Três shows: Bebel Gilberto, Ludovic, Eric Clapton

Bebel Gilberto ao vivo Sesc Pinheiros (27/09)
texto por Bruno Capelas / fotos de Fernando Yokota

Lançado em 2023, o disco “João” trouxe uma faceta de Bebel Gilberto que muita gente esperava ver há tempos: uma homenagem da filha de João Gilberto (e Miúcha) ao repertório eternizado pelo pai, entre standards da bossa nova (“Desafinado”, “Ela é Carioca”) e deliciosos lados-B (“Undiú”, “É Preciso Perdoar”, “Adeus América”). Quase um ano depois, Bebel finalmente veio ao Brasil para apresentar o disco. Ou quase: o texto de anúncio do espetáculo no Sesc Pinheiros prometia a turnê do álbum, mas o que a cantora ofereceu mesmo foi uma retrospectiva de sua carreira. O tributo apareceu primeiro e rapidamente, com as delicadas releituras de “Adeus América”, “Desafinado” e “É Preciso Perdoar” e Bebel brigando com a iluminação do espaço, insistindo em se movimentar fora das zonas demarcadas pelos holofotes do teatro Paulo Autran. Outra briga foi com o cabo do microfone com o fio, o que provocou momentos engraçados – como a hora em que a cantora negava o refrão de “Sem Contenção” ao ser justamente contida pelo tamanho do fio. Não que isso tenha afetado o bom humor da noite: em belo vestido de grife, Bebel esbanjou carisma e espontaneidade (até demais) ao revisitar sua discografia cheia de eletrobossas (“Aganju”, “So Nice (Summer Samba)”) e baladas delicadas (“Mais Feliz”, “Preciso Dizer Que Te Amo”), além de uma versão cativante de “Harvest Moon”, de Neil Young. Negando o DNA paterno, ela ainda atendeu a um pedido da plateia, que insistiu em ouvir “O Pato”. “O pato já se afogou, mas se quiser a gente canta”, brincou Bebel. Não foi o único bicho a aparecer na noite: no número final, já acompanhada pelo também herdeiro Pedro Baby ao violão, a artista abriu espaço para sua cachorra Ella dar um passeio no palco enquanto executava “Samba da Bênção”. Ao final, teve ainda uma versão suingada de “Bananeira”, encerrando uma apresentação tão divertida quanto excêntrica (tal qual a entrevista que ela nos concedeu) – e que reforçou que, entre vícios e virtudes e sem precisar de nepotismo, Bebel Gilberto tem seu lugar marcado na história da canção brasileira.


Ludovic ao vivo no City Lights Music Hall (28/09)
texto por Bruno Capelas / fotos de Fernando Yokota

Há um fenômeno muito especial e raro na música dos nossos tempos: a existência de bandas que, independentemente do tamanho de público que alcancem, possuem a capacidade de transformar seus shows em verdadeiro ato religioso. Patinho feio de sua geração, a ponto de achar que falavam um “idioma morto”, o Ludovic se transformou ao longo de duas décadas em uma dessas bandas de culto. No último sábado, em São Paulo, foi possível conferir não só mais uma manifestação da fé no rock triste, mas também uma renovação dos fiéis nesta crença, com um público que ia de poucos cabelos grisalhos até jovens que não tinham nem nascido quando a banda lançou “Servil”, há exatos 20 anos – o disco, aliás, foi relançado em vinil recentemente pela Balaclava, o que motivou turnê recente do Ludovic pelo Brasil. Com 45 minutos de atraso, a espinha dorsal do Ludovic – Jair Naves, Eduardo Praça e Zeek Underwood – subiram ao palco ao lado do convidado Rodrigo Montorso (bateria) para reencarnar a boa e velha mistura de post-punk com hardcore e algumas pitadas de psicopatia, cortesia do sempre emocional Jair ao microfone. O show começou em um ritmo correto, com “Boas Sementes, Bons Frutos” e “Um Grande Nó”, mas bastaram as primeiras notas de “Eu Fiz Pouco Caso de Um Gênio” soarem para que a devoção corresse solta pelo espaço do City Lights, em meio a inúmeras e gigantes rodas de mosh. Com sorriso de orelha a orelha, a banda devolvia em entrega e declarações de amor. “Eu tenho pensado muito sobre o conceito de casa, que tem a ver com as pessoas que você ama”, disse o recém-repatriado Jair, muito à vontade em São Paulo. Em meio a hits e pedradas como “Janeiro Continua Sendo O Pior dos Meses”, “Desova” e “Vane Vane Vane”, ele pediu aos presentes cuidado (“que ninguém saia machucado daqui”) e consciência no voto (“domingo que vem é um dia vital, talvez fatal para a cidade de São Paulo. Pode ser nossa última chance”), enquanto destilava vigor nos vocais. Enquanto isso, Eduardo Praça e Zeek Underwood contrapunham elegância e energia nas guitarras, em um jogo muito bem seguro pela performance potente de Montorso na bateria. No bis, depois de “Inexorcizável” e “CVV”, e já com Fernando Sanches no baixo, Jair converteu o show em experiência transcendental: “Essa é nossa última música e se você sabe a letra dela, o palco é seu”, disse ao introduzir “Você Sempre Terá Alguém A Seus Pés”. Foi a deixa para artista virar público, sendo carregado em perfeito stage dive, e público virar artista, com o microfone rodando de mão em mão berrando “grande bosta!”. Amém.


Eric Clapton ao vivo no Allianz Parque (29/09)
textopor Bruno Capelas / fotos de Stephan Solon (Divulgação)

Comemorando 60 anos de carreira, Eric Clapton encerrou na noite do último domingo, 29, sua quarta turnê pelo Brasil. Foram quatro shows: um em Curitiba, outro no Rio de Janeiro e dois em São Paulo, sendo o primeiro num local fechado, o Vibra São Paulo e o segundo no Allianz Parque. Mas, a despeito de não passar por aqui há 13 anos, pouca coisa mudou no espetáculo de Clapton – a começar pelo show de abertura, novamente comandado pela “eterna promessa” Gary Clark Jr.. O que também não mudou é a predileção de Clapton por um repertório que alterna momentos acústicos e elétricos, sempre pegando a velha estrada do blues, com pequenas paradas pelo country e pelo folk. É música bastante tradicional, sem muitos efeitos especiais nem pirotecnia. De um lado, é preciso dizer que é interessante ver uma proposta tão convencional encher um estádio inteiro. O show de domingo tinha ingressos esgotados, a despeito das inúmeras estúpidas declarações do artista contra a vacina da Covid-19 e o distanciamento social. Por outro lado, a viagem pela estrada de Eric Clapton se parece muito mais com uma monótona autoestrada do que com uma sinuosa rodovia, impressão parcialmente influenciada pelo som baixo emitido pelo sistema do estádio, que chegou até mesmo a ser encoberto pelas conversas na pista premium em alguns momentos. É preciso dizer que velocidade nunca foi exatamente o forte do homem que ganhou o apelido de “mãos lentas”. Mas, seja nos números do Cream (“Sunshine of Your Love”, “Badge”), nos momentos mais blueseiros (“Hoochie Coochie Man”, “Crossroad Blues”) ou nos hits de FM (“Change the World”, “Tears in Heaven”), o guitarrista parece nada afeito a pisar no acelerador e incendiar uma sedenta plateia. Mais: a não ser por um discreto “obrigado”, a interação de Clapton com o público é praticamente nula, como se estivesse tocando para um estádio vazio. Ao longo de uma hora e quarenta minutos, o inglês que já foi chamado de Deus faz o mínimo que se espera dele: exibe bons solos, abre espaço para sua banda e faz o melhor que pode para cantar seus sucessos – ainda que a lista de ausências (“Layla”, “Wonderful Tonight”, “After Midnight”, “Lay Down Sally”…) seja considerável. Até mesmo na hora de se posicionar, ao envergar uma guitarra com a bandeira da Palestina no bis de “Before You Accuse Me”, Clapton mantém certo caráter protocolar. Se esta é mesmo a turnê de aposentadoria do guitarrista, é difícil saber. Mas em tempos de capitalismo tardio, chega a ser difícil torcer por uma próxima oportunidade. Quem sabe na sétima década de carreira, esse deus demasiadamente humano finalmente possa descansar deitado em uma rede. 


– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne. A foto que abre o texto (Fin del Mundo) é de e Bruno Carachesti



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