texto de Renan Guerra
O funk brasileiro com influência do Miami Bass e do freestyle nasceu, cresceu e se desenvolveu nas favelas cariocas e se alastrou pelas periferias brasileiras tornando-se um gênero fundamental para diferentes gerações em diferentes favelas. Isso, obviamente, não seria diferente na cidade de São Paulo. Na capital paulista, o funk se tornou um som periférico fundamental da cidade ao lado do rap e ganhou o espaço das ruas em bailes que enchem das avenidas aos becos de grandes comunidades. E numa cidade desse tamanho é óbvio que o funk ganharia sonoridades e vertentes múltiplas, possibilitando experimentações únicas em um mercado que vai das grandes produtoras aos artistas underground. O documentário “Funk Favela” (2024), de Kenya Zanatta, busca construir um panorama desses ritmos e sons.
De caráter bastante formal, o filme de Zanatta é construído com uma série de entrevistas com diferentes nomes do funk paulistano – incluindo aí nomes cariocas que encontraram em São Paulo um mercado com espaço para seu trabalho –, indo dos mais consagrados, como MC Bin Laden e Deize Tigrona até importantes nomes jovens como MU540 e DJ Th4ys. Nesse universo de personagens é interessante observar como a produção do filme busca registrar diferentes possibilidades dentro do funk, trazendo pra tela, por exemplo, nomes que estão inseridos dentro do funk, mas que dialogam com outras possibilidades, como o som underground das Irmãs de Pau, que trazem as experiências da travestilidade para sua canções, ou o som de MC Tha, que conecta o funk com os sons da umbanda e do candomblé. É importante frisar que essa diversidade de nomes se dá pelo trabalho de Kenya Zanatta ao lado de Renato Martini, jornalista e pesquisador do funk há mais de 10 anos e que assina a pesquisa do longa-metragem.
Dentre esses personagens, um nome nos guia dentro da narrativa do filme: Fernanda Souza, uma referência em fotografia na cena funk em São Paulo. É a partir das narrativas de Fernanda, uma artista que captura os bailes com um olhar único, que o filme cria uma espécie de fio condutor, pois é ela que nos apresenta os aspectos mais simbólicos da cultura do funk em São Paulo. As falas de Souza apresentam esse caráter mais emotivo e sensorial de alguém que tem no baile funk um espaço de liberdade e de pertencimento. Costurado a isso, temos os diferentes artistas e produtores discutindo questões que passam pelo preconceito, a liberdade feminina e o mercado de trabalho. E nesse sentido é interessante como o filme capta a produtividade industrial que o funk assumiu hoje em dia e como a produção constante leva a um grande número de profissionais envolvidos nesse circuito – incluindo uma boa quantidade de artistas que tentam a sua sorte por um lugar ao sol.
Outros dois personagens têm um destaque importante dentro de “Funk Favela”: Thiagson e Carol Prado. Thiagson é professor de música clássica e um pesquisador importante do funk pelo viés acadêmico, por isso sua contribuição ao filme é trazer um olhar mais amplo entre o ritmo musical e toda a experiência de consumo cultural na periferia. Já Renata Prado é uma importante dançarina e professora de funk e apresenta no filme a relação do funk com o corpo e como a música se desdobra em dança, a partir de uma perspectiva muito interessante de liberdade feminina – compreendendo todas as complexidades e preconceitos pelos quais o gênero passa.
A grande riqueza do filme de Kenya Zanatta se encontra realmente nesses personagens tão ricos que estão na tela. Construído de forma bastante formal e seguindo um padrão clássico de documentário, o filme não tem nenhum diferencial estilístico, mas coloca sua sustentação numa amarração bastante sólida de todas as entrevistas – com tantos personagens e rumos, o filme poderia se perder em si mesmo, mas a diretora consegue fazer com que o roteiro mantenha o ritmo permanecendo interessando durante toda a sua projeção, resultando num importante panorama de uma cena tão múltipla e rica atualmente.
“Funk Favela” está disponível on-line na plataforma do Itaú Cultural Play até o dia 25 de junho.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.