Entrevista: “Fazer cinema requer muito esforço, trabalho e pensamento”, diz o diretor Cláudio Marques

entrevista de João Paulo Barreto

Presente como um dos destaques da Mostra Competitiva da edição 2024 do tradicional festival curitibano Olhar de Cinema, “A Mensageira”, filme do diretor Cláudio Marques, convida o espectador a uma imersão em um cinema cujo ritmo de uma montagem atenta às atuações, juntamente a uma opção de razão de aspecto de tela a criar uma sensação de sufocamento, prima por salientar a reflexão de seu tema central. No caso, as engrenagens de um sistema judiciário corrompido e apodrecido a esmagar quem mais precisa dele.

Na trama, uma oficial de justiça se vê diante da inércia de tentar sobreviver a esse esmagamento e, confrontada pela suposta isenção de como encara seu trabalho e, ao mesmo tempo, percebendo-se como uma futura vitima fatal desse sistema corrupto, decide lutar contra. No processo, um reencontro com sua ancestralidade, religiosidade e raízes familiares lhe ajudam a seguir adiante.

Nesta entrevista ao Scream & Yell, o diretor abordou um pouco do processo de criação deste mais novo trabalho além de citar referencias elencando nomes como Orson Welles (“A referência mais evidente”), o cinema português e “Robert Bresson e Aki Kaurismaki. Jamais fui tão radical quanto eles, claro. Mas são inspirações”, confessa, contando ainda que “’Ida’, de Pavel Pawlikowski é uma referência estética muito forte” para “A Mensageira”. Tem mais! Leia abaixo!

Após “Depois da Chuva”, “Cidade do Futuro” e “Guerra de Algodão”, você apresenta em “A Mensageira” um filme com um tempo mais estendido tanto em metragem quanto ritmo de cena, enquadramentos sempre concisos, planos com uma economia de imagem palpável, sutis panorâmicas e até mesmo a opção de um formato de tela reduzido. Como se deu a decisão de seguir por essa opção?
Em todos os filmes que você mencionou, (a produtora) Marília (Hughes) e eu sempre pensamos planos com um tempo que possibilite o espectador observar os atores/ atrizes, a fotografia, a arte, além de escutar o som em cena. Fazer cinema requer muito esforço, trabalho e pensamento. Nós precisamos de tempo para observar tal elaboração fílmica. Quanto ao silêncio e pausas, são elementos que acentuam a ação, além de fazerem parte da vida. Creio que algo que difere, em “A Mensageira”, é que busquei trabalhar com uma movimentação clássica de câmera, recuperando o cinema dos norte-americano dos anos 1940 e 1950. A tela 4×3 de “A Mensageira” é a janela mais antiga e tradicional do cinema. Buscamos ela por se tratar de um formato que privilegia os personagens e também nos confere a sensação de confinamento no plano, noção dramatúrgica importante para o longa.

Você divide a montagem com o cineasta portuguêsJoão Salaviza, cujos filmes têm muitas dessas características citadas. Como foi a influência dele nesse processo de escolha para o corte final de “A Mensageira”?
João Salaviza é muito jovem e extremamente inteligente. Seus filmes são brilhantes. Citaria a incrível parceria com Renée Nader, nos últimos dois longas (“Chuva e Cantoria na Aldeia dos Mortos”, de 2018, e “A Flor do Buriti”, de 2023). Eu estive em Portugal para vermos as imagens e trocarmos longas conversas. Depois, montamos aqui no Brasil em momentos distintos, mas também juntos. João deu muita força para que o projeto se mantivesse em sua integridade. O cinema português, como um todo, nos dá exemplos de vitalidade e criação artística no cinema há décadas. Em particular, eu gosto muito da busca por representações distintas do naturalismo/realismo ou mesmo barroco (teatro), algo muito próprio ao cinema e que tendemos a não trabalhar tanto no Brasil.

Nessa escolha, o ritmo do filme, o modo como os personagens surgem em cena, suas falas pausadas, suas entonações que remetem a uma qualidade teatral, bem como as opções de mise en scène que você traz (não pude deixar de perceber uma referência a “Persona”, de Bergman, em alguns enquadramentos de rostos femininos), criam para “A Mensageira” um aspecto bem singular. Você poderia falar um pouco sobre essas escolhas?
“A Mensageira” se alimenta do cinema. O meu trabalho junto aos atores/ atrizes foi justamente fazer com eles esquecessem teatro e TV. Sobretudo com Clara Paixão, protagonista do longa. Nós passamos meses trabalhando para tirar a dramaticidade excessiva de falas, controlando gestos e expressões. Temos que lembrar que qualquer mínimo gesto no cinema já significa muito! Daí, que uma simples pausa ou silêncio ecoam fortemente no espectador. Essa é a linha mais instigante e desafiadora para um ator, no cinema. Eu percebo que eles amam esse desafio. Minhas referências, além do citado cinema português, são, evidentemente, Robert Bresson e Aki Kaurismaki. Jamais fui tão radical quanto eles, claro. Mas são inspirações. Bem observada a relação com “Persona”. Mas, existem outras referências cinematográficas tão ou mais fortes. “O Processo”, de Orson Welles, é a referência mais evidente. O cinema de gênero e noir norte-americano é muito expressivo, no longa. “Ida”, de Pavel Pawlikowski é uma referência estética muito forte. Tanto quanto “A Mensageira”, trata-se de um filme que deixa evidente as forças que enquadram e deslocam a protagonista no plano (fotografia centrífuga). Discutimos muito sobre isso, Flávio Rebouças (fotógrafo do filme) e eu. Lembraria ainda de “Ouro Carmim” (Crimson Gold), de Jafar Panahi, que está na origem desse projeto. Importante, esteticamente, lembrar dos filmes com a fotografia de Bradford Young (“Pariah”, “A Chegada”, “Selma”). A fotografia de “A Mensageira” busca, num jogo de claro/ escuro, criar volumetria e densidade nos planos.

Dividindo o filme em um viés de denúncia para a corrupção dentro do sistema judiciário e penal, bem como em uma abordagem voltada para a cultura afrodescendente e para a religião de matriz africana, você consegue encontrar um equilíbrio bem perceptível dentro desses dois caminhos. Desde a ideia original passando pela estruturação do roteiro, essa mescla de elementos mundanos com outros ancestrais e espirituais sempre foi uma meta para o resultado final? Como foi buscar esse uníssono entre tais aspectos?
O judiciário se tornou protagonista político no Brasil. Bastaram algumas pesquisas para encontrar muitas situações de irregularidade que envolvem o judiciário não apenas na Bahia, mas em todo o país. Essa realidade kafkiana está em “A Mensageira”. Interessei-me logo pelo oficial de justiça, figura singular, desprovido de poder de decisão e testemunha de um caos social que beira a tragédia, diariamente. De certa forma, somos nós em nossa impotência diante de um país caótico. Mas, em uma posição ainda mais delicada. Foram anos de entrevistas, saídas à rua com os oficiais, passei muitos dos meus dias visitando fórum… contei com a colaboração preciosa de um grande juiz, que possui forte propensão às artes, Maurício Brasil. Sem eles, não haveria filme. Desde sempre, uma das idéias centrais do filme dizia respeito a uma oficial adormecida que se dopava cotidianamente para escapar à dureza do dia-a-dia. E que esse alheamento a levasse a desconhecer sua própria história. Dai, aos poucos, ela acorda para ambas. Conhecer a si e a sociedade. A questão afro-descendente veio após definir a personagem principal. As conversas com possíveis protagonistas foram me ajudando a dar corpo e alma para essa personagem.

O fator denunciatório do filme, inclusive, remete a casos como o de Giovane Mascarenhas, que Bernard Attal ilustrou com esmero em um dos seus documentários. Em uma entrevista que fiz com ele em 2020, falamos de diversos aspectos relacionados a toda a inércia de investigação e como o sistema policial é algo apodrecido.
Creio que “A Mensageira” espelha o que foi o Brasil na década passada: a proeminência do judiciário e o desaparecimento/ assassinato de militantes. E continua a ser assim, infelizmente. O filme de Bernard nos oferece pistas para pensarmos o país em que vivemos.

Falando sobre a presença de Hamilton Borges, militante tão importante em Salvador, queria lhe perguntar como se deu o processo de casting do filme, que traz, além dele, Clara Paixão em seu primeiro papel como protagonista, Evelin Buchegger, Heraldo de Deus, além de Vladimir Brichta em uma inspirada participação especial. Como foi o processo de escolha não somente dos nomes centrais da trama, mas de diversos outros atores negros baianos?
Eu fui em busca de Íris, em um primeiro momento. Conversei com muitas atrizes daqui e de fora da Bahia. Logo, percebi que a protagonista precisava ser baiana. Era estranhamente diferente e não condizia com o filme conversar e ensaiar com atrizes de fora para esse papel. Entre muitas atrizes apaixonadas e talentosas, Clara foi se impondo para Marília e para mim. Nós percebemos, aos poucos, que ela estaria comprometida até a alma com o filme. Não apenas ela, mas Evelin Buchegger, Daniel Farias, Heraldo de Deus, Márcia Limma, Edvana Carvalho… Os atores e atrizes baianos não são apenas talentosos, mas muito apaixonados. O envolvimento de todos eles e o desejo em contribuir com o projeto são emocionantes! Hamilton Borges é uma referência de talento e inteligência. Ele é um militante conhecido, um artista como poucos e possui corpo e alma esculpidos para a arte. Não tenho palavras para descrevê-lo. É uma honra contar com ele no filme. É uma benção contar com ele em uma cidade como a nossa.

Citando a participação de Brichta, você poderia abordar um pouco sobre a criação de seu personagem, suas nuances e o simbolismo que ele possui no filme?
Brichta é o delírio, a corrupção, a sedução sem vergonha, o próprio capeta orsowelliano. É Kafka. É a vertigem, o pesadelo que se confunde com a irrealidade. Contente em ter Vlad nesse filme. Ele me confidenciou que a linha adotada de atuação é a mais desafiadora para um ator.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador. 

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