Cinema: Entre pecados e boas atuações, “Entrevista com o Demônio” não surpreende, mas agrada

texto de Davi Caro

O momento atual para o cinema de horror pode não parecer tão inovador à primeira vista, desgastado pelo uso constante de fórmulas que fazem com que o que chega ao público mainstream se mostre repetitivo e inconclusivo. É algo, no entanto, que faz o esforço para procurar coisas novas ainda mais recompensador: o sucesso de crítica do argentino “O Mal que nos Habita” (2023) é um sinal de que existe, sim, criatividade para além do terror-pipoca, e o êxito obtido pelas investidas da A24 (que deve colher os louros do prestígio também com o vindouro “Maxxxine”) também indica que existe uma boa parcela do público disposta a furar a bolha do lugar comum em favor de boas histórias.

Esse esforço domina certos momentos dos primeiros minutos de “Entrevista com o Demônio” (“Late Night With The Devil”, 2024), dirigido pelos australianos Colin e Cameron Cairnes e lançado nos cinemas brasileiros por meio da distribuidora Diamond Films, tempos após ser disponibilizado na plataforma Shudder. O longa, que mescla tomadas típicas de documentários e elementos de “found footage” – a gravação em formato amador estabelecidas em “A Bruxa de Blair”, de 1999 – narra a história fictícia do apresentador de televisão Jack Delroy (David Dastmalchian) e de estranhos eventos ocorridos durante o especial de Halloween do programa apresentado pelo personagem. Vendo o interesse dos espectadores despencar ao mesmo tempo em que enfrenta a dolorosa morte da esposa, Madeleine (Georgina Haig), Delroy retorna de um hiato disposto a recuperar a atenção do público uma vez mais. O objetivo: convidar uma adolescente, Lilly (Ingrid Torelli) que, supostamente, teria sido possuída por um demônio.

Vencer a má vontade que (de forma compreensível) pode surgir da experiência de ter que ver mais um filme que toque no tema de possessões demoníacas leva algum tempo. A construção da história tem seu principal alicerce nos flashbacks que antecedem as filmagens do referido programa televisivo, e os poucos detalhes sublinhados neste trecho introdutório – como o fato de Jack ser um participante ativo de um rumorizado culto disfarçado de clube de campo exclusivo para membros ilustres da sociedade – realmente não ajudam muito. É no momento em que a trama se volta para o programa que os momentos bons realmente acontecem.

Muito disso se escora de maneira generosa no surpreendente carisma de Dastmalchian, habituado como é em ocupar o papel de coadjuvante só para se mostrar confiante e competente quando alçado ao protagonismo. Neste quesito, a história funciona, e bem, ao construir um clima de imprevisibilidade com poucas pistas. A aludida relação pregressa entre o personagem principal e a parapsicóloga June (vivida por Laura Gordon), responsável por acompanhar Lilly ao programa, é um dos vários detalhes sutis que a trama oculta. Já Torelli entrega uma performance bastante correta, em sua alternância entre a ternura de sua faceta adolescente e a vociferante possessão que, eventualmente, acontece diante das câmeras.

A cinematografia, nas sequências televisivas, é bastante verossímil e auxilia muito no quesito imersão na história. O contraste com outros trechos, porém, pode incomodar em vários momentos – principalmente no prólogo, onde as sequências de filmagens se mostram genéricas e resvalam no clichê (ao ponto de contarem com o canastrão Michael Ironside na narração); e nas filmagens reservadas para mostrar os bastidores da produção de TV, que parecem muitas vezes apontar para caminhos apenas indicados e nunca realmente aproveitados. A omissão de tantas mudanças talvez pudesse ter aumentado o senso de mistério em torno do foco principal do longa, no caso, a passagem da possessão de Lilly, que não consegue escapar do fantasma lançado pela memorável interpretação de Linda Blair em “O Exorcista” (1973), e opta por uma cautelosa, mesmo que desavergonhada referência ao clássico que o precedeu.

Não vão ser poucos aqueles que sairão do cinema com a sensação de vazio que só um desfecho abrupto é verdadeiramente capaz de conjurar. Ao mesmo tempo em que a técnica utilizada para exibir os eventos pode fazer uso de ferramentas de roteiro convenientes (como a falha de equipamentos de transmissão no estúdio onde o programa acontece, por exemplo), o fim do filme é pouco conclusivo, e alguma suspensão de descrença pode ser necessária para que se possa ter proveito do ato final do longa. Talvez em sua maior falha, a realização do roteiro parece se dividir entre um ponto central apressado demais, apenas para descobrir ter muito mais tempo para utilizar quando se aproxima do clímax.

O saldo final de “Entrevista com o Demônio”, para além de um surpreendente desempenho de seu protagonista e um sólido primeiro trabalho dentro do cenário mainstream para sua dupla de diretores, talvez fique aquém daqueles que buscam uma produção desafiadora, mas deve saciar aqueles que valorizam o entretenimento com leves pitadas de inovação e honestidade através de boas ideias – elementos estes que, trabalhados da maneira certa, podem (ou, pelo menos, deveriam) ser suficientes para que um filme se sobressaia nos dias atuais. Se isso é algo bom ou ruim, fica, a exemplo do filme em questão, a critério do espectador e de sua boa, ou má, vontade.

Leia mais: “Entrevista com o Demônio” traz de volta a dignidade ao cinema de horror, por João Paulo Barreto

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.

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