadas de discos feitos nos EUA para comunidades imigrantes locais (ou seja, pilhas de discos de polca, cantores regionais italianos, schlager e músicas de Oktoberfest, etc.). Grande parte da música que me interessa nunca chegou aos EUA até recentemente, e é muito difícil de encontrar aqui. Além disso, embora muito tenha sido escrito sobre música dentro dos movimentos políticos, muito pouco foi escrito sobre a produção e distribuição de música nesse mesmo contexto. Portanto, há muito poucas fontes secundárias e as fontes primárias (os próprios discos) são muito difíceis de encontrar aqui. Então, basicamente, tive que comprar muitos discos de todo o mundo. Muitos dos discos em si eram baratos, mas o frete é um desastre! Não é exagero dizer que este livro não poderia ter sido feito sem algumas ferramentas online muito importantes: Discogs, Wikipedia e Google Tradutor.
Você acha que os selos de discos políticos são tão influentes hoje quanto eram no passado? Qual papel você vê para eles atualmente?
Definitivamente não. A música agora é amplamente distribuída em uma forma desmaterializada, o selo de discos é subsumido pelas plataformas online que as pessoas usam para encontrar música (Spotify, Apple Music, YouTube, SoundCloud, BandCamp, etc.). Agora, é o distribuidor que controla a indústria, o que torna muito difícil para um pequeno selo de discos políticos ter muita influência. Eles certamente podem ter um impacto em pequenas cenas, selos DIY como Riot Folk! tiveram um grande impacto em popularizar uma música acústica com espírito punk dentro de comunidades anarquistas e eco ativistas. Certamente, há pessoas que seguem religiosamente pequenos selos que produzem micro gêneros de hip hop, grime e outros tipos de música eletrônica –mas é difícil dizer qual é o impacto político disso.
Que mensagem você espera que os leitores tirem de “Radical Records” sobre a relação entre música e política?
Embora as tradições musicais sempre tenham surgido e evoluído a partir de comunidades regionais, de classe, gênero, raça e outras, é a produção e distribuição dessas tradições que tornam sua política visível e compreensível para audiências externas. A política da música não está simplesmente nas letras, ou na escolha de estar em um selo independente (ou não), mas em todas as milhares de decisões sobre como ela é escrita, gravada, produzida, fabricada e distribuída.
Como você vê o futuro das gravadoras políticas em um mundo onde artistas independentes podem lançar músicas sem a necessidade de gravadoras tradicionais?
Não tenho certeza se há um futuro claro para as gravadoras políticas. A desmaterialização da música pode significar que faz mais sentido para os artistas trabalharem diretamente com movimentos políticos para alcançar o público e experimentar novas formas de distribuição. Por exemplo, em vez de lançar um disco com uma gravadora para apoiar uma greve de trabalhadores, você poderia trabalhar diretamente com o sindicato para distribuir a música amplamente através de suas listas de e-mails, site e redes sociais. Honestamente, não vi muitas evidências de que muitas pessoas estejam pensando profundamente sobre a relação contemporânea entre música e movimentos, e talvez isso precise acontecer antes que possamos responder a essa pergunta!
Que conselho você daria para alguém interessado em começar uma gravadora política hoje?
Experimente diferentes formas de organização, propriedade e distribuição de música. Para este livro, foquei em discos de vinil entre 1955 e 1995 porque, durante esse período, o vinil era a principal forma de distribuição de música. Se você queria alcançar um grande público ou ter sua música tocada no rádio, o vinil era o caminho. Lançar discos de vinil hoje parece ser mais uma questão de nostalgia do que qualquer outra coisa. Hoje, o vinil é apenas uma pequena parte da economia musical e funciona tanto como símbolo de status e decoração de casa quanto como meio de transmitir som.
Por fim, há alguma diferença entre a última edição em inglês e a versão em português?
Sim, absolutamente! Além de ter corrigido erros que cometi na versão original em inglês, a edição da Sob Influência tem quase o dobro de gravadoras, além de uma introdução muito mais extensa. Embora eu adore a versão em inglês é justo dizer que essa nova versão em português é muito mais completa e está mais próxima do meu ideal.
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014. Escreve também no www.phono.com.br