entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
“Se ‘Vergonha Na Cara’ fosse o meu último trabalho, e espero que não seja, eu ficaria satisfeita por ser o meu derradeiro ‘statement’”, diz-me Joana Espadinha em jeito de confissão inicial enquanto conversamos numa esplanada de um café em Algés (vila próxima de Lisboa). O foco da entrevista que conduzo é o seu mais recente álbum, “Vergonha Na Cara” (2024), que está sendo lançado em vinil e CD pela Rastilho e sucede a “Ninguém Nos Vai Tirar O Sol” (2021) e a trabalhos como “O Material Tem Sempre Razão” (2018) e “Avesso” (2014) em que se afirmou como uma das mais interessantes cantautoras portuguesas da atualidade. “Vergonha Na Cara” é o disco em que Joana assume, aos 40 anos, o que quer sem rodeios, num manifesto de liberdade e independência, mas também revelando a sua vulnerabilidade quando canta o amor, os relatos cotidianos e a sua transformação pessoal e artística ao longo dos anos.
É indiscutível que a artista lisboeta redescobriu a sua voz e manifesta uma confiança acrescida em contraste com o questionamento da adolescência também abordado. Exemplo disso é o primeiro single, “Será O Que Será”, que representa um estímulo a viver o presente plenamente, bem como “Vestir A Camisola” (uma canção que segundo a própria “fala sobre a viagem que o amor proporciona e torna as relações mais fortes e imunes às mudanças de vento”). A faixa-título completa o lote do pop mais solto e afirmativo do disco e nela Joana Espadinha assina uma das estrofes marcantes do trabalho quando canta: “Posso não querer usar baton / mas nunca mais vou moderar o tom / tiro a mordaça na noite calada”. Sobre o âmago da música, a artista sublinha o seu espírito desafiador: “Se calhar é uma provocação para mim própria em que digo: “Deixa lá de moderar o tom e assume o que queres dizer”, porque a condição feminina não tem de ser uma saia travada. Até mesmo se eu quiser ser um cliché feminino, é a minha escolha e a minha liberdade e não porque alguém achou que devia ser isto ou aquilo”.
O álbum revela igualmente uma vertente mais melancólica, incluindo momentos introspectivos (“Que A Vontade Nunca Mude”) e oníricos (“Até Caír Em Mim”) nos quais a belíssima narrativa sonora de “Estamos Conversados” assume um lugar de destaque. Esta faceta não menos interessante é fruto de uma reflexão interior que atinge o seu ponto de maior maturação no seu trabalho atual. Recentemente, Joana Espadinha fez um bem sucedido mini tour de apresentação do disco atuando em Lisboa, Coimbra, Felgueiras e Porto acompanhada pela sua banda formada por António Vasconcelos Dias (guitarras), Margarida Campelo (teclas e voz), Pir (guitarra elétrica), Francisco Brito (baixo) e Nuno Serafa (bateria). Para além de destacar a “lufada de ar fresco” no grupo que a entrada de António proporcionou, o prazer de tocar as novas canções e constatar a diversidade geracional da assistência, a cantautora aponta outro fato que também lhe agradou: “Se calhar a surpresa tem sido perceber que fiz um caminho e já não sou uma desconhecida para o público que assiste aos meus concertos e isso sabe muito bem”.
Com um percurso diversificado que lhe rendeu faixas emblemáticas como “Leva-me a Dançar” ou “Mau Feitio”, escrevendo canções para outros artistas (um desses casos é “Ginger Ale” que seria interpretada por Diana Castro no Festival da Canção de 2022) ou como integrante dos bem sucedidos Cassete Pirata, Joana Espadinha atingiu um grau apreciável de reconhecimento no panorama musical português. Por esse motivo, torna-se pertinente aferir as suas ambições futuras como cantora e compositora em função da produtividade que tem pela frente. “O meu objetivo seria tocar ao vivo vezes suficientes para que seja sustentável, ou seja, para poder prolongar a minha profissão o máximo de tempo possível. Parecem objetivos um pouco humildes, mas não são. Se eu puder fazer isto será o sonho da minha vida, manter esta profissão, continuar a dar música às pessoas e escrever canções para outros artistas”, conclui.
De Lisboa para o Brasil, Joana Espadinha conversou com o Scream & Yell. Confira:
Passaram-se três anos desde a edição de “Ninguém Nos Vai Tirar O Sol”. Quais foram os fatores pessoais e as referências temáticas e musicais que você transportou para o novo trabalho?
Este álbum não foi feito durante o período do covid-19 e isso foi uma coisa que teve muito impacto. O disco anterior, “Ninguém Nos Vai Tirar O Sol” (2021), tinha sido produzido pelo Benjamim. Nós gravámo-lo no estúdio e não pudemos estar o tempo todo na pré-produção das canções e fizemo-lo de forma mais curta. Foi um trabalho como banda e depois gravámos em estúdio durante uma semana e finalmente realizámos a pós-produção. Mas, houve algumas incertezas, derivadas das contingências da época, porque não sabíamos se seria possível registra-lo em estúdio e até fazê-lo não estávamos seguros. Gravei esse álbum com um barrigão de oito meses e estava quase a ser mãe. A minha vida transformou-se com o nascimento do meu filho e há todo um processo de reconfiguração e de redescoberta de quem somos pessoalmente e artisticamente também. Passei por uma fase em que não fiz shows durante muito tempo e isso fez-me repensar a música que eu estava a escrever se era exatamente o que eu queria e o que faltava dizer. Sinto que quando comecei a compor este disco estava com a cabeça mais aberta e a procurar coisas diferentes. Não queria só fazer canções pop açucaradas, mas também pretendia abordar a melancolia, assuntos mais sérios e esteticamente desejava que a voz tivesse mais espaço para respirar e se escutassem mais instrumentos acústicos. Para além disso, cheguei a um ponto no meu trajeto em que decidi assumir um bocado o controle, tive uma equipe nova a trabalhar comigo e tenho duas managers, que são grandes amigas, com quem tomo as decisões. Acabei por sentir que agarrei a minha carreira e passei a seguir mais os meus instintos e a direcionar algumas coisas. Isto para além da parte das resoluções de fazer a música. Acho que a circunstância mais importante no pós-maternidade e depois do álbum “Ninguém Nos Vai Tirar O Sol” foi de repente eu ter reunido as ferramentas que me permitiram ter a liberdade para mostrar quem sou como artista e para arriscar um pouco mais. Passou por sair da minha zona de conforto e recuperar algumas coisas que perdi ao longo destes 10 anos, nomeadamente este aspecto da melancolia e da tristeza que também é importante ser cantada.
O disco revela maior profundidade, mais risco e uma amplitude sonora superior. Gostaria que me falasse um pouco sobre o trabalho do produtor António Vasconcelos Dias e dos horizontes que ele abriu para as suas novas canções.
Quando iniciei o meu trabalho com o Tony (António Vasconcelos Dias) ele começou por ser diretor musical do projeto. No ano passado mudei de agência e fiz alguns shows e queria dar uma volta ao repertório e precisava de alguém externo para fazer direção musical, porque nós trabalhamos entre amigos e às vezes é difícil não perder perspectiva. São pessoas que já nos conhecem há muito tempo e era preciso um par de ouvidos frescos para perceber que caminhos poderiamos seguir. Foi muito fixe (legal) trabalhar com o Tony e os músicos também gostaram muito. Nessa altura eu já estava a colaborar com o Ben Monteiro (produtor do primeiro single “Será O Que Será”) e depois propus ao Tony abordar duas canções específicas. Aquilo correu tão bem e perguntei-lhe se ele queria fazer o resto do disco. Ele e eu temos em comum a influência da música norte-americana e do folk, que era algo que eu queria trazer de volta para a minha música. Além de ser baterista e tecladista, ele toca muito bem guitarra acústica e tem muito esse imaginário do Blake Mills e da Fiona Apple. Trabalhámos regularmente, sem pressa, mas a dada altura houve um prazo para cumprir e foi mesmo uma maratona (risos). Escutámos muita música na fase inicial, partilhámos ideias e ele tem um amor pelo analógico que é comum ao Benjamim, como é o caso da escolha dos teclados mais antigos. Isso funcionou bem e eu tenho uma ligação física forte com a música apesar dos meios digitais nos darem muitas vantagens hoje em dia. Eu gosto bastante de ouvir uma bateria com som real, de escutar um Rhodes e o Tony tem isto tudo. A escolha dele como produtor foi fundamental, porque é uma pessoa que me dá muita liberdade e é apaixonado pela música. Acima de tudo foi uma parceria e nunca senti que havia uma hierarquia em que eu ou ele mandávamos. Nós íamos experimentando e isso é responsável por este disco nos representar tão bem e eu me sentir tão orgulhosa.
Deu ao álbum o título de “Vergonha na Cara” para sumarizar os diferentes estados de espírito que aborda no trabalho ou por refletir de alguma forma o seu momento presente?
Acho que são todos esses aspectos. Os meus discos têm sempre o nome de uma canção que se encontra no álbum. A música “Vergonha Na Cara” foi das primeiras a ser escrita para este trabalho e do lado mais autobiográfico. É uma canção que vem resolver uma certa timidez e mais do que isso o medo de falar e de dar a minha opinião que vinha da adolescência e tive de o processar. Portanto, reflete muito este tempo presente. É uma fase em que sinto não ter muita coisa a perder e a minha família e os meus amigos gostam de mim pela pessoa que sou. Eles sabem quais são as minhas opiniões e não temos de concordar em tudo. Já não é razoável esconder-me e não confiar nos meus instintos. Perante essa circunstância, de repente, o título “Vergonha Na Cara” fazia todo o sentido. Os nomes dos discos dão sempre muita discussão, pensamos: “Será que é um título estranho? Será que devíamos dar-lhe outro nome? Depois concordámos que era o que pretendíamos. É isto mesmo que eu quero dizer, porque neste momento não tenho vergonha na cara (risos). Acho que sumariza a liberdade e a procura de liberdade também. De fato, estamos numa sociedade muito polarizada e obviamente existem forças assustadoras, nomeadamente políticas, que pretendem um retrocesso de direitos, mas também há maneiras diferentes de pensar. A resposta não deve passar por catalogarmos as pessoas por causa de determinada opinião. Devemos ouvir-nos uns aos outros, protegendo a liberdade, mas é preciso empatia para perceber porque é que certas opiniões surgem e que muitas vezes estão relacionadas com o sofrimento das pessoas e com problemas que não estão a ser atendidos.
No seu trabalho, encontramos o pop que a define, mas também fases de maior introspeção, solenidade e de sonho e a faixa derradeira, “Estamos Conversados”, destaca-se pelo seu teor cinemático e por uma sonoridade envolvente. Em que se inspirou para compor a canção?
Esta foi uma das músicas em que a maquete inicial já estava muito próxima do ambiente da canção. No sentido em que eu pus um beat e assim ficou. Era uma coisa do tipo Angel Olsen e igualmente um pouco do Los Hermanos. Eu gosto bastante de contrastes e queria algo com uma energia mais ‘rough’ e que tivesse alguma poesia e fragilidade. Tony adorou a faixa. Esse foi o arranjo dele que eu acho que está mais conseguido no disco todo. A envolvência da música foi graças ao Tony. Ele fez um arranjo de sopros que quase não soa a sopros e parece uma orquestra gigante, ao mesmo tempo que combina com uma coisa mais roqueira, e o som de guitarra do Pir também é muito responsável por esse ambiente. São praticamente dois universos. O começo é mais duro e depois entram os sopros e parece que são as estrelas e a noite a abrir. É a parte em que diz: “A cidade dorme”. O Tony mandou-me a maquete com o arranjo quando eu estava no supermercado. Ele disse: “Olha lá este arranjo que eu fiz!”. Eu escutei e senti que foi muito inesperado o sítio para onde o Tony levou a canção e é sem dúvida um dos meus momentos favoritos do álbum.
Para além do seu percurso solo, você integra os Cassete Pirata, que lançaram recentemente o álbum “A Família”, e compõe regularmente para artistas como Carminho ou Cláudia Pascoal, entre outros. Em que medida esses trabalhos a estimulam a superar-se no seu trajeto em nome próprio?
Os Cassete Pirata são um projeto que eu vi nascer e o Pir (João Firmino, vocalista, guitarrista e compositor do grupo) é o meu companheiro e acabei por assistir ao nascimento das canções e perceber os assuntos que se estão a falar. Tenho muita admiração pelo Pir como compositor e músico e tem sido um grande braço direito ao longo destes anos. Ele é uma pessoa sem a qual eu não faria música provavelmente. Os Cassete Pirata possibilitaram-me a oportunidade de não ser ‘frontman’ e os olhos não estão postos em mim. Isso deu-me bastante liberdade e ajudou-me a vencer alguns monstros do palco, que é um lugar de extrema vulnerabilidade. Nós artistas somos seres humanos e há dias menos bons em que estamos a duvidar de nós próprios. Nesses dias é muito complicado enfrentar uma plateia e vender uma confiança que podemos não estar a sentir, porque o público espera uma transformação e se tudo correr bem é isso que vai acontecer. Há uma canção no meu novo disco que fala disso (“Nascer do Zero”). Claro que com os Cassete Pirata, sem o holofote em mim, foi muito libertador. Tanto os músicos com que eu trabalho nos Cassete Pirata como os que colaboram comigo no meu projeto solo, alguns em comum, são pessoas com quem tinha uma excelente amizade ou tornaram-se grandes amigos. Isso é um privilégio, porque é uma indústria e uma carreira dura, tem muitos altos e baixos e passamos bastante tempo além do tempo que é passado no palco. Se não houver uma relação forte com essas pessoas acho que já não estaria nesta profissão, porque eles puxam o melhor de mim. Depois, reflete-se no trabalho e fazemos melhor música por nos darmos bem e termos essa ligação. Eu tenho sido muito afortunada com as pessoas que trabalham comigo, tanto com produtores como músicos. Escrever para outros artistas é quase como viver outras vidas, porque não faz sentido que seja eu a cantar em todas as canções. Adoro tentar perceber qual é a música que vai encaixar naquela história de vida e naquele intérprete. É uma das coisas que mais gosto de fazer e acho que quando não tiver voz física continuarei a tê-la através das minhas canções. Isso transmite-me muita segurança e felicidade.
Na última entrevista que lhe fiz, você citou a Rita Lee como uma das suas influências. Como, infelizmente, ela já não está entre nós, gostaria de saber se existe atualmente outro músico brasileiro com quem gostasse de fazer uma parceria ou escrever uma canção?
Há imensos músicos brasileiros com quem gostava de fazer uma parceria. Eu conheci a Julia Mestre quando ela esteve em Portugal. A Julia é extraordinária, bem como outros músicos com quem trabalha como é o caso do Zé Ibarra. O Tim Bernardes é uma grande influência, porque ele é um super-músico, super-cantor, super-compositor, arranjador e instrumentista. É uma geração de músicos do Brasil que é fantástica e alguns talvez ainda não sejam conhecidos do grande público brasileiro, mas deviam ser. Eles têm uma qualidade que eu vi em muito poucos artistas ao longo da minha carreira. Alguns deles já fizeram parcerias com músicos portugueses. O Tim Bernardes cantou com o Salvador Sobral e o Capitão Fausto e a Julia Mestre já gravou uma canção com a Maro. Portanto, fico muito contente que esta ponte esteja cada vez mais sólida e eu quero que ocorram cada vez mais parcerias. Estes três que eu citei são fundamentais. Claro que o sonho da minha vida era conhecer e cantar com o Chico Buarque ou, pelo menos, escrever uma canção com ele (risos). Eu adorava ir ao Brasil, porque nunca fui e é um grande sonho. Pretendo visitar, mas também gostaria imenso de me apresentar lá. É um país com uma cultura que me inspirou bastante e faz muito parte da minha história apesar de nunca o ter visitado. Por isso, peço que continuem a apoiar a cultura e a variedade cultural. Estejam atentos ao talento que há no vosso país, porque é enorme.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre a entrevista é de Joana Linda / Divulgação