Entrevista: Caio Marques, Luís Pellanda e Rodrigo Stradiotto apresentam a Smoko

entrevista de Leonardo Vinhas

A Smoko é uma não banda, um grupo gestado na pandemia por três amigos curitibanos que participaram juntos de diversos projetos musicais (Woyzeck, Frutos Madurinhos do Amor, Gente Boa da Melhor Qualidade) e que, quando o isolamento abrandou, se encontrou para tocar “para desenferrujar como músicos e também para recuperar as relações, que estavam muito enferrujadas”, relembra o vocalista Luis Pellanda – Rodrigo Stradiotto e Caio Marques completam a agremiação.

Nos encontros dessa turma (que além dos três reunia vários amigos músicos de Curitiba), a banda formada na ocasião tocava covers de “Boygenius, Sharon Van Etten, Lana Del Rey, Big Thief, The National, Cure” para dar uma arejada, o que, naturalmente, apresentou aos participantes formas de composição que, um tempo depois, acabaria inspirando-os a compor, novamente, material próprio. O ponto de partida foi “Rather Be Better”, faixa que abre o disco da Smoko, que nasceu numa noite de insônia de Luis, e depois foi retrabalhada por Rodrigo.

O Fio, projeto anterior de Luis e Rodrigo, marcou presença no Scream & Yell tocando “Vendetta” no tributo à Tom Bloch lançado em 2021 – Rodrigo também lançou um EP pelo Selo Scream & Yell em 2023. “Smoko” (tratore.ffm.to/smoko) é o 45º lançamento do Selo Scream & Yell. Na conversa a seguir, os três contam sobre a gênese do Smoko, o processo das composições e do ato de fazer música enquanto forma de rezar. Cabem, ainda, várias reflexões inescapáveis a quem se interessa pela música, seja como ouvinte ou como músico.

O que motivou vocês três a se juntar e compor canções juntos?
Rodrigo Stradiotto: Bom, a gente sempre teve coisas juntos.

Caio Marques: O Rodrigo produziu um EP meu.

Rodrigo Stradiotto: Começou antes. Uma das primeiras gravações que eu fiz na minha vida, experimentando ainda, foi com uma banda do Caio chamada Frutos Madurinhos do Amor (risos).

Caio: O Luis foi um dos integrantes inclusive. Era uma banda contemporânea ao Woyzeck. Nós éramos amigos desde essa época. Eles eram os caras do Woyzeck e eu sempre andava por ali com eles. Sempre meio que trabalhamos e trocamos ideias desde os anos 1990.

Luis Pellanda: Meio que pra resumir: com o Rodrigo eu fiz o Woyzeck e fiz O Fio. Com o Caio, eu estive no Frutos Madurinhos do Amor e no Gente Boa da Melhor Qualidade, que era um grupo de samba. E o Caio era uma espécie de participante-coringa nos primeiros anos do Woyzeck. Aí o Rodrigo fez a produção do “Calada”, um EP do Caio. E agora eu faço letras para o trabalho solo do Caio. Acho que essas são nossas relações diretas.

Rodrigo: É uma coisa bem promíscua, né? (risos)

OK, mas aí vocês decidiram fazer algo juntos em um determinado momento…
Luis: A semente do Smoko está na pandemia, ou talvez um pouco antes, quando eu estava fazendo O Fio com o Rodrigo. Eu e ele tínhamos feito um monte de coisas, íamos lançar novas faixas, mas aí veio a pandemia e houve aquele balde de água fria. A gente tinha planejado um monte de coisas e deixou tudo de lado. Meio que desanimamos daquilo, ficamos traumatizados, sei lá. Só sei que, na época, o Caio tinha falado que tinha algum interesse em participar d’O Fio. Só que a gente deixou tudo tão em suspenso que nunca mais voltou à tona. E aí durante a pandemia, para não enlouquecer – como quase todas as pessoas precisaram fazer – nós mantínhamos um grupo semanal de reunião online: éramos eu, o Caio, Rodrigo e outros amigos, também músicos. Nós nos reuníamos toda quinta-feira, se não me engano, e ficávamos falando de música, de política, de várias coisas, enquanto as pessoas morriam aos milhares ao nosso redor, no meio daquela atmosfera de adoecimento geral. Quando houve a abertura do isolamento, a primeira coisa que nós fizemos foi começar a tocar, porque era uma saudade muito grande que nós tínhamos. Foi o grupo todo. A gente se reunia na casa do [José Carlos] Branco, que foi o baterista do Woyzeck, do Bad Folks – que é outra banda do Caio –, do Excelsior – que é que o Rodrigo teve. Ele tem o estúdio de ensaio montado, e nós íamos até lá, nós e outras pessoas, e tocávamos qualquer coisa que a gente quisesse sem nenhum compromisso.

Caio: A gente tocava Boygenius, The National, Alejandro Escovedo… o que aparecesse.

Luis: E que fosse fácil (risos). Se fosse complicado, a gente passava pra outra.

Rodrigo: Tocamos Elton John, The Cure…

Luis: Tocávamos para desenferrujar como músicos e também para recuperar as relações, que estavam muito enferrujadas. É difícil eu falar hoje que eu não tenho interesse em seguir uma carreira como músico, porque isso é algo que eu quis fazer a vida toda, desde que eu era pequeno, e tentei, tentei e tentei, e quebrei a cara várias vezes. Mas no caminho adquiri muita experiência, que uso em tudo que eu faço hoje. Mas mesmo não querendo mais seguir carreira, eu ainda sentia muita vontade de cantar. Eu sei que o Rodrigo e o Caio têm isso ainda como um norte na vida deles: eles são músicos realmente, enquanto eu sou meio que um passageiro na música – sei um pouco de música, toco muito pouco, e canto. Hoje trabalho com literatura, principalmente, mas eu queria poder cantar porque me fazia muita falta. Durante aquelas reuniões, aqueles ensaios, resolvemos compor coisas nossas e ver o que acontecia, já que hoje existe outra dinâmica de produção e gravação.

Rodrigo: A gente começou num grupo maior e foi reduzindo, mas alguém sempre jogava essa ideia de fazer algo nosso. E quando a gente estava mais ativo, lá por 2022, a gente começou a fazer. Mas a verdade é que essas músicas do álbum surgiram quando a gente já não estava mais se encontrando para tocar. Começou em maio do ano passado. O Luis estava com algumas insônias…

Caio: O Luis apareceu com uma canção que ele fez de madrugada. Uma estrofe, na verdade.

Luis: Eu sofro de insônia, e naquele momento elas estavam mais presentes na minha vida. Para não ficar na cama fritando, vou até a sala, fico lendo, fazendo alguma coisa, e por algum motivo, naquele dia, eu peguei o violão, fiquei tocando bem baixinho e pensando em uma letra. Saiu alguma coisa, gravei no celular, mandei para eles no grupo que a gente tinha, e falei, “ó, se alguém achar que isso aqui rende alguma coisa…” E era “Rather Be Better”, que é a primeira música do álbum. Eles gostaram, o Rodrigo pediu para eu gravar a voz de novo…

Rodrigo: A melodia era muito legal, eu a peguei, mudei a harmonia, mandei de volta pro Luis e ele fez uma estrofe inteira. Daí fizemos a harmonia e a melodia do refrão, montei o esqueleto da canção, o Caio fez o baixo, e eu toquei o restante dos instrumentos.

Luis: A partir daí, foi mais ou menos isso: partia de uma ideia que eu tinha e que eu fazia no piano ou no violão, e mandava para eles; ou então eles tinham uma ideia e mandavam para eu colocar uma melodia, uma letra. A gente nunca se encontrou, mesmo podendo se encontrar! Já não havia mais pandemia, mas a gente fazia isso sempre pelo celular. A gente recebia os resultados do Rodrigo pelo celular, ouvia, e todas as vozes eu gravei no celular – bem baixinho, porque era de madrugada e não queria acordar as crianças (risos). E essa necessidade de cantar muito baixo, por ser no celular, acabou definindo um pouco o estilo vocal do Smoko.

Caio: O Luís fala que agora ele é só escritor, mas ele é um grande cantor e um grande melodista. As melodias ele realmente encaixava nas músicas do Rodrigo, nas ideias do Rodrigo. Eu participei mais na composição de duas canções, o resto eu ficava criando baixo. Eu não sou baixista, mas eu tinha comprado um baixo para tocar naquelas reuniões.

Luis (surpreso): Você comprou esse baixo para tocar naquelas reuniões?

Caio: Foi! Eu estava com muita vontade de tocar baixo (risos).

Quando o Rodrigo me apresentou as músicas pela primeira vez, ele me falou que elas também tinham sido influenciadas por aquelas músicas que vocês tocavam, no sentido de que vocês tinham se dado conta de que as bandas que vocês gostavam faziam grandes canções com muito pouco, em termos de notas e acordes. Vocês se deram conta dessa simplicidade presente nas coisas que vocês estavam gostando de ouvir, e que isso foi algo que vocês conscientemente levaram para o Smoko.
Rodrigo: Tem uma coisa que eu acho que acontece não só com a gente, mas com várias pessoas, que é… Bom, o Gente Boa de Melhor Qualidade surgiu em um momento em que o Woyzeck ia fazer um show acústico e a gente achou que nossas músicas soavam uma merda nesse formato. Era uma merda, pavoroso.

Luis: O Woyzeck era muito complicado: era muito difícil fazer, é muito difícil tocar. Se alguém quisesse um dia fazer um cover da gente, estaria fodido (risos). A gente se dedicou àquilo, mas era uma maluquice total.

Rodrigo: Já com o show acústico agendado, e vendo que nada estava ficando bom, decidimos tocar samba. Pegamos uns sambas clássicos, que a gente gostava, e também uns dois forrós. E foi um grande sucesso! (risos). A gente gostou bastante de tocar, também, e se tornou um projeto autônomo. Eu saí, o Caio e o Luis seguiram. Depois a gente fez uns shows com o Woyzeck onde a gente tocava uns covers. E sempre depois desses projetos, a gente voltava com ideias diferentes, abastecidos. Parecia que reacendia, que a gente se desprendia de vícios, dava um tesão novo. O nosso terceiro disco sai depois de uma série de shows onde tocávamos esses covers, e ele já era mais arejado. A música pop é legal porque você vê que um Elton John, como ele toca o piano, parece muito complexo, mas é harmonicamente simples. Soa complexo pelo jeito que a melodia é construída. Então esses covers que a gente tocou depois da pandemia deu essa arejada, nos ajudou a compor sem quebrar a cabeça. Muitas vezes está muito na cara que você tem uma coisa legal, mas não percebe, né?

Luis: Nenhum de nós três é uma pessoa religiosa, mas nós, claro, somos seres humanos e temos toda uma carga, uma cultura atrás de nós, e a música tem muito a ver com religiosidade. Esses momentos em que a gente se reuniu na vida e tocou música dos outros, considero que a gente estava rezando. Na passagem dos anos 80 para os 90, Curitiba era tomada por bandas covers, e a gente, que nasceu como músicos nesse ambiente da música independente, tinha muito presente a premissa, a “obrigação” de fazer música própria. A gente entrou nessa pilha de fazer o nosso, mas quando a gente se reúne para fazer música dos outros, é como se a gente rezasse. Essa é a sensação que eu tenho. Quando a gente toca e canta, parece que a gente reza, e esse é um movimento para cima, que substitui essa mola religiosa que leva a gente pra frente. Isso nos alivia.

Rodrigo: Complementando isso que o Luis falou, me ocorreu agora que a gente não tem aquele lance de “tocar os clássicos”. Pô, tocamos Boygenius, Sharon Van Etten, Lana Del Rey, Big Thief…

Caio: Mas teve um momento quando já estávamos só nós três em que a gente decidiu fazer só músicas de bandas com mulheres (risos).

Luis: Sim, sair do ambiente masculino e ir para outro lugar.

Caio: Esse encontro em que a gente tocou só coisas de meninas – e meninas que estavam arrebentando. Vamos combinar que Boygenius arrebentou, os dois discos são incríveis, pra mim parece um Crosby, Stills, Nash & Young dos anos 2000. É um troço de altíssimo nível. E aí a gente viu que a música delas é uma coisa simples e bonita, que (ri) até a gente consegue cantar. Eu acho que elas foram uma grande influência pra gente optar por esse caminho de menos acordes, mais diretas, mais simples, mas bonitas. Buscávamos uma beleza que não estivesse somente na harmonia difícil.

É engraçado vocês citarem esses artistas aí como catalisadores, porque não se escuta a influência direta deles no resultado final. Escuta-se mais algumas referências mais antigas de vocês, como a fase pós-Mick Harvey do Nick Cave and The Bad Seeds, um pouco de Talking Heads, de Massive Attack. Então foi mais uma influência espiritual, como o Luis falou.
Luis: A gente sempre escuta música de agora. Não temos essa coisa de “ah, porque antigamente…” Na verdade, a gente escuta música todas as épocas. O que a gente fez foi talvez vampirizar um pouco a energia desses novos artistas sem necessariamente fazer o que eles fazem.

Caio: Mesmo porque não conseguiríamos…

Rodrigo: Mas eu acho que tem uma coisa interessante, que é assim: está evidente que as meninas do Boygenius ouviram muito Nick Cave, muito The Cure.

Luis: A St. Vincent também. Ela tem esse nome por causa de uma música do Nick Cave, você vê que ela também ouviu Talking Heads.

Rodrigo: Então, acho que essas pessoas não foram as referências estéticas, mas os pontos de partida que tivemos foram os mesmos, ainda que sejamos de gerações diferentes. Mas o que o Luis falou sobre esse lado mais sacro da música: a gente é amigo desde os 13, 15 anos, e música sempre foi algo comum a todos, sempre foi uma “cola”. Literatura meio que anda de mão dada, cinema um pouco menos, mas a música esteve e está sempre ali.

A música está sempre aí, mas não vai para os palcos dessa vez, porque vocês têm bem claro para si que não vão fazer nenhum show (risos). Que não há interesse em tocar só vocês três com várias pistas pré-gravadas, nem chamar outros músicos. De onde vem essa decisão de não tocar ao vivo? Imagino que exista um certo fastio com a precariedade do circuito de shows autorais, mas também dessa falta de vontade de fazer uma reprodução mecânica, inanimada, do que vocês criaram.
Rodrigo: Hoje em dia, eu vejo o pessoal da nova geração com um cuidado técnico, de estudo de instrumento, que nossa geração e mesmo outras de pouco tempo atrás não tinham. Acho que foi muito frustrante para nós, ao longo dos anos, ficar tentando fazer shows bons, no sentido de clareza musical, de não soar uma maçaroca cheia de microfonia. Até na MTV foi frustrante, fomos gravar um programa lá e foi uma bosta, a gente não se ouvia. O Brasll teve um acesso a uma melhoria técnica muito grande nos últimos 10 anos. Eu montei um estúdio, o Caio também tem um home studio, e a gente percebeu que ali as coisas acontecem, que não tem essa frustração (Caio ri). Se a gente vai tocar num bar X, tem que disputar volume com a galera conversando, o PA apita se aumentar um pouco… Está melhorando, mas é uma coisa que a gente fica bolado.

Luis: Se vocês me permitem, tem uma coisa que diz respeito a mim, que eu não gostaria de fazer shows porque eu preciso dedicar quase todo o meu tempo ao meu trabalho. Eu preciso ajudar em casa, com criança e um monte de coisas, e eu não posso mais trabalhar de graça. A música que a gente faz não dá dinheiro, e eu não poderia me dedicar tanto a ponto de fazer show, viajar, e deixar de fazer outras viagens e outros trabalhos na área de literatura, que é a área que me paga por isso. O Brasil não mudou muito nesse sentido. Pode ter melhorado tecnicamente, mas a gente não pode fazer nada em relação a isso. Eu tenho um monte de responsabilidades para resolver e não posso simplesmente começar a fazer show para lá e para cá sem ser pago. E é isso. A dedicação que eu dou à música agora é totalmente afetiva, emocional. Não é racional. Quando eu escrevo livros, colunas ou qualquer outro trabalho ligado à área editorial, eles são não só extremamente racionais, porque eu tenho que me dedicar muito a questões de linguagem e às coisas em volta, mas é também solitário. O contato com o leitor vem depois. Na música, eu vou suprir essa falta da criação coletiva. A opção pelas letras em inglês é justamente para eu não pensar tanto. São letras mais simples, não são na minha língua nativa, porque tenho que me ater a uma coisa mais direta, mais objetiva, ou até mais flutuante, sem eu ter tanta responsabilidade sobre o que a música diz.

Vocês querem que esse disco saia. Para quem é esse disco?
Rodrigo: A quem interessar possa? (risos)

Luis: No meio literário, existem muitos autores que dizem que escrevem para um leitor que são eles mesmos, “eu escrevo o que eu gostaria de ler”, dizem. Não acredito que seja assim, porque se fosse, a pessoa escreveria, guardaria na gaveta, em casa, e leria quando tivesse vontade. Ela não ficaria enchendo o saco de um editor, pedindo “me publica, por favor” (risos). Quando eu escrevo, é para que aquilo encontre uma ressonância naquele momento, é para criar uma rede de pessoas cuja sensibilidade possa se comunicar, naquele momento, através de algo que para mim foi importante. Quando a gente faz essa reza que é a música, é pelo desejo de criar essas pontes. Acho que todo mundo, não só artistas, fazem as coisas dessa maneira. Quando a gente vai tomar um café ali na esquina, é em busca de alguém com quem a gente se comunique.

Rodrigo: A gente está muito carente de diálogos, e essa é a nossa maneira de propor um diálogo com o mundo exterior. A música é a nossa principal ferramenta, talvez a coisa mais primal, mais basal, que a gente tem.

Luis: Antes de falar, o ser humano cantava.

Rodrigo: Ela é quase um sinal de fumaça da nossa necessidade de tentar ressoar. Mesmo que seja em uma bolha. A música que fizemos se comunicou primeiro entre nós. Agora vamos jogar no mundo.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

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