texto de Davi Caro
É um privilégio muito grande viver no mesmo mundo que Charly García. Ainda que tal sorte possa passar despercebida por muitos brasileiros menos familiarizados com a obra do cantor e compositor argentino, trata-se de um sentimento que entrecorta os pouco mais de 34 minutos de duração de “La Lógica del Escorpión” (2024), mais novo disco lançado pelo artista – e o primeiro desde “Random”, que data de um já distante 2017. A experiência de escutar um novo álbum do gênio bonaerense, que outrora pareceu tão improvável quanto supérflua, segue sendo igualmente reveladora e reconfortante, principalmente quando se leva em consideração o longo caminho percorrido até o lançamento, bem como os inúmeros percalços enfrentados neste meio tempo.
Remontando originalmente ao período pré-pandêmico, a preparação do disco se iniciou com a seleção de material para as gravações, ainda que algumas das canções aqui presentes já tenham marcado presença, de uma forma ou de outra, ao longo das mais de cinco décadas de atividade musical de Charly. Os problemas de mobilidade enfrentados por García, bem como questões de saúde resultantes de anos de estrada e abusos, acabaram atrasando o lançamento do novo repertório. Já em tempos mais recentes, se rumorizava que incluiria versões de outros artistas – algo que poderia ter contribuído para o arrastado processo que se concretizou, finalmente, no primeiro semestre de 2024, com o anúncio oficial de uma data de lançamento sendo o suficiente para despertar a curiosidade e a felicidade dos milhares de fãs do compositor. E a expectativa valeu a pena: com título e conceito derivados de uma famosa fábula, “La Lógica del Escorpión” traz um Charly revitalizado, ancorado pelo aporte do engenheiro de gravação Matias Sznaider e dos antigos músicos de apoio Fernando Samalea e Fabián Quintiero, e fazendo uso de um repertório que mapeia seu passado com boas doses de irreverência, mas sem apego.
O novo repertório pode ser dividido em dois grupos: o das canções inéditas compostas desde seu último lançamento, e o de releituras de composições antigas, muitas delas trabalhadas anteriormente por García junto a suas bandas e parceiros. Entre estas últimas, poucas poderiam se firmar como uma abertura melhor do que “Rompela”, com riffs pesados que remontam à clássica “Cerca de La Revolución”, e que figurou antes no tracklist de “Kill Gil” (2010), cantada em Inglês sobre o título “Break It Up”. Já “Te Recuerdo Invierno” e “Juan Represión” são velhas conhecidas dos fãs do Bicolor: composta durante os ensaios do duo Sui Generis, que Charly formou com Nito Mestre no início dos anos 1970, a primeira aparece, cintilante em seus arranjos, pela primeira vez desde que abrilhantou o obscuro disco ao vivo “Estaba En Llamas Quando Me Acosté”, de 1996. Já a segunda foi gravada oficialmente no discaço “Pequeñas Anécdotas sobre Las Instituiciones”, de 1974 (além de regravada para “Sinfonías Para Adolescentes”, disco de reunião lançado em 2000), e conta com a participação da cantora Rosario Ortega ajudando a modernizar, sem descaracterizar, as vocações folk da dupla.
O epicentro emocional do repertório, porém, é indiscutivelmente “La Pelícana y El Androide”. Composta em meados de 1984 junto ao amigo e rival criativo Luis Alberto Spinetta, a canção faria parte do disco “Como Conseguir Chicas”, que a dupla planejava gravar. Os conflitos artísticos e pessoais que o epíteto do álbum ficasse com García (que lançaria seu trabalho de 1989 sob o mesmo nome) e a música ficasse com El Flaco, que a registraria em “Privé” (1986). Foi se escutando bootlegs disponíveis no YouTube que Charly se deparou com uma versão demo, da qual extraiu a voz de Spinetta e regravou o instrumental por completo, incluindo guitarras etéreas – cortesia do colaborador Fernando Kabusaki – que invocam o espírito e a musicalidade de um gênio do rock argentino. Se colocando ao fundo para deixar os vocais de Luis tomarem a frente, o protagonista do álbum deixa claro seu longevo respeito por uma das figuras que mais o inspiraram.
Falando em inspiração, a dobradinha “Watching The Wheels”/”La Lógica del Escorpión” é outro ponto de destaque: a canção de John Lennon, presente em seu derradeiro “Double Fantasy” (1980) já tinha sido versionada em castelhano por Charly em “Kill Gil”, mas soa melhor agora, fazendo jus ao arranjo original ao mesmo tempo que o estende, criando potentes camadas de som sobre as quais recita, mais uma vez ao lado de Rosario Ortega, o conto que deu origem à identidade conceitual do álbum: o de uma rã que, atravessando o rio com um escorpião nas costas, se convence da lógica de que o animal não a picará, fazendo com que os dois morram afogados. Quando o impensável acontece e o anfíbio é mortalmente ferido, ela questiona a venenosa criatura a respeito de seu destino mútuo e fatal. “Não posso evitar; vai além da lógica: é meu caráter”. Mais do que um aceno em direção ao caótico “constant concept” que regrou as atividades musicais do artista por volta da virada para o novo milênio, é um contraste interessantíssimo (levado a cabo por um artista especialista em contrastes) com a faixa final, “Rock and Roll Star”. Escrita por Roger McGuinn e gravada pelos Byrds como “So You Want To Be A Rock and Roll Star” em 1967, a gravação conta com a participação ilustre do eterno discípulo Fito Paez, que mostra uma surpreendente vitalidade em seu desempenho vocal sobreposto com o de García – que não faz feio ao longo do álbum, ainda que com suas limitações de alcance.
Mas e quanto ao material novo? Longe de soar saudosista, “La Lógica del Escorpión” tem nas canções compostas mais recentemente sua espinha dorsal, um trajeto sob o qual as releituras caminham, e não o contrário. “Yo ya sé” conta com baterias sintetizadas que reimaginam as atmosferas cristalinas dos primeiros discos solo do artista de forma revitalizada e dinâmica, e seu arranjo valoriza, e muito, a contribuição nos backing vocals de Hilda Lizarazu (que integrou a banda de apoio de Charly entre o fim dos anos 1980 e o início da década seguinte). Já “Autofemicidio” se encaixaria como uma luva em um álbum como “Influencia” (2002), com climas narcóticos e um tanto oníricos, e – a exemplo do disco referenciado – talvez soe como uma das composições menos “difíceis” em sua primeira audição; nada que prejudique a experiência do disco como um todo, claro. E “Estrellas al Caer” engana graças a suas semelhanças melódicas com “Chipi Chipi” (de “Say No More”, 1996), mas passa longe de ser derivativa, se convertendo em um dos momentos mais memoráveis do disco.
Memorável, diga-se de passagem, é provavelmente uma das palavras chave que circulavam a mente criativa de García quando elencou dois de seus mais lendários parceiros para participações neste álbum: o guitarrista David Lebón se sobressai na magnífica “El Club de Los 27”, com solos que adicionam lirismo a uma base cadenciada de blues enquanto Charly discorre uma letra pensativa e bem-humorada que cita nominalmente Brian Jones e Kurt Cobain (como não poderia deixar de ser, a julgar pelo título); e “La Medicina Nº9” traz o mesmo ex-Serú Giran se utilizando de técnicas mais discretas, contracenando com o infame sample de “number nine, number nine…” que os Beatles incluíram em sua vanguardista “Revolution 9” (1968). Lebón, porém, não é o único remanescente do mítico quarteto a dar as caras (e as vozes) por aqui: Pedro Aznar abrilhanta os quase quatro minutos de duração de “América” com o timbre de sua voz, que permanece inacreditável mesmo após cinco décadas. O entrosamento entre ele e Charly, que já rendeu ao menos dois incríveis discos de estúdio feitos em parceria pelos dois músicos (“Tango” e “Tango 4”, de 1986 e 1991, respectivamente) se mantém admirável à medida que garante um dos mais empolgantes momentos do novo trabalho.
Mais do que atualizar a faceta musical de Charly García para os dias atuais, Matias Sznaider mostra entender como poucos o processo criativo de um artista que sempre buscou desafiar as expectativas de seu público, alienando antigos seguidores ao mesmo tempo que coleciona admiradores mais jovens. E Charly, por si só, força o ouvinte a confrontar quaisquer receios de que seus dias como artista estariam contados. “Na década de 2000, Charly García talvez tenha compreendido que tinha real influência sobre as pessoas deste país [a Argentina] durante todo seu ciclo vital, e se vangloriava publicamente disto”, escreveu Roque Di Pietro em seu livro “Esta Noche Toca Charly, Vol. 1” (lançado pela editora portenha Gourmet Musical originalmente em 2017). Mais do que soar como uma verdade, a constatação do autor serve como um preâmbulo do que o compositor viria a significar não apenas para seus compatriotas, e sim para toda a América Latina, ao longo das duas décadas seguintes: se aproximando apenas conceitualmente dos excessos que marcaram seu período mais conturbado – a chamada “era Say No More”, que se estendeu entre 1994 e 2008 – o cantor agora mostra maturidade e respeito, mesmo que sem amarras ou ressentimentos, para com seu passado. E, mais do que se vangloriar do peso de sua existência e de seu legado, “La Lógica del Escorpión” demonstra que o sentimento também é de gratidão, e de retribuição. Bem aventuradas são as muitas pessoas que tem real consciência do significado de um disco como este, e desfrutam disto. Cada vez mais pessoas seguem, afinal, descobrindo o grande privilégio que é viver no mesmo mundo, e ao mesmo tempo, que Charly García.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.