entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
As primeiras impressões que Malu Maria me transmite são de uma extrema simpatia e uma ponderação singular na forma como expõe o seu pensamento. À medida que a entrevista se vai desenrolando, numa tarde quente de verão, na convidativa esplanada do café Linha d’Água, no coração de Lisboa, a artista paulista revela igualmente uma personalidade magnética que não cessará de impressionar durante todo o diálogo.
Em começo de conversa, desafio-a a comentar uma entrevista antiga de David Bowie à revista Rolling Stone, na qual o músico inglês defendia que: “Uma canção deve influenciar as pessoas num grau em que elas possam usá-la por conta própria e afetá-las não apenas como uma música, mas como um estilo de vida”. Malu Maria aceita o repto e a partir da citação apresenta a sua própria visão artística. “A arte para mim é o meu ‘religare’, no sentido em que é espiritual e não é só entretenimento em si. Tudo parte de um ensinamento que eu tive e foi bacana para mim e depois pretendo partilhar intuitivamente esse ‘insight’. Mas, não gosto de trazer comigo o aspecto de pregar, ensinar ou apontar um caminho. Na verdade, estou mostrando e escancarando as minhas questões. Acho que pode afetar ou não as pessoas. Isso vai depender do momento de vida delas e se elas estão abertas para a audição, naquele momento”, explica.
Abordamos de seguida o seu álbum mais recente, “Nave Pássaro” (2023), um trabalho produzido por Malu e Dustan Galas, que navega em sonoridades como a eletrônica, a psicodelia e o pop dos anos 1980, com tonalidades cósmicas, relaxantes e noturnas e que dá seguimento ao bem edificado “Ella Terra” (2020) e ao excelente ‘mixed bag’ de “Diamantes na Pista” (2018). Quando a questiono sobre a sua evolução musical, relativamente aos discos anteriores, Malu Maria coloca o foco no gosto pela permanente descoberta, mas admite que houve um progresso significativo. “O meu grande barato é estar justamente em ‘work in progress’. Agrada-me descobrir, experimentar, misturar as linguagens, vendo como resulta com uma pessoa ou outra e perceber o que sobra de tudo isso. Eu vejo os discos como se fossem complementares entre si, ou seja, um grande álbum que une os vários discos. Acredito que houve uma evolução bem grande e estou sempre em busca da minha essência artística. Mas, não me causa aflição”, conta.
Sobre o recente show de apresentação de “Nave Pássaro”, no Sesc Vila Mariana, a artista paulista confessa a sua satisfação com o espetáculo: “Fiquei muito feliz. A casa estava cheia e foi um momento de catarse total. Eu vi acontecer o que eu quero, trazendo a mistura de linguagens, pensando no figurino e na forma de ver a música. Por vezes, enquanto trilha sonora do que estava sucedendo e outras vezes ao contrário, onde a dançarina está a dançar a música e ela está sendo a trilha sonora”. E aproveita para expressar várias ideias para os seus concertos futuros: “Pretendo fazer mais shows, mas é difícil porque é uma estrutura grande, por isso farei diferentes formatos: em duo, trio e com as dançarinas e ‘backing vocals’ que para mim é o pulo do gato. A minha ideia é trazer estados performáticos e outras propostas para o concerto”.
Relativamente à música portuguesa, e além do trabalho da cantora e multi-instrumentista Rita Braga, com quem está mais familiarizada, Malu Maria destaca Sérgio Godinho como “uma referência importante ligada à tradição musical portuguesa”, manifesta igualmente a sua admiração por Emmy Curl (uma artista que renova o cancioneiro folk e celta do nordeste de Portugal) e revela ainda estar atenta ao impacto de Ana Lua Caiano no atual panorama musical português, da qual diz encontrar “algumas semelhanças no trabalho desenvolvido”. Em Lisboa, a artista paulista deixou-se encantar com um cenário artístico que ocorre num miradouro perto de Alfama (bairro lisboeta) quando os bares fecham à noite: “Gostei imenso dessa espécie de caos positivo e do encontro de diversas pessoas de vários lugares do mundo. Elas fazem um som, misturam ritmos e de repente chega alguém e toca uma salsa ou uma sonoridade portuguesa, entre outras coisas. É muito positivo esse caldeirão de encontros musicais”.
No momento em que falamos, Malu prepara-se para efetuar um tour europeu que arrancará com quatro datas portuguesas (com passagens por Lisboa e Sintra) e incluirá quatro shows em Espanha (um na Galiza, dois em Madrid e outro em Barcelona), num período que começou em 22 de agosto e segue até 6 de outubro (acompanhe aqui). Malu será acompanhada nos shows pela franco brasileira Laya, que foi vocalista d’O Jardim das Horas, debutou solo em 2017 e vive em Lisboa há um ano, e com a qual já havia se apresentado no Brasil num trio chamado Sísmicas. “Ela também é muito da escola do corpo e da dança e considero-a uma irmã de alma em vários aspectos”, diz. O show terá três partes: na primeira parte será apresentado o disco “Nave Pássaro”, na segunda parte será a vez de abordar o disco de Laya, o onírico “Dorme Sonha Acorda” (2023) e o final incluirá um apanhado de músicas anteriores das duas artistas. No que diz respeito ao formato do show, Malu defende uma adequação ao espaço, mas aponta uma linha de continuidade. “Dependendo da situação, nós iremos só tocar guitarra, flauta e pandeiro e uma contribuirá para o som da outra”, conclui.
De Lisboa para o Brasil, Malu Maria conversou com o Scream & Yell. Confira:
Além de cantora e compositora, você tem uma formação diversificada, ligada às artes do corpo, teatro e performance, e é artista circense, entre outras coisas. Até onde pretende levar esse ecletismo na sua carreira?
Ele já está em mim. Mas, acredito que esse ecletismo desaparece na hora de criar e mostrar o trabalho. Para mim está tudo ligado. Quando faço um disco sinto o cheiro dele, a textura e a cor do tecido. Na música, quando se trata de um clipe, mesmo que não o realize, eu já vejo um personagem. Por isso, não consigo desligar as linguagens. Para mim, a arte é algo que abrange vários aspectos. Desde a criação até à forma de entregar ao público, em nenhum momento me consigo desvincular, nem que seja na minha imaginação. Eu gostei da sua pergunta, porque ela me traz pretensões positivas a respeito disso e para trabalhar de forma mais consciente esse aspecto. Não tão fluida e natural, que também é bacana, mas também ter a consciência de que pode ser uma forma de valorizar algumas características minhas enquanto artista. Portanto, pensando no fato de serem traços meus que nunca pensei que fossem. Mas, reparo que muita gente fala sobre isso. Assim, estou a ver que está reverberando e de certa maneira traz uma distinção ou acrescenta uma mais-valia. Estou a gostar desse retorno das pessoas. No meu último show de agosto houve performance e dança e a assistência encantou-se imenso, trouxeram bastante feedback e envolveram-se em todos os sentidos. Na verdade, irei continuar porque é a minha escola e a minha maneira de atuar. Eu comecei a fazer música porque escrevia e escrevia porque fazia teatro e uma coisa levou à outra. Eu gosto bastante de pensar até onde vou, mas não sei responder a essa questão (risos).
O seu disco mais recente, “Nave Pássaro” (2023) aborda os sonhos, as viagens astrais e a existência de outras dimensões. Porque você projetou no trabalho esta vertente fantasiosa?
Acredito muito na força do imaginário, dos sonhos e no poder de prestarmos atenção nas coisas que não são visíveis e óbvias. Principalmente, no mundo em que vivemos que é tão materialista e tão lógico. Acho que a partir de observações de outros povos nativos, ancestrais e dos próprios indígenas, verificamos que eles trazem a importância de nos relacionarmos com os sonhos, e em algumas aldeias o sonho é o grande xamã porque ele dá soluções, possibilidades e outras formas de existir. É um complemento bem importante para o imaginário coletivo, inclusivamente para mim. O que constrói a cultura é algo que ainda não o é, porque vem de ligações mais sutis até se tornar cultura. Dessa forma, o sonho seria para mim uma contracultura (risos). Por isso, é muito importante e fundamental para a construção cultural ou dos valores. Principalmente os sonhos, mas também a possibilidade de existirem coisas para além do céu. Estar mais aberto, de uma forma até simbólica, para pensar e imaginar que possam haver outras formas de vida e outras dimensões além dessa que nós vivemos com um olhar tão antropocêntrico. É uma brincadeira despretensiosa, mas trago esse incômodo, porque há pessoas que se perturbam e pensam: “Lá vem ela, a lunática que viaja na maionese” ou questionam com surpresa: “Você acredita em ETs?”. Não é bem isso, mas sim uma pegadinha para que haja uma reflexão e fique tudo em aberto. É importante o olhar despido de conceitos que é o oposto de preconceitos (risos).
A faixa “Luz Lilás” é uma das músicas mais dançáveis do álbum mas, ao mesmo tempo, tem uma lírica poética e encerra numa toada percussiva. Em que se inspirou para escrever esta canção?
Inspirei-me em estados de psicodelia, sensações visuais, meditação e na relação que eu tenho desde os 15 anos, atualmente nem tanto, com a investigação psicodélica e lisérgica, de que gosto muito, e da filosofia em si. Não dá para provar a toda a hora se não acho que nem estava aqui (risos). Deve haver disciplina e o próprio Timothy Leary tem uma pesquisa sobre os psicodélicos com meditação. Eu já pratiquei yoga durante 10 anos e fui professora. Por isso, “Luz Lilás” veio numa epifania e num estado litorâneo, mas não necessariamente que eu tenha visto essas sensações. Na época, eu estava em Ilhabela onde cresci e passei a minha infância toda. Essa relação de verão, de férias e algo suspenso do tempo da rotina (e na música eu cito coisas aquáticas, o mar, bem como algum delírio, o sonho e a realidade) de certa forma são imagens e não foi exatamente uma história que aconteceu. São fragmentos e visões de um estado de psicodelia tentando trazer algo para uma narrativa que deixe as pessoas curiosas. Agrada-me deixar esses fatos num não lugar também. Também gosto de cronistas que conseguem relatar episódios sobre a Rua Augusta, em São Paulo, numa determinada época. Acho maravilhoso traduzir isso dentro de uma música, mas dá para contar num dedo as canções que são mais nesse lugar de contar uma história.
Você criou e cuida do Teatro do Quarto Mundo, na Vila Romana. Como vê a evolução desse espaço cultural dentro da cidade de São Paulo?
Ele começou muito lá atrás. Em 2005 eu ainda estava ligada à palhaçaria e usava essa garagem para ensaiar e trazer algumas crianças, principalmente para assistirem aos números que nós ensaiávamos, por isso era um pequeno circo. Na época, não havia a ideia de fazer de uma garagem um espaço cultural. Até isso se tornar normal foi um processo de construção e pelo meio haviam pessoas que iam lá, viam, achavam legal e algumas delas tinham um espaço próprio e até pensavam em abrir um lugar parecido. A partir daí o bairro começou a ter uma movimentação mais alternativa, uma garagem, sala ou um grande quintal para fazer de lá um espaço cultural, mas não necessariamente por causa do teatro. Eu diria que o Teatro do Quarto Mundo foi algo pioneiro nesse aspecto só que não consigo levá-lo a ferro e fogo, certinho. Já o fiz numa época em que tinha mais tempo e abria-o de quinta-feira a domingo. Só que eu faço tudo e é como uma tradição do circo: vendo as pipocas, os ingressos, toco e faço de palhaça. Também inclui a curadoria, a passagem do som, fazer a faxina do banheiro, servir a cerveja, escolher o artista que se vai apresentar e pagar. Era algo puxado, porque tratava-se de um pequeno circo. Por isso, agora estou a abri-lo de uma forma mais valorizável, fazendo com que seja um acontecimento e trazendo oficinas. Estou a tentar o apoio do Proac e de editais, dessa forma vou ter alguém para me ajudar e será mais fácil de gerenciar. Mas, o próprio nome do teatro (Quarto Mundo), sugere uma possibilidade de troca, de conexões, como trazer a Rita Braga e poder ter um espaço para recebê-la e ela fazer um show para trinta pessoas com a casa lotada, que também é pequena. Assim o artista tem a possibilidade, mesmo vindo de fora, de conseguir encher um espaço e torná-lo agradável. É uma experiência única e intimista. Eu gosto de brincar com as luzes e fazer uma iluminação especial. Quando era palhaça o espaço era um circo e depois, quando fui para a música, ele tornou-se mais musical. Por isso, olho para ele como uma extensão da minha arte. Eu não dou conta de tudo, na verdade (risos). Mas, a ideia é como o malabarismo: uma bolinha em cima e uma na mão. Há que manter a performance (risos).
Qual é a sua avaliação do panorama atual da música brasileira e que artistas destaca no cenário?
O cenário atual da música brasileira é incrível e há muita gente nova que vem com tudo e chega a ser emocionante e avassalador. Ficamos muito felizes com isso. Ao mesmo tempo há uma reação do tipo: “Uau! Como é que essa garotada veio com tanta bagagem, informação e estudo?”. Parece que a informação chegou de uma forma mais fácil a esse pessoal. Eles estão informados sobre o passado e a atualidade e revelam uma aprendizagem fantástica. Eu fico fascinada com os artistas novos que estão a chegar. São tantos que eu não saberia nem citar. É um fenômeno global, mas há um pessoal do Rio de Janeiro a fazer coisas ótimas. A cena do Rio está a crescer. Demorou para retomar, mas agora estão a aparecer trabalhos muito bonitos. As mulheres estão a compor e no meu tempo haviam bastante menos a fazê-lo. Na minha banda há 90% de mulheres e a maioria é nova e tem de 20 anos para cima. Sinto que é uma hora bastante positiva para a música brasileira, MPB e para a cena indie de uma forma geral. As casas de show também estão aumentando com essa demanda, principalmente em São Paulo. Na questão do panorama, em termos de espaço cultural, é legal que esteja crescendo, mas acho que poderia ser maior, porque há público para isso. Eu gosto muito dos pais da cena, que já estão aí há algum tempo, como é o caso da Tulipa Ruiz, Ava Rocha, do próprio Tatá Aeroplano e da Céu. Esses músicos são a base original que toda a gente conhece e foram os pioneiros que trouxeram todo um movimento alternativo. Também há a Letrux, mas ela igualmente não é nova. Eles são os pais dessa gente nova que está a chegar. Posso-lhe dizer que sou muito inspirada por eles.
Como antevê o seu futuro artístico? Pretende inspirar-se no espírito e seguir o momento ou encontrar uma via que lhe permita aproximar-se mais da sua própria natureza?
Eu vou arriscar a segunda resposta, de uma forma pretensiosa, mas preciso praticar. Acho que subscrevo essa possibilidade de ser menos aberta, porque fui muito assim durante a minha vida, nesse lugar de estar no ´flow’. Sinto que estou numa idade de trabalhar mais a questão: “Qual é a tua bagagem?”. Há que valorizar e desenvolver isso de uma forma profissional, empenhada e com cautela. Mas, também, prestar atenção ao fato de que a vida além de ser fluida, sensorial e etérea, ela é igualmente um jogo de xadrez. É bom pensar nas estratégias, observar as situações, saber colocar uma peça com consciência e perceber todos os aspetos. É uma coisa que é preciso praticar mais e eu estou nesse caminho. Se sair da relação com o meu espírito não encontrarei a minha essência. Por isso, não é possível desvincular as duas coisas. Acredito que uma questão complementa a outra. É preciso prestar atenção para chegar à minha excelência, mas com o olhar de uma criança e do ancião. Trata-se de unir os dois e então o grande ‘play’ é fazer um trabalho com qualidade. Eu continuo estudando música, tenho aulas de guitarra e de vez em quando volto a estudar flauta, porque não aprofundei o que desejava, mas toco esse instrumento. Por isso, há muito a trabalhar para encontrar essa excelência (risos).
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Lucas Murched / Divulgação