texto de Renan Guerra
Em Mizubiki, uma comunidade rural perto de Tóquio, vivem Takumi (Hitoshi Omika) e sua pequena filha Hana (Ryo Nishikawa). Cada cena desse universo é filmada em ritmo lento, como se entrássemos aos poucos no universo do protagonista: cortar lenhas, recolher a água pura da fonte, buscar (ou esquecer de buscar) a filha na escola, tudo é acompanhado pela câmera de Ryūsuke Hamaguchi com certa distância, como se acompanhássemos tudo pela perspectiva da natureza. Em “O Mal Não Existe” (“Aku wa sonzai shinai”, 2023) a natureza ocupa papel central e é sobre as relações desse cenário com o homem que se desdobra o novo longa do diretor japonês premiado em 2022 com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, pelo excelente “Drive My Car”.
Se o filme anterior focava nas viagens de carro, agora mal os vemos. Com a câmera colocada na traseira dos veículos, o que temos são as paisagens em primeiro plano. Se em seus filmes anteriores, Hamaguchi filmava grandes cidades como Tóquio, Osaka e Hiroshima, agora seu olhar se volta para o interior. É aqui que a perspectiva desse olhar sobre a natureza surge de forma bastante distinta: nada de florestas que causam medo ou que apresentam qualquer perspectiva de opressão, aqui a natureza surge em harmonia com essa comunidade, que consegue de forma inteligente entender os ciclos naturais daquele espaço e se utilizar dele de forma não-predatória. Numa das cenas mais simbólicas do primeiro ato de “O Mal Não Existe”, Takumi e Hana estão passeando pela floresta enquanto o pai ensina sobre as árvores e apresenta aquele universo com seus encantamentos e riscos para a pequena filha. Para Hamaguchi, o medo e/ou o mal não está na floresta, ele está no homem.
O cotidiano da comunidade de Mizubiki acaba sendo abalado com a chegada de uma equipe que apresentará um novo projeto para a região: a instalação de um “glamping”, um neologismo para representar o que seria um camping glamouroso. Hamaguchi irá filmar com detalhes uma reunião da empresa responsável pelo projeto com a comunidade local, algo que pareceria simples e formal – e até um tanto chato –, ganha camadas complexas e uma boa dose de tensão, delimitando essa perspectiva de inter-relação entre o urbano e o rural, entre o aproveitamento respeitoso da natureza e a exploração gananciosa.
Todos esses pontos irão guiar um universo de mistério e de tensão que irá apenas crescer até o desenrolar da trama. Dito isso, é importante pontuar que o filme de Hamaguchi até bebe das fontes do suspense e do terror – e podemos notar diretamente uma relação aqui com o trabalho de Kiyoshi Kurosawa, que foi professor e mentor do diretor em seu início de carreira –, de todo modo, temos aqui um filme que dialoga muito mais com o que podemos chamar de “slow cinema” e da criação de uma ambiência dramática muito única, que nos conecta com esse universo territorial filmado – por isso não se deixe enganar pelo título do filme.
Essa ambiência sensorial tem uma relação direta com a forma como “O Mal Não Existe” foi concebido. Durante a produção de “Drive My Car”, a compositora Eiko Ishibashi, responsável pela trilha do filme, desafiou Hamaguchi a construir imagens a partir de uma peça musical que ela havia construído. O diretor aceitou o desafio e decidiu ir conhecer o estúdio de Ishibashi, que fica localizado no interior do Japão, numa região cercada por floresta. Desse ambiente, surgiu o ponto de partida da história, que acaba funcionando como essa trajetória sensorial, em que a câmera e o som dialogam, nos colocando dentro dessa floresta que vai do acolhimento ao mistério durante o decorrer da trama. Durante o processo do filme, algumas canções ganharam novos contornos e foram adaptadas em função das imagens, de todo modo, essa foi uma produção construída lado a lado.
Algo importante dentro dessa construção é que o elenco não ouviu a trilha anteriormente e o processo de criação dos personagens foi bastante mínimo, com um foco maior em suas ações. E nisso se destaca a figura de Hitoshi Omika, o intérprete do protagonista Takumi, que nunca tinha atuado anteriormente. Omika trabalhou sempre nos bastidores do cinema, tanto na assistência de direção quanto na produção, inclusive ao lado de Hamaguchi no recente “Roda do Destino”, de 2021. Hamaguchi ligou para Omika e o convidou para o filme, sem muitas informações, porém Omika confiou no diretor e embarcou no processo criando um personagem complexo que apresenta uma certa dureza perante os forasteiros que chegam de Tóquio, ao mesmo tempo que mostra uma delicadeza e ternura em lidar com seus vizinhos, com sua filha e com a natureza ao redor.
Vencedor do Grande Prêmio do Júri em Veneza em 2023, “O Mal Não Existe” é bem menos verborrágico que os filmes anteriores de Hamaguchi e pode ser uma aventura complexa para quem não se abre para seu ritmo lento e suas divagações misteriosas. Porém é uma jornada riquíssima e complexa para quem se deixar adentrar nos meandros dessa floresta, saindo da sessão com a cabeça cheia de reflexões sobre as complexas relações entre o homem e a natureza. Comercialmente menos acessível que “Drive My Car” (que já não era tão acessível assim), esse novo filme apenas reforça o olhar criativo e rico de Ryūsuke Hamaguchi, que entende o cinema como esse campo poderoso de diálogo e sensações.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava. As fotos são de Vitória Proença.
Renan, legal você ter citado o Kurosawa no texto. Pensei muito nele enquanto assistia ao filme.