texto de Davi Caro
Ainda que, na terceira década do século 21, o status da dita “música independente” seja esparso e difícil de definir com precisão – no qual, em outras palavras, o termo “indie” passou a significar toda uma estética/musicalidade, perdendo seu significado original – a cada ano torna-se mais difícil entender, ou explicar, o que ocorria na cultura alternativa há três décadas. A grande narrativa da chamada morte do grunge e a ascensão do britpop como uma recalibragem hegemônica para o outro lado do Atlântico (como, alguns dizem, uma espécie de resposta à derrocada da música de Seattle após a debandada trágica do Nirvana) já é mais do que bem conhecida e debatida. É por trás desse fenômeno, no entanto, que residem algumas das mais distintas trajetórias da música independente (no sentido estrito).
Muitos seriam capazes de lembrar dos “hits” conquistados por artistas como Beck e bandas como os Butthole Surfers na mesma época, destilando ironia e um senso de humor mordaz e cáustico sobre toda uma geração que ainda buscava significado em meio à desilusão. É chocante perceber, porém, a presença coadjuvante (ao menos para o público brasileiro) de outro grande nome da época responsável por conjurar tanta ironia e humor tão cáustico quanto aqueles já citados. E não para por aí: após driblar todo o ceticismo e assinar com uma grande gravadora conforme se aproximava de seus dez anos de estrada, lançou seu disco mais famoso, responsável por introduzir sua sonoridade variada, escatológica e irreverente a milhares de novos ouvintes e fãs. Estamos falando, claro, do Ween, e de seu primeiro grande trunfo, “Chocolate And Cheese” (1994): um álbum capaz de confundir e maravilhar ao mesmo tempo, e que agora chega finalmente às plataformas de streaming bem a tempo de uma reedição comemorativa caprichadissima, e mais do que digna de apreciação mesmo que tardia.
O grupo formado na Pensilvânia pelos amigos de adolescência Aaron Freeman e Mickey Melchiondo (mais conhecidos, respectivamente, como Gene e Dean Ween) tem muito em comum com vários de seus contemporâneos: originado como um duo em 1984 na cidade de New Hope, a dupla gravou seu primeiro LP, “Godweensatan: The Oneness” (1990) sob a batuta do músico Andrew Weiss (que também contribui como baixista nas gravações, inaugurando um processo de rotatividade no instrumento que duraria uns bons anos). Os dois lançamentos seguintes serviram para ampliar seu repertório, já bem variado, bem como sua fanbase – o segundo, “Pure Guava” (1992), foi o debute do grupo pela major Elektra Records, e serviu para acumular boa vontade dos executivos para com seu trabalho seguinte.
Se toda a história prévia parece familiar e óbvia, o mesmo não pode ser dito da experiência de escutar “Chocolate And Cheese”, bem como seus antecessores. Este último, vale saber, se diferencia por abrir mão da estética lo-fi e caseira dos discos anteriores, trocando o apartamento no qual os dois colegas gravavam em favor de estúdios profissionais. O mesmo pode ser dito da formação da banda em si: apesar de utilizarem, a princípio, somente baterias eletrônicas como acompanhamento rítmico, agora Freeman e Melchiondo se beneficiavam do acréscimo do instrumentista Claude Coleman na bateria. O resto, porém, se mantia tão apenas remotamente mainstream quanto sempre foi, das letras perturbadoras (como nas debatíveis “The HIV Song” e “Spinal Meningitis (Got Me Down)”) à provocativa e extravagante capa.
Ao mesmo tempo em que a primeira das canções se apresenta musicalmente brincalhona, se limitando a repetir “Aids, HIV” por dois minutos, a segunda é uma genuína representante da dualidade que permeia todos os lançamentos do Ween (inclusive aquele que é considerado a obra-prima do grupo, “The Mollusk”, de 1997). Com Gene nos vocais fazendo o papel de um bebê que sofre da condição homônima por meio de efeitos sonoros que alteram sua voz, com um instrumento semelhante a um xilofone ajudando a criar camadas que ajudam a disfarçar o perturbador tema abordado, a faixa é significante do aspecto mais “ame-o ou odeie-o” da mitologia da banda. O mesmo não pode ser dito da mais palatável (no mais flexível dos sentidos conjurados pelo adjetivo) “Voodoo Lady”, em cujas percussões também se pode testemunhar a disposição do duo em transitar por diferentes estilos. O resultado é algo que, com uma letra diferente, poderia entrar nos antológicos primeiros discos feitos pelo Talking Heads.
Os momentos mais pop, no entanto, são daqueles capazes de converter mesmo o mais cético dos ouvintes: “Freedom of ‘76” flerta com o rock radiofônico do início da década anterior ao lançamento original, enquanto “Drifter in the Dark” é uma (ir)reverência aos grupos vocais sessentistas em seu arranjo baseado em guitarra e voz. Mesmo esbarrando em estereótipos, “Buenas Tardes Amigo”, com o espanhol macarrônico de Dean, é pelo menos divertida, e o instrumental da abertura, “Take Me Away”, é daqueles momentos capazes de fazer a carreira inteira de bandas menos versáteis – o segredo, aqui, é claro: não se levar a sério demais. Trata-se de um mantra que já fazia as vezes de guia desde o início da discografia da dupla, e que neste registro alcança novas alturas graças ao aporte da percussão de Coleman, em um muito bem-vindo choque em relação aos discos anteriores. A preocupação em reter as características certas no que diz respeito aos predecessores de “Chocolate And Cheese”, aliás, surge na bacana “Roses Are Free”, com seus ritmos programados fazendo a ponte entre os tempos das gravações em fita e o momento mais favorável, tecnicamente, pelo qual o Ween passava então.
O trabalho de remasterização das fitas originais, que ficou a cargo do engenheiro de som Bernie Grudman (com um currículo que inclui trabalhos em discos de Michael Jackson e, pasme, dos titãs do jazz rock do Steely Dan) vai além de apresentar novos níveis de nitidez e qualidade auditiva das 16 canções que constituíram o tracklist do disco lançado a princípio: é ao se escutar o segundo álbum, que compila versões demo de quatro faixas – inclusive para “Voodoo Lady” e para a subestimada “Candi” – juntamente com 10 outras nunca antes lançadas, que se percebe o quão atrelados à sua primeira encarnação os dois amigos ainda estavam. Ainda que algumas músicas fossem meras sobras de estúdio (como “Crappy Anniversary Jimmy”), o blues “Junkie Boy” não soaria deslocado junto às outras faixas de “The Pod” (1991). Já a “romântica” “I Really Miss You (And I’m All Alone)” poderia fazer qualquer um achar estar escutando a alguma jóia perdida do repertório do Sebadoh ou do Guided By Voices, fiéis aos métodos lo-fi adotados até bem pouco tempo antes.
À imagem de sua própria obra, a carreira do Ween após “Chocolate And Cheese” também foi recheada de irregularidades e material mais, ou menos, impactante. Após retornarem ao esquema independente para os discos “Quebec” e “La Cucaracha” (de 2003 e 2007, respectivamente), as pressões da estrada cobraram seu preço e a banda entrou em hibernação em meio aos problemas de Gene com o alcoolismo. O grupo, porém, retornou em 2015, desviando da obrigação de compor e lançar material novo, ainda que tocando com regularidade e enchendo espaços de médio e grande porte ao longo dos EUA e Europa. Tendo efetivado o baterista Coleman e adicionado, em 1997, o baixista Dave Dreiwitz e o tecladista Glenn McClelland para suas performances ao vivo, os vários registros recentes do Ween sobre o palco são evidências mais do que suficientes de que sua reputação como arautos da ironia e da acidez humorística – não confundir com “comédia” – é mais do que merecida, por mais desafiadora que seja para o ouvinte de primeira viagem. É difícil julgá-los por focarem no relançamento e execução de seu vasto repertório: se “Chocolate And Cheese”, seja em sua versão original ou expandida, é prova de algo, é de que rir de si mesmo pode ser uma virtude boa; mas uma virtude ótima é saber como, e a hora certa, de falar sério.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.