texto de Leandro Luz
Se você ainda não se deparou com o nome de Paul B. Preciado, não se preocupe, muito em breve você irá. Os mais atentos já devem ter observado as prateleiras das livrarias mais antenadas (que ainda resistem ao neoliberalismo vigente) povoadas pelos seus livros. Filósofo, curador e pesquisador no âmbito das políticas do corpo, do gênero e da sexualidade, Preciado teve diversos de seus trabalhos traduzidos para várias línguas ao redor do mundo (“Um Apartamento em Urano”, “Pornotopia” e “Testo Junkie” são alguns exemplos). Mais recentemente, o autor espanhol também marca forte presença nas salas de cinema com “Orlando, Minha Biografia Política” (2023), documentário de partida subjetiva e de pretensões coletivas que dirigiu tomando para si o imaginário do romance histórico de Virginia Woolf.
Ao receber um convite para conceber uma espécie de autobiografia, Paul B. Preciado refutou a ideia afirmando que a sua já havia sido escrita em 1928, justamente por Virginia Woolf. Ele se refere, evidentemente, ao notável “Orlando: Uma Biografia”, romance da escritora britânica baseado, em partes, na vida de seu notório affair, a também escritora Vita Sackville-West. Portanto, resta a Preciado compor um mosaico cinematográfico que tanto apresenta para o mundo a ousadia vanguardista de Woolf como expande o seu próprio percurso artístico e acadêmico ao transpor para imagens e sons o que há tempos vem investigando por meio de suas pesquisas e publicações.
No romance, Orlando é um nobre inglês nascido na Inglaterra durante o reinado de Elizabeth I que, num belo dia, de uma hora para outra acorda mulher. No documentário, Orlando são muitos… tantos que as suas histórias, personalidades e performances se misturam em uma massa densa, repleta de cores e nuances surpreendentes. Se Woolf encara a transgeneridade de sua personagem com inócua naturalidade, Preciado demarca muito bem os obstáculos e as dificuldades que os seus Orlandos precisam enfrentar diariamente para que possam existir de forma plena.
Com depoimentos ora emotivos e marcantes, por vezes doloridos, ora empoderados e contestadores, Preciado costura um documentário inventivo, repleto de sutilezas, que sabe deixar as suas personagens à vontade para contar as suas histórias e emprestar as suas vozes para Orlando e, com isso, deixarem-se espelhar na vida e na ficção do diretor. Formalmente, é interessante quando o discurso de Orlando-personagem se mistura com os dos Orlandos-performers: Preciado se utiliza dessa justaposição para montar a sua tese, que fica mais interessante na medida em que o texto de Woolf se confunde e se imbrica cada vez mais com o mundo contemporâneo (os hábitos desenvolvidos na internet, a natureza das redes sociais, a consciência no que tange às questões de representatividade); século XX e XXI se encontram, sem amarras, e como Woolf, Preciado também brinca com o tempo (o histórico e o narrativo).
Um homem trans de 15 anos, com uma potência vocal e uma oratória de dar inveja, tem um dos discursos mais fortes do filme. Ele olha para a câmera, revela o seu nome e comenta que irá interpretar o personagem Orlando, de Virginia Woolf. Este exato procedimento é repetido exaustivamente por todas as pessoas que aparecem diante da câmera. Cada ator / performer se apresenta e expõe o papel que está interpretando (os diversos Orlandos ou os poucos coadjuvantes também saídos do romance). Apesar de improvável, a quantidade de personagens não prejudica a estrutura do documentário porque praticamente todos eles estão representando uma única figura, resguardadas as suas respectivas subjetividades “da vida real”. A encenação estilizada e minimalista, no entanto, também repetitiva, esta sim se desgasta, sobretudo do meio para o final do filme.
O que era um tratamento de ficção para Woolf, Preciado encara como realidade pura. Pessoas trans e não-binárias interpretam os seus Orlandos e representam a si mesmas expondo as suas inseguranças, os seus desejos, as suas feridas. Preciado também se coloca enquanto sujeito na narrativa, e dosando bem essa intervenção autocentrada apresenta suas ressalvas quanto ao texto de Woolf: como poderia uma pessoa trans sair ilesa de tamanha transformação, sem cicatrizes, sem críticas? A partir deste questionamento, o filme convoca os seus performers a transgredir a paz e o sossego da aristocracia européia e traçar, por meio de suas histórias e da resistência de seus corpos, um paralelo entre a fantasia da ficção e as duras batalhas travadas em seus cotidianos, entre o “primeiro mundo” e as “periferias do mundo” no âmbito contemporâneo. Neste sentido, é emblemática a cena da distribuição dos passaportes que fecha o filme, em um gesto que reconhece todos os “Orlandos” com as suas identidades e livres para habitar e deslocar-se seja lá por onde quiserem. As crianças que aparecem em uma das sequências finais também representam um gesto poderoso, pois apontam para um futuro de esperança que nem a escritora mais auspiciosa e utópica teria sido capaz de imaginar.
– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.