A série “Entrevista com o Vampiro” faz jus ao material original com ótimas atuações e um enredo cativante

texto de Davi Caro

Anne Rice (1941-2021) é, de forma inquestionável, o nome mais influente na literatura de horror vampírico do último meio século. Retendo apenas o essencial do ultra-romancismo gótico originalmente proposto por Bram Stoker em seu Drácula – publicado originalmente em 1897 – e modernizando ambiências e formas de linguagem, a escritora praticamente revitalizou o gênero com os três volumes originais de suas “Crônicas Vampirescas”: “Entrevista Com O Vampiro” (1976), “O Vampiro Lestat” (1985) e “A Rainha dos Condenados” (1988). Seja na televisão (em séries como a dramática “The Vampire Diaries”, que se estendeu entre 2009 e 2017), na literatura contemporânea (tal qual os best-sellers escritos por Stephanie Meyer) e até mesmo em jogos (o RPG “Vampiro: A Máscara” é um ótimo exemplo), a influência da autora americana é inegável. Prova disso é o aparentemente infinito potencial de adaptação de seus romances, capazes de atrair tanto aqueles com maior inclinação para histórias de horror quanto a parcela de leitores mais afeitos ao desenvolvimento de narrativas mais “tradicionais”.

A série “Entrevista Com O Vampiro”, produzida a partir de 2022 pela AMC americana (e disponível via Prime Video para o público brasileiro) não é, como quase todos devem saber/lembrar, a primeira tentativa de trazer a dramática, sombria e enervante história de amor entre os imortais Louis de Pointe du Lac e Lestat de Lioncourt ao audiovisual: o filme homônimo de 1994, que contava com Brad Pitt e Tom Cruise nos respectivos papéis principais, embora icônico e memorável, não envelheceu tão bem quanto muitos gostariam. Boa parte disso tem a ver com as múltiplas inovações alcançadas desde então no quesito efeitos visuais, claro, mas a maneira com a qual o enredo se desenvolve, no entanto, omitindo ou quase ignorando os elementos queer tão inerentes aos personagens, faz com que, mais do que datado, o filme dirigido por Neil Jordan pareça covarde. Em contraste, a série televisiva, que acaba de finalizar sua segunda temporada sob a direção do showrunner Rolin Jones, abraça tais elementos com orgulho, carinho e atenção. O resultado é uma das mais instigantes produções do gênero vistas nos últimos anos, capaz de arrebatar mesmo aqueles mais sensíveis a histórias de horror.

O primeiro acerto da nova produção parte do recorte utilizado para abordar a história escrita por Rice: ao invés de se contentar com as limitações de um longa-metragem, a estrutura episódica acaba por ser a escolha mais acertada. Diferentes passagens são melhor exploradas, subtextos são espalhados para serem desenvolvidos em momentos mais oportunos, e mesmo algumas mudanças, embora sutis, servem o propósito de apresentar uma narrativa, acima de tudo, coesa. Já o segundo grande êxito tem a ver com a escolha do elenco, sobretudo da dupla responsável por trazer à vida os dois personagens centrais da trama: Jacob Anderson representa à perfeição a ingenuidade de seu Louis à medida que sua inevitável transformação em uma criatura da noite o leva a novos níveis de poder e descontrole emocional. Já o Lestat de Sam Reid é brilhante em sua sutileza, delicadamente costurada sobre um verniz sangrento que esconde somente o suficiente para que sua presença seja, simultaneamente, confortante e amedrontadora.

A narrativa apresentada nos 15 episódios que englobam as duas primeiras temporadas da série centram foco, evidentemente, no primeiro volume escrito por Anne Rice, e passa por todos os momentos já conhecidos da adaptação anterior, embora se aprofunde em detalhes anteriormente só aludidos: du Lac, que passou as últimas décadas de sua existência imortal em Dubai, se reencontra com o jornalista Daniel Molloy (Eric Bogosian, no papel antes concedido a Christian Slater). Agora sofrendo de uma doença degenerativa que abrevia sua vida a cada dia, o humano se mostra visivelmente reticente com a reunião com Louis, com quem já se encontrou antes com consequências traumáticas e – à princípio – não muito explicadas, e que resultaram em uma conversa previamente registrada, porém nunca publicada.

A proposta do vampiro é clara: retomar as entrevistas iniciadas, partindo do princípio e passando a limpo todos os detalhes da extensa biografia do sanguessuga ancião (em termos de idade). Em conjunção com as conversas, que ocorrem nos dias atuais, o espectador é levado à uma viagem pelas memórias que se iniciam com a vida anterior do entrevistado, quando era apenas um bem sucedido dono de um bordel em Nova Orleans, nos anos 1910. A problemática história familiar de Louis, que é mostrada como potencial razão oculta por trás de seu desequilíbrio emocional, sofre uma reviravolta a partir de seu encontro com Lestat, por quem se apaixona no momento em que sofre uma tragédia pessoal. A relação passional entre os dois, então, chega a seu resultado lógico quando du Lac é finalmente transformado por seu amante.

A vida do casal, pontuada por desentendimentos ocasionais e excessos, é verdadeiramente balançada com o surgimento de Claudia (originalmente interpretada por Bailey Bass, e depois substituída por Delaney Hayles), uma jovem que o vampiro mais novo salva de um incêndio e à quem, a fim de salvar sua vida, acaba convencendo de Lioncourt a conceder a imortalidade e poderes semelhantes aos seus. Uma vez tendo adotado a menina como sua filha, os níveis de toxicidade e descontrole passam a aflorar dentro da relação dos dois, e o drama familiar dos três acaba por separá-los, colocando Louis e Claudia em uma jornada com destino a Paris. Lá, suas vidas entram em rota de colisão com o misterioso Teatro dos Vampiros, e com seu líder, o enigmático Armand (Assad Zaman) – o longevo parceiro de du Lac quando de seu reencontro com Molloy. Desvendando os enigmas de seu passado com o auxílio do jornalista, Louis passa a questionar suas memórias e passa a observar alguns de seus mais sombrios momentos com outros olhos, começando a desvendar segredos ocultos que alteraram o curso de sua jornada, e a atrelam à de Lestat de modos mais dramáticos do que suas recordações indicam.

É claro que muito do enredo funciona de maneira magistral graças ao trabalho de atuação dos dois protagonistas, mas seria leviano não mencionar o desempenho impecável dos coadjuvantes escalados: a visão mais infantil de Claudia interpretada por Bailey Bass acaba dando lugar, de modo espontâneo, a uma maturidade resignada marcada por rompantes de raiva, algo que Delaney Hayles faz muito bem. Assad Zaman encarna um Armand que carrega o peso de sua longa jornada nos ombros com destreza, sempre cuidadosamente deixando a entender saber mais do que demonstra, e seus traços mais dominadores são conduzidos de modo a tornar o desfecho da última temporada ainda mais pungente.

Em seu desajuste e receio disfarçado de descontração, Eric Bogosian acerta em uma atuação como Molloy que vai muito mais longe do que o visto no filme de Neil Jordan: de alguma forma espelhando aqueles que está entrevistando, Daniel vê sua vida se esvair enquanto se vê frente a frente com indivíduos muito além de sua perspectiva mortal, e têm de confrontar dilemas e traumas que vão muito além da percepção humana. A segunda temporada também tem suas cartas na manga: destaque para os personagens Santiago – o sanguinário e vingativo braço direito de Armand no Teatro dos Vampiros, vivido por Ben Daniels – e Madeleine – uma costureira francesa que conquista a afeição de Claudia, na interpretação de Roxane Duran. Ambos são peças chave nas dramáticas circumstâncias que tornaram Louis o que ele se mostra no período atual, e cujas cicatrizes ainda se mostram abertas mesmo depois de tantos anos.

Visualmente, “Entrevista Com O Vampiro” é de um primor ímpar. O trabalho de fotografia sabe valorizar a ambiência conjurada por Anne Rice, seja em enevoadas tomadas externas ou em claustrofóbicas passagens. O roteiro, por sua vez, consegue equilibrar bem as passagens mais românticas de suas principais figuras ao mesmo tempo em que engloba momentos mais tipicamente assustadores, como se procurasse lembrar a todos que, sim, essa se trata de uma história de terror, protagonizada por criaturas por vezes tenebrosas que se alimentam de sangue – elemento, que, aliás, se faz presente em abundância (mas não excesso), como qualquer um minimamente familiarizado com o gênero é capaz de esperar.

O saldo final das duas temporadas é um dos mais reluzentes exemplos de televisão mainstream nos últimos anos: longe de ter medo de assumir sua essência, a série traz uma história bem contada, capaz de comover e assustar com competência e confiança, e que se tornou um sucesso, se não repentino, um tanto inesperado. Com ambas temporadas recebendo aclamação e dando, ainda que cautelosamente, origem a um novo universo compartilhado (o chamado “Immortal Universe”, que já rendeu a também recente primeira temporada da série “The Mayfair Witches”, também baseada no trabalho de Anne Rice), as referências que correlacionam a trama encontrada aqui é insular o suficiente para prevenir o desvio da atenção (e da tensão) do espectador – algo que, especialmente nos dias atuais, é uma grande vantagem. “Entrevista Com O Vampiro” também já foi renovada para sua terceira temporada, prometendo adaptar o volume seguinte da saga de Rice, “O Vampiro Lestat” (do qual alguns elementos serviram de inspiração para o datado e esquecível filme “A Rainha dos Condenados”, de 2002). A julgar pela resposta do público à divulgação do primeiro teaser, lançado oficialmente na San Diego Comic Con deste ano, as expectativas estão nas alturas. É por merecer: o prestígio de “Entrevista Com O Vampiro” pode não ser tão eterno quanto a vida de seus mitológicos protagonistas, mas, pelo visto, ainda deve durar por muito mais tempo.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.

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