Três filmes da 48ª Mostra SP: “Grand Tour”, “Demba”, “Flathead”

textos de Leandro Luz

“Grand Tour”, de Miguel Gomes (2024)
Há uma suposta postura descompromissada em “Grand Tour” (2024), por mais que o diretor Miguel Gomes e sua equipe deixem evidente o tamanho da elaboração visual e sonora empreendida. Inconsistente, o filme flutua entre 1918 e o tempo presente, entre o colorido e o preto e branco para narrar a jornada de Edward (Gonçalo Waddington), um funcionário público do Império Britânico que viaja pelo continente asiático em fuga. De quem ele foge? De Molly (Crista Alfaiate), sua noiva, personagem que dominará a segunda metade do filme, passeando pelos mesmos espaços sem jamais encontrar seu amado fujão. Gomes filma Alfaiate como a sua Giulietta Masina (os grandes olhos e uma risada peculiar suscitam a comparação). Apático e melancólico, o protagonista masculino é facilmente suplantado pela presença da moça, responsável por trazer um sopro de vida para um filme que vinha se perdendo em suas belas composições. A propósito, vale destacar uma curiosidade a respeito da produção empreendida por Miguel Gomes. Para rodar “Grand Tour”, o diretor português reuniu dois fotógrafos que haviam trabalhado com ele anteriormente: seu conterrâneo Rui Poças, parceiro em “Aquele Querido Mês de Agosto” (2008) e “Tabu” (2012), que ficou responsável por filmar as cenas em estúdio, e o tailandês Sayombhu Mukdeeprom, que assina a fotografia da trilogia “As Mil e Uma Noites” (2015), enviado para filmar em locação na viagem pela Ásia; além deles, um terceiro fotógrafo foi contratado, Gui Liang, pois em virtude das restrições causadas pela pandemia da Covid-19 Gomes e sua produção precisou comandar parte das filmagens remotamente. Essa fragmentação no departamento de fotografia revela um jogo com a improvisação que é bastante caro ao filme. Gomes afirma que o projeto nasceu da vontade de empreender essa viagem, e que o roteiro – escrito a oito mãos por Maureen Fazendeiro, Telmo Churro, Mariana Ricardo e Miguel Gomes – foi sendo desenvolvido na medida em que a pesquisa e as rodagens se materializavam. Em resumo, “Grand Tour” é uma obra um tanto anacrônica, perdida em seu delírio estético, mas ainda capaz de hipnotizar muita gente.


“Demba”, de Mamadou Dia (2024)
Na tentativa de amarrar discussões sobre luto, solidão e relacionamento paterno, “Demba” (2024) se atrapalha um pouco e joga muitas ideias no caldeirão sem saber exatamente como lidar com tudo ao mesmo tempo. O protagonista, no entanto, é bem forte e a maneira como o senegalês Mamadou Dia filma a sua confusão psíquica faz valer a sessão. Na trama, Demba está prestes a se aposentar após três décadas de trabalho na prefeitura de uma cidade ao norte do Senegal. Ao mesmo tempo em que tenta lidar com o luto pela morte da esposa, prestes a completar dois anos, ele também se vê pressionado a estabelecer uma relação mais próxima com o filho, que mesmo amargurado se esforça para se conectar com o pai. Um esforço, aliás, de mão única, porque Demba não consegue se desvencilhar da depressão e do que parece ser o desenvolvimento de uma psicose que muda a sua percepção do mundo. O diretor filma essa alteração de percepção da realidade adotando elementos visuais interessantes, com enquadramentos que aproveitam bem a razão de aspecto ampla, tanto quando filma as suas personagens em planos médios ou abertos, valorizando as belas locações ao fundo, quanto nos closes, que demonstram um controle fino do trabalho de iluminação. A direção de fotografia alterna entre um registro naturalista, aliado ao imaginário difundido do cinema feito por cineastas de países africanos, e uma abordagem mais solta, que flerta com o realismo mágico – são nessas horas que o filme aponta para algo novo, ainda que enquadrado, sobretudo na maneira como articula determinado ponto de virada do roteiro, em uma cartilha de festivais que não o deixa crescer. A cena final, com Demba, seu filho e demais habitantes da cidade caminhando à noite numa espécie de procissão, cria uma ponte interessante para o arco do protagonista, que mesmo imerso em sua tristeza e solidão ainda é capaz de vislumbrar um mundo compartilhado.


“Flathead”, de Jaydon Martin (2024)
Longa-metragem de estreia do diretor australiano Jaydon Martin, “Flathead” investiga o universo da classe trabalhadora de seu país por meio do cotidiano de dois personagens: Cass, um senhor de saúde debilitada que deixa Sydney em direção a Bundaberg, sua cidade natal, e Andrew, um homem de meia idade de origem chinesa que trabalha em uma lanchonete e precisa enfrentar a morte repentina do pai. O retrato que Martin faz dessas duas figuras anônimas suscita interesse suficiente para carregar o filme pelos seus quase 90 minutos, e a escolha por incorporar a paisagem como elemento motor da narrativa contribui imensamente. Quando acerta, o documentário é capaz de conquistar o coração do espectador pelas rigorosas imagens bem compostas e pela atenção aos detalhes – poucos cineastas se interessariam em filmar, por exemplo, uma conversa despretensiosa entre um boêmio local e um senhor de idade hospedado em um motel de beira de estrada. Cass conta de seu passado nômade, de sua relação intensa com as drogas e das mudanças em seu estilo de vida quando teve o seu primeiro filho. Se abre completamente para o amigo que acaba de conhecer e, logo, também para o filme. No entanto, quando erra, vem à tona aquela impressão de “já vi isso antes” que quase põe tudo a perder. Ao operar em boa parte do tempo como um road movie, “Flathead” muitas vezes soa genérico, sem conseguir trazer para o movimento da viagem o mesmo frescor da oratória de suas personagens. Filmar a classe trabalhadora australiana em preto e branco, refletir acerca do envelhecimento e falar de luto são os interesses do diretor, que por vezes se perde em algumas digressões, sobretudo quando se envereda para a coisa religiosa, com Cass e Andrew demonstrando, cada um à sua maneira, como se relacionam com a espiritualidade. Digressões essas que, em contrapartida, são também o grande charme do filme.

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– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

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