texto de Marcelo Costa
O Birthday Party foi uma banda protopunk que nasceu em 1973 no subúrbio de Melbourne, na Austrália, com o singelo nome de The Boys Next Door e uma sonoridade agressiva, mas ainda embrionária, onde cabia até um cover de “These Boots Are Made For Walking”. A formação original juntava os delinquentes juvenis (sem nenhum exagero) Nick Cave (voz) e Tracy Pew (baixo) com Phill Calvert (bateria) e o “certinho” Mick Harvey (guitarra), mas o The Boys Next Door só iria crescer musicalmente quando o gênio guitarrista e compositor Rowland S. Howard entrasse na banda, em 1978. Daí em diante o The Boys Next Door iria virar Birthday Party no meio de um voo Melbourne / Londres e, cinco anos depois, em 1983, se desintegraria após ultrapassar todos os seus limites.
“Mutiny in Heaven: The Birthday Party” (2023), filme de Ian White, é uma das joias da programação 2024 do In-Edit Brasil não apenas por lançar luz sobre os cinco anos sombrios que transformaram o Birthday Party em lenda, e seus músicos em nomes respeitados no cenário musical nas décadas seguintes, mas principalmente porque a banda, até hoje, é uma aberração musical da qual pouca gente fala e, não a toa, não se surpreenda se após o filme você for procurar por alguns dos três discos oficiais deles nas plataformas de streaming e descobrir que nenhum está disponível, há apenas uma coletânea de 1988, “Hee-Haw” (que originalmente era um EP), e um disco ao vivo. Mesmo para comprar os CDs e discos não são fáceis de achar, o que faz de “Mutiny in Heaven” uma introdução em sons, imagens e declarações ao caótico universo dos australianos.
Logo na primeira cena, um jovem Nick Cave provoca o público: “Na próxima vez, não fique na primeira fila durante o nosso show, ok. A primeira fila não é para os fracos”. Essa sensação temerária de perigo será corroborada por uma edição vertiginosa que combina, de maneira um tanto perturbadora, tiras chapadas de quadrinhos (retiradas do livro “Nick Cave: Piedade de mim”, do Reinhard Kleist, que a Editora Hipotética lançou no Brasil) e uma arte de filmes cinematográficos deteriorados sobre dezenas de registros da banda ao vivo e entrevistas (de várias épocas) com todos os integrantes na busca por tentar montar o quebra-cabeça daqueles anos sombrios movidos a drogas das mais variadas (heroína no topo), uma rotina de vida absurda e a certeza absolutamente incerta de estar lapidando uma pedra preciosa no formato de canções.
Mick Harvey, em certo momento, comenta: “A gente não fazia nada para ser simpático. E ainda assim a banda só crescia”. O Birthday Party levou até o limite a sensação de música ao vivo atrelada ao caos sonoro transformado em arte pelos Stooges, aliando uma performance perigosa (fisicamente mesmo), caótica e ensurdecedora, que muitas vezes poderia acabar em pontapés entre os integrantes ou mesmo entre eles e a plateia, um risco permanente de demolição, uma bola de neve que, inevitavelmente, foi crescendo conforme a fama da banda foi escalando publicações como NME e o grupo passou a ser queridinho de John Peel, atraindo cada vez mais pessoas para assistir ao vivo “a única banda de rock autêntica do mundo” (grifo de Mick Harvey).
Lidar com o caos e o enfrentamento constante no palco já levou alguns dos melhores cedo demais (não à toa, em certo momento Rowland cita The Doors como influência, cujo vocalista Jim Morrison também ultrapassou as fronteiras do caos vislumbrando provocar e tirar a plateia de uma postura condescendente, algo que lhe custou a sanidade), e, de maneira óbvia, é uma escalada cujo fim está sempre próximo. Com o Birthday Party atuando no limite dias e noites, a separação da banda era inevitável para a saúde física de todos os integrantes, afinal também havia uma questão de diferenças musicais entre eles, tema que o próprio Nick Cave já havia esmiuçado no documentário “Autoluminescent: Rowland S. Howard”, sobre seu parceiro na banda.
Encapsular o poder artístico e violento de uma banda em um filme de pouco mais de 90 minutos não é uma tarefa fácil, mas Ian White alcança seu intento com brilhantismo em “Mutiny in Heaven: The Birthday Party”, deixando na alma do público a saudade e o desejo por algo que ela nunca terá novamente. “Birthday Party eram os melhores ao vivo. Eles liquidavam você. Te aniquilavam. Era totalmente glorioso”, relembra Lydia Lunch. “Era tão perigoso quanto caminhar na beira do precipício”, compara Thurston Moore (Sonic Youth). “A sensação de terror, ao invés de diversão, que senti vendo-os ao vivo foi libertadora”, conta Chris Haskett (Rollins Band). “Parecia que eles estavam tentando se livrar de algo que os torturava, uma doença que os obrigava a vomitar”, completa Lydia Lunch. “Teria sido genial embarcar numa turnê mundial de autodestruição”, brinca Mick Harvey, para encerrar o texto com uma citação bem-humorada de um filme e uma banda obrigatórios!
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.