Música: Com o derradeiro “Fate & Alcohol”, Japandroids se despede fazendo o que sempre fizeram de melhor

texto de Davi Caro

Vista com certa perspectiva, toda a trajetória do Japandroids poderia ser considerada um feliz acidente. O duo canadense formado por Brian King (vocais e guitarra) e David Prowse (bateria e backing vocals) construiu uma robusta e respeitável carreira desde sua incepção, em 2006, ainda que tão surpreendente quanto inesperada: seu primeiro disco, “Post-Nothing” (2009), foi inicialmente concebido como uma espécie de despedida, uma conclusão a três anos de infrutíferas tentativas de despontar em meio à cena local de Vancouver e arredores. Mas, de modo inesperado, o álbum acabou conquistando audiências muito além de sua terra natal, e quase acidentalmente acabou gerando interesse pela sonoridade “Springsteen-via-Replacements” tão bem personificada por uma dupla que já se mostrava pronta para jogar a toalha. 15 anos, dois discos de estúdio (um deles, o excelente “Celebration Rock”, de 2012), um registro ao vivo e uma coletânea depois, cá estão eles de novo, com um novo disco. Ele se chama “Fate & Alcohol” (2024) e, longe de ser um acaso do destino ou uma resoluta admissão de derrota, é, de fato, o último trabalho da banda.

“Fate & Alcohol” é o sucessor do malcompreendido “Near To The Wild Heart Of Life” (2017). De fato, o último lançamento dos dois músicos antes deste derradeiro disco foi a gravação ao vivo “Massey Fuckin’ Hall” (2020), que expôs a inconveniente verdade por trás do triunfal som aperfeiçoado pelo duo em estúdio: a perfeição dos arranjos, somados aos contagiantes backing vocals e “whoa-oh-oh”s que a banda transformou em marca registrada era, afinal, muito difícil de replicar ao vivo, mesmo em um ambiente cheio de fãs ardorosos (quem os viu ao vivo na abertura da turnê de “Celebration Rock”, em março de 2012, na Casa do Mancha, sabe bem disso). A quebra da “ilusão” de perfeição musical pode ter sido, assim, a gota d’água para muitos dos seguidores, agora impossibilitados de ignorar a fragilidade das apresentações ao vivo de canções do calibre de “Fire’s Highway” ou “Wet Hair” – por isso não deixa de ser revelador que o novo trabalho venha desacompanhado de uma turnê.

De toda forma, “Fate & Alcohol” leva a um questionamento intrusivo, porém coerente: como soam, afinal, os Japandroids, quando forçados a confrontar o próprio senso de maturidade e finitude? Desde a primeira faixa, “Eye Contact High”, os experimentos com outros instrumentos e andamentos, tão integrais a seu disco de estúdio anterior, parecem ter sido deixados de lado em favor da essência instrumental da dupla. Guitarras aceleradas e bateria frenética tal qual uma velha canção do Superchunk, com direito a vocais de King muito mais revigorados do que derrotados – além, claro, dos tradicionais backings. É uma das canções que melhor poderia soar ao vivo, apesar das já citadas limitações. Outro caso de canção feita para os palcos, “Upon Sober Reflection” é, desde o título, uma das maiores provas da maturidade musical e profissional alcançada pela dupla. Com um andamento que lembra, a princípio, a clássica “The House That Heaven Built”, os tempos rápidos dão lugar a partes mais cadenciadas e melódicas, que fazem jus às letras mais reflexivas. “Reflexivas”, aliás, é uma palavra que poderia ser utilizada para descrever pelo menos duas das melhores faixas do novo disco: ao mesmo tempo em que “Fugitive Summer” traz algumas das melhores linhas de guitarra de Brian em todo o catálogo da banda (um testamento ao perfeccionismo do músico quanto às gravações de estúdio), “Positively 34th Street” é quase folk em seu arranjo de guitarras, e é uma chance para Prowse brilhar em suas discretas, embora super acertadas, linhas de bateria.

Melodias, inclusive, são presentes em abundância aqui: a segunda faixa do trabalho (e segundo single), “D&T” remonta à propulsiva “Younger Us”, com divertidas e autorreferentes quebras no meio da canção. “Chicago”, por sua vez, é uma das mais singulares canções do álbum, fazendo uso de cadências que aproximam os Japandroids de muitas das bandas que os antecederam (a escolha da faixa como primeira canção de trabalho diz muito). “Alice” é o grande momento de David Prowse no disco, com o instrumentista conduzindo a faixa com versatilidade e até certo minimalismo – do tipo que seria impensável desta mesma banda há uma década. Mas não demora muito para que a boa e velha fórmula volte à tona. “A Gaslight Anthem” traz o baterista nos vocais, e poderia muito bem haver figurado na coletânea “No Singles” (2010). A finalização do disco, com a dobradinha “One Without the Other”/”All Bets Are Off”, é redentora e libertadora, com o que parecem ser discretos, porém bonitos, sons de sintetizador na primeira, e letras impressionistas e ritmos cadenciados na segunda, ajudando a lembrar da catarse de “Continuous Thunder” (do disco de 2012).

Quem busca grandes transformações musicais ou risco artístico talvez se decepcione com a resolução de “Fate & Alcohol”: afinal, ao longo das últimas duas décadas, não foram muitas as bandas capazes de acertar em uma sonoridade e aperfeiçoá-la com tanta distinção quanto os Japandroids. Mais do que salientar a simplicidade de seus arranjos ou mesmo de sua formação, o duo parece ter assumido para si a missão de provar fazer música punk (ou, ao menos, adjacente ao punk rock) bem feita não é tão fácil quanto possa parecer. Nada demanda mais esforço do que demonstrar espontaneidade frente a multidões – se esse fosse o único legado a ser levado por Brian King e David Prowse, a dupla talvez já pudesse se aposentar com tranquilidade e a sensação de dever cumprido. O mérito de ter conseguido uma respeitável discografia (agraciada com pelo menos um disco verdadeiramente transformador e impactante) e ter conquistado públicos em diferentes continentes não é nada mal para uma dupla que mal conseguia se ver saindo da área em que habitava. Nós, do lado de cá, ficamos com um ótimo catálogo de canções, e as memórias de uma banda capaz de mostrar vitalidade mesmo em meio às mais desafiadoras e adversas situações. Ainda mais em tempos atuais, afinal, o que mais há para se esperar, ou querer, de uma banda?

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.

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