texto de Davi Caro
Entre as muitas regras não escritas do cinema contemporâneo, talvez uma das mais controversas seja a de que “o terceiro filme é sempre o pior”. Claro, a história da sétima arte é repleta de exemplos que poderiam, sim, comprovar esta teoria como verdadeira – que atire a primeira pedra quem não pensou na saga “O Poderoso Chefão”, ou na trilogia original de “Star Wars”. No entanto, ambos são casos onde a definição de “pior” é mais relativa do que pode parecer: ainda que a parte três da fábula mafiosa de Francis Ford Coppola esteja bem aquém dos dois magistrais longas anteriores, dizer que “O Retorno de Jedi” é um filme ruim talvez seja forçar a barra… a não ser quando comparado com os dois longas que o antecederam, produções revolucionárias e antológicas que atravessam gerações. Ao fim, nenhuma sombra se prova mais difícil de escapar do que a do próprio legado.
Entender este conceito ajuda a compreender melhor o nível de expectativa depositado sobre “MaXXXine” (A24, 2024) assim como a polarizada recepção que o filme vem recebendo desde sua estreia no começo de julho (no Brasil, o filme chega aos cinemas na próxima quinta, 11). O mais novo longa do diretor Ti West traz consigo a responsabilidade de encerrar a trilogia iniciada, em 2022, com o surpreendente “X”, que foi seguido, no mesmo ano, pela magnânima prequela “Pearl”, e que encontrou, em Mia Goth (que figurou como produtora na segunda e repete o feito aqui) uma magnética, inquietante e, ocasionalmente, perturbadora protagonista, seja na pele da atriz pornô Maxine Minx – que interpreta na primeira produção – seja como a sonhadora e sinistra jovem Pearl – papel que Goth já havia interpretado em “X”, sob pesada e super-verossímil maquiagem, e que volta a viver em sua encarnação mais jovem no filme homônimo. Retornando ao seu papel original mais uma vez (última?), atriz e diretor se mostram confiantes em sua mais nova empreitada… talvez confiantes demais.
“MaXXXine” retoma a jornada de sua personagem título após os sangrentos eventos de “X”, ambientados em 1979. Deixando de lado a aridez da macabra fazenda do casal Howard e Pearl Douglas, a jovem Minx agora é mostrada buscando seu sonho de atriz na glamourosa e perigosa Hollywood de 1985: em um ambiente dominado pela cocaína e assombrado pela presença do maníaco Night Stalker (responsável pelos cruéis assassinatos de incontáveis jovens californianas na mesma época), a jovem se depara com a tão almejada oportunidade, enfim alcançada após anos na indústria de filmes adultos. Tal porta em direção ao luxo dos grandes estúdios se mostra na forma de um papel de destaque em “A Puritana II”, que tem a frente a perfeccionista e idealista diretora britânica Elizabeth Bender (Elizabeth Debicki), que vê na escalação da promissora atriz um grau de risco e uma espécie de teste às expectativas e receptividade do grande público (a despeito da opinião do estúdio).
O cenário muda de figura com o surgimento do asqueroso investigador particular John Labat (Kevin Bacon), que indica prestar serviços a alguém particularmente interessado em Maxine – e conhecedor de seu passado. Conforme os corpos de pessoas próximas à Minx começam a tombar de modo brutal, e a atriz se vê acossada por dois ineficientes agentes do departamento de homicídios da polícia de Los Angeles que suspeitam de seus segredos (vividos por Bobby Cannavale e Michelle Monaghan), a única sobrevivente da matança de seis anos antes se vê forçada a defender a si mesma em prol do seu sonho, não importa quem se imponha em seu caminho.
Falar que Mia Goth faz por merecer a posição de destaque ao qual foi alçada é enfatizar o que todos já tem como óbvio. No entanto, em sua interpretação ora contida, ora completamente desenfreada, “MaXXXine”, a exemplo de seus antecessores, encontra sua alma. O diferencial, aqui, é a naturalidade com a qual seu desempenho como protagonista enuncia o desenvolvimento de sua personagem, outrora uma ingênua, embora determinada, pós-adolescente imersa em um ambiente que sua criação religiosa tomava como profano e depravado, e que agora dá lugar a uma figura paranoica e obsessiva graças ao esforço de manter as aparências, junto ao consumo de drogas. Mesmo os momentos mais aterrorizantes do longa são encarados por sua figura titular com controle e obstinação, e a visão aludida da diretora interpretada por Elizabeth Debicki, em sua austeridade e histrionismo simultâneos, como mentora é um dos pontos altos. Outro papel digno de nota é o desempenhado por um inacreditável Kevin Bacon, trazendo em seu antagonista um canastrismo proposital que pareceria completamente deslocado em qualquer outra ambientação, mas que se encaixa perfeitamente na pretensão oitentista utilizada como pano de fundo.
Os problemas do novo trabalho de Ti West começam, não por acaso, também no elenco – ou melhor, na maior parte deste: ao passo que alguns poucos personagens ocupem a maior fatia de desenvolvimento de enredo, grande parte dos grandes nomes trazidos aqui parecem sub-aproveitados, uma vez concluída a trama: ao passo que alguns, como Halsey e Lily Collins, ficam aquém do esperado em seus respectivos papéis e funcionem apenas como ferramentas de roteiro, parece quase criminoso fazer mal uso de um ator do calibre de Giancarlo Esposito, como o empresário e advogado de Maxine, com suas parcas aparições e soluções apressadas e mal resolvidas. Os detetives vividos por Bobby Cannavale e Michele Monaghan servem quase sempre como alívio cômico (especialmente o primeiro) e sua resolução é insatisfatória. O mesmo pode ser dito de Leon, o funcionário de locadora de vídeo interpretado por Moses Sumney, cujo destino poderia ser apenas um comentário velado se não fosse tão súbito e pouco conclusivo, além de apontar tendências no roteiro que podem ser interpretadas tanto como comentários sagazes a respeito do formato emulado pelo filme (para quem olha para o copo meio cheio) quanto como iniciativas que perpetuam tendências há muito abandonadas e datadas não sem motivo (para aqueles que enxergam o copo meio vazio). Colocado em comparação com “X”, tal distinção fica ainda mais evidente: com um elenco muito mais enxuto e melhor desenvolvido, o filme de 2022 é, em suas limitações, muito mais inovador e astuto do que este, onde o maior pecado é, claramente, o do excesso.
Roteiro e direção fazem bom uso tanto de locações quanto de cinematografia, apesar do trabalho de sonorização comparativamente menos inspirado (ainda que imersivo) de Tyler Bates. É quase como se, evitando cair nos clichês das inúmeras produções nostálgicas pela penúltima década do século passado, o filme procurasse se diferenciar através da restrição sonora, favorecendo trilhas atmosféricas que poderiam se encaixar em qualquer produção do gênero, excetuando algumas boas escolhas de canções da época, espertamente distribuídas ao longo da narrativa. Um (ótimo) diferencial, porém, está nas partes mais sangrentas: poucas vezes se viu um longa deste nível de prestígio e proporção assumir tamanha violência gráfica, com tanto orgulho. Ajuda a quase perdoar o desfecho, desajeitado e – em retrospecto – um tanto previsível e pouco criativo, mas que, por fim, concretiza o arco de sua figura central aos trancos e barrancos.
Ti West já deixou claro que, muito embora tivesse planejado originalmente uma trilogia fechada e conclusiva, não descarta a ideia de retornar ao universo que construiu para continuar a narrativa criada. Com Mia Goth provando que, sim, é uma estrela (sem precisar gritar aos quatro ventos) e com seu papel enquanto produtora tomando mais e mais impulso, sua Maxine Minx talvez volte a agraciar as grandes telas do cinema uma vez mais, muito em breve. Oxalá seja esse o caso: apesar de render bons momentos e de até ser bem aceitável, “MaXXXine” fica aquém de ser o ponto final que sua protagonista e seu público, afinal, merecem.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.