texto de Renan Guerra
Hoje em dia, a experiência de shows na tela do cinema se tornou estratégia de marketing bastante usual, ganhando corpo com as estrelas do k-pop e se tornando cada vez mais comum no escopo de turnês de grandes nomes como Coldplay e Taylor Swift. Por isso é interessante retornarmos às salas de cinema para assistir a um filme-show que completa 40 anos em 2024.
“Stop Making Sense”, de Jonathan Demme, é de um tempo em que shows ao vivo eram registrados em festivais ou eram reduto apenas para artistas gigantescos do rock de arena – 1984 era o ano também do lançamento de “This is Spinal Tap”, de Rob Reiner, o falso documentário que zombava dos exageros dos roqueiros daquela época. O filme de Demme é uma surpresa nesse cenário da época, sendo direto e reto: cerca de 1h30m de Talking Heads no palco, sem entrevistas, sem extras, “só” uma performance histórica e única, em um registro especial e que agora pode ser novamente vivido na tela grande pelo público.
Restaurado em 2023 pela produtora A24, o filme chega agora ao Brasil em salas comuns e salas IMAX, a partir da distribuição da O2 Play, com uma qualidade de imagem e de som completamente absurda – aliás, ver o filme em IMAX é realmente como viver a experiência de contemplar a banda no palco novamente, ali pertinho da gente. E isso se dá, claramente, pelo cuidado de Jonathan Demme na produção do filme. “Stop Making Sense” foi gravado em quatro noites em 1983, durante a turnê do disco “Speaking in Tongues”. Uma das noites foi focada em takes abertos, com o palco sem a presença dos câmeras, nas outras temos os cameramans com grandes aparelhos no palco, que podem ainda ser vistos em alguns takes.
Gravado inteiramente de maneira analógica, o filme teve sua edição e mixagem feita totalmente de maneira digital, colocando o filme como um dos pioneiros no uso dessas técnicas. Para além disso, há o cuidado de David Byrne, que buscou ao máximo padronizar a banda, cuidando para que todos usassem tons pasteis no palco para uma maior unidade de luz e a criação dessa experiência bastante teatralizada do show – dito isso, a roupa de tom claro do Chris Frantz foi pra lavanderia e não chegou a tempo do primeiro dia, então vale reparar que ele entra com uma camisa turquesa que acaba sendo utilizada em todos os shows para manter a continuidade do filme.
Quando falamos que o filme é realmente uma filmagem direta do show, estamos falando sério, pois quase não temos takes da plateia e isso também tem um motivo: Jonathan Demme viu que teria que iluminar a plateia se quisesse filmá-la e isso geraria uma mudança total na iluminação do espaço e ainda deixaria as pessoas mais tímidas para dançar e interagir, por isso mesmo só vemos takes – excelentes, por sinal – da plateia bem ao final do show. De resto, o que temos é uma viagem completa pelo repertório da banda até aquele momento, indo desde a seminal “Psycho Killer”, lá da estreia da banda em 1977, passando pelos clássicos atemporais do “Remain in Light” (1980) e as canções do então recém-lançado “Speaking in Tongues”, tudo absurdamente bem amarrado por uma construção narrativa e cênica que transforma realmente “Stop Making Sense” num dos maiores shows já filmados na história da música e do cinema. Sem exageros mesmo, estamos falando aqui de um show que musicalmente segue impecável e que visualmente segue um deslumbre de se assistir, com uma edição inteligente e classuda, com jogos de câmera que não soam datados ou caretas, mas que ainda revelam uma identidade artística muito forte de Demme e de toda a equipe envolvida.
Vale citar que, ao lado das canções do Talking Heads, no show ainda há espaço para canções solo de David Byrne e do Tom Tom Club,o projeto paralelo formado por Chris Frantz e Tina Weymouth. Além do repertório e das questões técnicas, indicamos que você repare na dedicação de cada membro da banda, de como todos estão realmente ali entregues nesse show, as duas backing vocals, Lynn Mabry e Ednah Holt, por exemplo, são um espetáculo por si só.
E por fim, há um deleite total para quem ama moda: os looks de David Byrne são um espetáculo surrealista, as peças usadas por Tina Weymouth são um desbunde anos 80 e os looks de todos os integrantes – mesmo a camisa turquesa de Frantz – parecem muito bem conectados nessa perspectiva de nos contar uma história, de nos carregar para um universo único. Ah, dica extra: fique atento em como a banda vai ficando cada vez mais “animadinha” ao longo do show, as pupilas mais dilatadas, os ânimos mais à flor da pele, ah os anos 80…
Ao final da sessão para a imprensa, os jornalistas chegaram a aplaudir a exibição do filme e, cá entre nós, uma plateia de jornalistas pode ser bem blasé quando quer, então isso é bastante coisa. E é curiosa essa experiência de aplaudir um filme dentro de um cinema, não é? Mas é uma reação completamente natural quando vemos uma obra-prima que segue nos encantando e nos apaixonando ainda hoje. Assista “Stop Making Sense” na melhor sala de cinema que você encontrar e você não vai se arrepender – apostamos que você também vai querer aplaudir quando os créditos subirem!
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.