texto de João Paulo Barreto
“Acredito que é o trabalho de um ator – e eu uso a palavra ator e não atriz, porque a palavra atriz não faz sentido – é evitar impedimentos ao seu desempenho. É função do ator lutar por 100% de eficácia. Naturalmente, nunca conseguimos, mas é a busca que é significativa”. A citação acima é da personagem infantil de Trudi Fraser, pequena atriz (ator?) que interpreta a garotinha tomada como refém por Rick Dalton no jovem clássico “Era uma vez… em Hollywood” (2019). Ler essa citação pode causar certa indignação pelo modo como Quentin Tarantino se refere à palavra “atriz” (segundo ele, a palavra ator engloba a labuta como um todo), mas a intenção aqui não é provocar, mas, sim, perceber o que ele chamou de “busca”.
Dito isso, é muito provável que algumas das críticas que serão publicadas sobre “Super/Man – A História de Christopher Reeve” (2024) salientem o aspecto relacionado à sintonia exata entre personagem e ator que, não com muita frequência, o cinema permite criar a partir de uma escolha perfeita de elenco e da citada busca pelos 100% no trabalho de atuação. Os exemplos não são muitos, mas, os que existem, trazem com admiração e assombro aquilo que a criação de um papel a partir do esforço da pessoa que vai encarná-lo o torna eterno. São exemplos como o Marlon Brando e Robert De Niro na pele de Don Corleone, Meryl Streep transformada em Sophie Zawistowski, Al Pacino sendo Scarface, Brad Pitt encarnando o anárquico Tyler Durden, Heath Ledger vivendo o Coringa… Personagem e ator em uma simbiose tão precisa que o rosto do seu intérprete se torna a nova face daquela figura fictícia – observe que excluo dessa seara papéis baseados em pessoas reais uma vez que a base de criação é outra.
Seguindo a ideia de equilíbrio quase esquizofrênico entre duas pessoas em um só corpo, o jovem Christopher D’Olier Reeve, aos 26 anos, em 1978, alcançou essa perfeição a partir de um personagem não somente fictício, mas alienígena e oriundo das páginas dos quadrinhos. Outros atores já haviam vivido o Super-Homem, mas nenhum deles conseguiu trazer ao espectador o convencimento de que era possível que apenas um par de óculos, uma postura curvada, um cabelo empapado com gel e um tom de voz levemente acelerado e inseguro o tornassem outra pessoa. Até que surgiu aquele jovem com 1 metro e 93 centímetros de altura, beleza e talento em uníssono, bem como um carisma que o tornaria um astro do cinema após anos de treinamento na prestigiada escola Julliard, em Nova York, e outros tantos em busca do sucesso em produções modestas de teatro e encenadas em palcos off-Broadway.
Mas seria a figura do Superman, um papel emblemático para cultura pop, que, para o bem ou para o mal, o tornaria algo além de um ator. O tornaria um símbolo. Tal símbolo, inicialmente, representaria uma ideia heroica e ideológica que muitos acusam de vender a nefasta influência estadunidense e imperialista pelo mundo. Cá pra nós, podem até soar demagogos os momentos em que, no filme, vemos o personagem de capa vermelha e collant azul falar sobre o ‘American Way of Life’, mas o conceito de esperança e fé no bem que o herói criado por Joe Shuster e Jerry Siegel em 1938, ainda no começo da Era de Ouro dos quadrinhos, traz em sua essência é algo que acabaria se mesclando à própria natureza de Christopher Reeve. O símbolo cultural se tornaria um símbolo de luta, resiliência e generosidade após o notório acidente de hipismo que o ator sofreu em maio de 1995 e que o deixaria paralisado do pescoço para baixo.
“Super/Man”, o documentário, ilustra, logo de cara, essa ascensão de Reeve ao estrelato como Super-Homem e, logo em seguida, nos mostra a mudança drástica que sua vida iria ter 17 anos depois da estreia do filme. A partir dessa apresentação, o filme de Ian Bonhôte e Peter Ettedgui segue uma estrutura bem convencional de documentário, inserindo falas das pessoas próximas ao ator, e utilizando imagens de arquivo para ilustrar sua fase inicial, ainda nos anos 1970, quando lutava no estágio preliminar de sua carreira. Mas a riqueza do tema e o fascínio trazido pela (re)construção da vida de Reeve após a tragédia que quase o matou (um acidente que o deixou tetraplégico em 1995, durante uma competição equestre), torna o documentário magnético. Existe a luta do ator em busca de outros papéis que comprovassem ainda mais o seu talento para além da capa vermelha. Existe a desconstrução do mito, quando o vemos falar sobre seu problema em assumir compromissos afetivos. Neste momento, com o depoimento de sua primeira esposa, o filme beira o sensacionalista. No entanto, consegue recuperar sua dignidade. Mas é o foco nos nove anos seguintes após seu acidente com o cavalo e os dias que antecederam sua morte em 2004, que torna o filme gigante.
Com o olhar voltado para a evolução da Fundação Christopher Reeve, que conseguiu aprovar leis junto ao governo dos Estados Unidos que viriam a beneficiar pessoas que viviam com o mesmo problema do ator, bem como arrecadar doações que aceleraram o financiamento e o desenvolvimento das pesquisas que permitiriam dar esperanças àqueles que desejavam voltar a andar, o documentário abre uma discussão mais ampla. Em certo momento, vemos o longa abordar as críticas recebidas por Reeve ao topar fazer um comercial no qual um modelo digital seu caminhava normalmente. Para muitas pessoas paralisadas, o ator estaria forçando a ideia de que só seria realmente feliz aqueles que conseguissem se movimentar de novo. Ciente de seu propósito, ele afirma que a inércia nunca faria dele uma vítima. Mas sua esposa, Dana Reeve, admitiu os problemas que a questão trouxe e afirmou que a fundação passaria a investir, também, em programas visando qualidade de vida.
À medida que o filme se aproxima de seu final, quando já sabemos como se encerrou, aos 52 anos, a vida do ator, a carga dramática à qual o espectador tem acesso é densa. Principalmente ao vermos como sua vida passou a ser dura depois daquele maio de 1995. Em “Superhomem – A Canção”, o mestre Gilberto Gil fala sobre o alienígena “restituir a glória, mudando como um deus o curso da história”, em uma referência ao filme de Richard Donner, quando o herói faz o tempo voltar ao alterar a rotação da Terra visando salvar sua amada. Em um acalentador exercício de imaginação ao sair do cinema, impossível não pensarmos na mesma possibilidade de mudar o passado e salvar a integridade física de Christopher Reeve ao impedi-lo de sofrer aquela queda há quase três décadas. Os bons partem cedo.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador.