texto de Leandro Luz
Na última sequência de “Ainda Estou Aqui” (Walter Salles, 2024), Fernanda Montenegro, que interpreta Eunice Paiva nos últimos anos de sua vida, com a doença de Alzheimer já bem avançada e se locomovendo com o auxílio de cadeira de rodas, olha para um bebê, o membro mais jovem de sua família, como quem tenta desesperadamente se conectar com algum fio de realidade. Pouco depois desse momento delicado, que Salles registra metodicamente com a sua câmera – sempre atenta às mínimas expressões faciais de seus atores – a personagem é surpreendida por uma reportagem na televisão que relembra notórias vítimas da Ditadura Militar. Entre as imagens e as fotografias está lá o rosto de Rubens, seu marido assassinado dentro de um quartel nos anos 1970. Somos capazes de enxergar as engrenagens funcionando por trás da pele, dos músculos e dos ossos da atriz, que com o seu olhar confuso e a sua expressão exasperada parece dizer “ainda estou aqui”.
É a mesma coisa que Marcelo, um dos filhos de Eunice e Rubens, interpretado nesta cena por Antonio Saboia, também aparenta afirmar. O posar para a foto de família, gesto recorrente no filme, dessa vez captura o olhar de Marcelo para a mãe. Ninguém mais enxerga Eunice como antes, à exceção de Marcelo, que lhe dedica um olhar demorado, cúmplice – eles são os únicos que estão na mesma altura. “Ainda Estou Aqui” é baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva sobre a sua família, o assassinato do pai e a fortaleza que a sua mãe precisou construir dentro de si mesma para enfrentar anos de luta denunciando os crimes cometidos durante a Ditadura e brigando arduamente por respostas que nunca vieram de maneira satisfatória. Nesse sentido, o olhar de Marcelo para Eunice é a maneira que o filme encontrou para nos dizer, no lugar do autor desta história/desse ponto de vista, “ainda estou aqui”.
Ao passo que Eunice, interpretada também por Fernanda Torres na maior parte do filme, n’outro gesto fotográfico marcante de reunião familiar, sorri e tenta garantir que todos os seus filhos também sorriam – ainda que os jornalistas peçam o contrário – para a foto que ilustrará a capa de uma matéria a respeito dos trágicos acontecimentos na família. “Ainda estamos aqui”, a materialidade da foto nos diz – tanto a foto encenada quanto a real, revelada nos créditos finais.
Esse jogo entre a realidade e a ficção, aliás, faz parte de uma tradição do cinema brasileiro que Walter Salles sabe se aliar. No entanto, diante da repercussão em Veneza (prêmio de melhor roteiro para Murilo Hauser e Heitor Lorega), da campanha para o Oscar e do burburinho que o filme tem causado no Brasil, o que faz de “Ainda Estou Aqui” um filme que se diferencia tanto assim de outras produções brasileiras recentes? Não estaria Walter Salles, no retrato que faz da juventude dos anos 1970, próximo ao que Kleber Mendonça Filho faz em “Aquarius” ao retratar a juventude dos anos 1980, por exemplo? A cena do carcereiro que trata Eunice com respeito na prisão não estaria muito próxima da discussão central de “O Mensageiro”, filme mais recente e pouquíssimo comentado de Lucia Murat? (Ambos os filmes, inclusive, compartilham o talento da jovem atriz Valentina Herszage).
É um espanto que as principais discussões em torno dos filmes hoje em dia sejam pautadas quase que exclusivamente pelo marketing, como se obras com maior investimento na produção ou na divulgação merecessem maior atenção do público do que aquelas de financiamento mais modesto. A título de comparação, considerando o próprio cinema da Lucia Murat, a despeito das gritantes diferenças orçamentárias que se fazem perceber principalmente no design de produção e na liberdade que isto proporciona a cada cineasta (em um filme de época, filmar um quarteirão inteiro ou um cômodo de uma casa é uma questão orçamentária, não de estilo), no que Salles avança? Estaria ele tão à frente em termos de construção narrativa ou dramatúrgica? Não que o filme de Salles devesse fazer muito mais do que faz (particularmente, acho ótimo que este seja um filme relativamente simples, direto, seco, carregado de uma tristeza e de uma solidão profundas), mas daí a enquadrá-lo em qualquer espécie de grande cinema soa exagerado.
Para Salles, não havia como narrar os eventos da família Paiva sem sujar as mãos na poeira acumulada dos arquivos. Tanto é que ele lança mão de registros de todos os tipos e bitolas: o Super-8 que captura os eventos familiares, as fotos de família manipuladas por vários personagens em momentos diversos (e com funções e resultados distintos), as imagens em 16 mm típicas de documentários que salvaguardaram esse momento histórico e trágico do país; tudo isso se mistura com a própria fotografia do filme, assinada por Adrian Teijido, e que desconfio (apesar de não ter conseguido confirmar) ter sido feita em 35 mm. Aliás, a estratégia de lançamento do filme prioriza a exibição nos cinemas, e por mais que este seja um “original Globoplay”, percebe-se um desejo, tanto nos depoimentos de Salles quanto nos materiais de publicidade, que ele seja visto na sala escura (o filme estreia no dia 7 de novembro no circuito comercial brasileiro).
Ainda comentando a fotografia de Teijido, a melhor sequência é rodada com pouquíssima iluminação, quando o filme se transforma brevemente em um thriller e Eunice, após o marido ser levado por militares à paisana, se vê presa dentro de sua própria casa, antes repleta de luz, brisa e alegria, agora relegada ao breu quase completo. Se antes a casa, localizada em um privilegiado quarteirão da Zona Sul carioca, estava sempre tomada pelos gritos das crianças e dos adolescentes e pelo vai-e-vem de familiares e amigos com os pés sujos de areia da praia, agora o que vemos são sombras que evocam a ausência de Rubens. Lágrima no escuro. Salles, desse momento em diante, passa a valorizar cada vez mais os espaços vazios da casa, que por sua vez espelham a angústia da protagonista, abandonada pelo estado brasileiro e, de certo modo, por todos ao seu redor. Não há ponto de fuga ou luz no fim do túnel para Eunice. Fernanda Torres se agarra a esse cenário imposto à sua personagem e de fato consegue trazer nuances bem interessantes, ajudada pela presença de veteranos como Selton Mello, Helena Albergaria e Dan Stulbach, e de jovens atores como Bárbara Luz, Guilherme Silveira e Maitê Padilha.
Ao pensar no elenco, fica mesmo a impressão de que “Ainda Estou Aqui” é um filme que privilegia o trabalho com os atores em detrimento de qualquer outro elemento narrativo ou de estilo. Walter Salles sabe que está em diálogo com uma fatia considerável do público brasileiro e toma todas as precauções para não fugir de uma cartilha convencional. Às vezes, tal abordagem faz todo o sentido, como na própria concepção e no desenvolvimento da protagonista, já em outras soa limitadora, como em todas as vezes que precisa apelar para as referências pop setentistas ou quando se vê impelido a tirar “retratos do Brasil”, evidenciando algo que o cinema de Walter Salles, apesar de frequentemente muito incensado, nunca deixou de ser.
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– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.
Ótimo texto. É um filme cujo tema me interessa muito.