Esse você precisa ouvir: “Head Over Heels”, o disco em que o Cocteau Twins encontra sua sonoridade

texto de Luciano Ferreira

Quando o Cocteau Twins lançou “Head Over Heels”, seu segundo álbum, em outubro de 1983, pouco mais de um ano havia se passado desde a estreia com “Garlands” (1982). Nesse percurso, o baixista Will Heggie deixou a banda quando Liz Fraser e Robin Guthrie decidiram mudar para Londres – ele se juntaria posteriormente a outra formação, originária também de sua cidade natal, o Lowlife.

Reduzidos a um duo e com dificuldades financeiras, Liz Fraser e Robin Guthrie tiveram que levar seu projeto adiante tendo que lidar com situações extremas como a perda do apartamento em que moravam (por falta de pagamento do aluguel), e a mudança para a casa de um amigo, que conforme diria Liz posteriormente: “era pra ser um final de semana, mas se estendeu por cerca de um ano”. A dupla não parou. Foi nessa “casa emprestada” – um ambiente muito bom e produtivo, nas palavras da vocalista – que o duo deu os primeiros passos para a criação de “Head Over Heels”.

Se a história da música pop é repleta de portas que se fecham para que outras se abram, no caso do Cocteau Twins a história se repete. Sem um baixista fixo, Guthrie teve que lidar com toda a parte instrumental do disco e isso possibilitou criar arranjos que, embora centrados nas linhas do baixo (tocado por ele mesmo), tinha a sonoridade das guitarras como elemento essencial e sem rivais. Guthrie daria início a exploração e aperfeiçoamento de uma sonoridade que soava etérea, adicionando outras camadas, ao mesmo tempo em que mantinha as linhas mais graves de forma mais discreta.

Pesquisador de timbres mais do que um exímio guitarrista, o músico conseguiu chegar a uma sonoridade de guitarra reverberante, melódica e cheia de eco, criando atmosferas que se assemelham a um ambiente de sonho, a partir de uma combinação de efeitos de distorção (Overdrive e Heavy Metal) com modulações (Chorus e Delay), uma junção indelével que marcaria sonoridade dos escoceses para sempre.

A capa original de “Head Over Heels” e a capa alternativa utilizada em lançamentos fora do Reino Unido

Se em “Garlands” havia ambiências soturnas características de bandas do pós-punk e do gótico (especialmente Siouxsie and the Banshees), em “Head Over Heels” a música do Cocteau Twins dá um salto enorme em relação ao que a dupla vinha produzindo até então. É a partir dele que a sonoridade etérea se torna uma marca registrada do grupo – sendo refinada ao longo dos anos e dos álbuns com “Heaven or Las Vegas” (1990) soando para muitos fãs e críticos como o ápice dessa proposta musical do grupo.

O resultado pouco satisfatório, principalmente em relação aos aspectos técnicos durante a gravação de “Garlands” (de autoria de Ivo Watts-Russel, dono da gravadora 4AD) e dos singles lançados posteriormente (“Lullabies” e “Peppermint Pig”) – que incluem o guitarrista e também escocês Alan Rankine, da banda The Associates, que o Cocteau admirava -, criaram a convicção de que uma mudança (não apenas de Grangemouth para Londres, mas também estilística) era necessária.

Coproduzido com John Fryer (que trabalhou como engenheiro de som em “Garlands” e produziu o álbum do projeto This Mortal Coil), “Head Over Heels” foi gravado no Palladium Studios (de propriedade de Fyer), nas redondezas de Edimburgo, uma casa transformada em estúdio. Diferente do que aconteceu no álbum anterior, Guthrie teve a liberdade para fazer as coisas ao seu modo em diversos aspectos com controle amplo e irrestrito sobre todos os aspectos técnicos de gravação, não se restringindo apenas à guitarra, mas também, e principalmente, com os vocais de Liz (que ganhou a adição de camadas e efeitos de eco), com a bateria eletrônica (que era processada por pedais de efeito) e também com o baixo, mais melódico e também mais discreto. Guthrie diria em uma entrevista, anos mais tarde, que o disco é divisor de águas na carreira do grupo justamente por ele ter assumido toda a parte de mixagem e engenharia do som.

Surgia um amálgama sonoro em que todos os elementos musicais soam misturados, mixados em um nível em que, ainda que a voz se destaque em algumas faixas, no geral ela não se sobrepõe. Essa paisagem sonora – que se assemelha ao “wall of sound” criado na década de 60 por Phil Spector – etérea impulsionada por guitarras repletas de efeitos acachapantes se tornaria influente e seria explorada ao extremo por uma geração de bandas nos anos e décadas seguintes, ajudando a construir a sonoridade envolvente do shoegaze – com suas paredes de guitarras reverberantes – e sonhadora do dreampop. Muito do que se ouve no disco se deve ao estado em que Robin se encontrava naquela época, com envolvimento pesado em drogas, ao ponto de afirmar posteriormente que é um disco “de cabeça pra baixo (Head Over Heels) dopado”.

“Garlands” é uma pedra bruta, “Head Over Heels” é uma jóia reluzente de brilho intenso, apesar de não totalmente acabada – o que viria a acontecer no diamante “Treasure” (1985). É um disco admirável considerando o pouco tempo necessário para que Liz e Robin conseguissem dar um novo e original direcionamento sonoro para o Cocteau Twins. O resultado do casamento entre a voz angelical (mostrando uma evolução incrível) e letras indecifráveis de Liz, somada aos timbres viajantes criados por Robin, é nada menos que um mergulho lento e excitante.

“Head Over Heels” traz resquícios da sonoridade de “Garlands” (em “In Our Angelhood” e “Glass Candle Granades”, por exemplo). Na verdade, há elementos de um no outro e, nesse sentido, não é de todo estranho pensar que “Garlands” seria outro álbum se produzido pelo próprio Guthrie, que na época não tinha ainda maturidade suficiente para assumir o comando. Pequenos detalhes fizeram diferença gigantesca, a sensação ao longo das dez faixas é de uma banda a milhas de distância daquela que se viu no disco de 1982.

A abertura com a sonoridade esparsa e atmosférica de “When Mama Was Moth” antecipa a mudança de foco, que prossegue na fantasmagórica “Five Ten Fifftyfold”. A primeira é minimalista e exalta o efeito de eco das batidas sintetizadas (marca registrada do Cocteau Twins durante sua fase oitentista), enquanto a segunda, ao contrário, é recheada de camadas sonoras musicais e de vozes e há adição até de sons de saxofone (cortesia de Ally Gibb), uma valsa bucólica enevoada e onírica.

“Suggar Hiccup” é a verdadeira indução a perdição sensorial ao lado da tribal e sufocante “Musette and Drums”, uma das pérolas do álbum, que serviria de base para “Pearly-Dewdrops’ Drops” – das grandes faixas do duo, mas que não entrou em nenhum álbum de carreira da banda. Lançada como single em 1984 (já com Simon Raymonde no baixo), “Pearly-Dewdrops’ Drops” encerra de maneira soberba esse ciclo de amadurecimento sonoro do grupo. Seu videoclipe, que utiliza bastante sobreposição de imagens esfumaçadas, apresenta a banda para o mundo em meio a florestas, rios, lagos e numa igreja, dando início a uma espécie de culto.

Retornando ao disco, a fantasmagórica “The Tinderbox (of A Heart)”, mesmo com os sons densos de sintetizador, apresenta a faceta mais melódica do registro com o uso de dedilhados de guitarra e vozes de Liz sobrepostas. “Multifoiled” tem ambientação jazzística e uma cadência que a aproxima de “The Lovecats”, do The Cure. Já “My Love Paramour” retoma o lado mais pós-punk dos escoceses, com a linha de baixo pronunciada conduzido o arranjo entrecortado por riffs esparsos de guitarra.

O design de capa original de “Head Over Heels” foi criado pela 23 Envelope, de Vaughan Oliver e é inspirado no filme “Stalker” (1979), do diretor russo Andrei Tarkovsky. Para a reedição do disco no começo dos anos 1990, uma capa alternativa seria usada fora do Reino Unido – é essa segunda capa que ilustra a rara edição brasileira do álbum, que ainda trouxe como bônus as quatro faixas do EP “Sunburst and Snowblind”, de 1983.

Lançado no mesmo ano de outros trabalhos musicais influentes, “Head Over Heels” tem seu lugar ao lado de álbuns como “Power, Corruption and Lies” (New Order) e “The Smiths” (The Smiths). Sua sonoridade pioneira e singular o coloca entre os álbuns mais importantes dos primeiros anos da década de 1980, apesar de seguir como um dos álbuns mais subestimados do período e até mesmo dentro da discografia do Cocteau Twins. Ouça com atenção.

 Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge : A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.

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