texto de Gabriel Pinheiro
Figura fundamental da arte sequencial nas últimas décadas, Joe Sacco é, provavelmente, o maior nome do chamado “jornalismo em quadrinhos”, sendo responsável por alguns dos trabalhos mais importantes do gênero, como sua obra-prima, “Palestina” (‘1993). Conhecido por quadrinhos que mergulharam profundamente em alguns dos mais dramáticos e ruidosos conflitos de nosso tempo, como a Guerra da Bósnia e os conflitos na Faixa de Gaza, Joe Sacco buscou, nessas obras, dar forma ao olhar do oprimido.
Neste seu novo trabalho, “Pagar a terra” (Companhia das Letras, 2024), que chega ao Brasil com tradução de André Czarnobai, Sacco vai em direção a outro conflito que, mesmo não tão ruidoso internacionalmente quanto aqueles que registrou anteriormente, atravessa décadas, na luta de uma comunidade frente ao poder do estado e do capital. “Pagar a terra” propõe uma investigação acerca dos impactos da exploração desenfreada dos recursos naturais na América do Norte sobre os povos originários que ali residem – e resistem.
Em foco estão os Dene, uma população indígena do noroeste do Canadá que, durante séculos, viveu em profunda sintonia com a terra – uma relação onde não é a terra que pertence ao homem, mas o contrário. Assim, a natureza abundante, que proporcionou desde tempos imemoriais a subsistência dessa população, era parte essencial de sua identidade. O interesse estatal e de grandes corporações por uma riqueza que se escondia por baixo desta terra – petróleo, diamante, gás natural – transformou, de maneira drástica, o cenário daquela comunidade.
Joe Sacco reconstrói na linguagem dos quadrinhos a história dos Dene, desde seus mitos fundadores até as recentes batalhas na justiça canadense pela demarcação de suas terras – embate que ressoa na luta dos povos originários brasileiros. O quadrinista denuncia o quanto a união entre o estado, o capital e a religião buscou enfraquecer o sentimento de comunidade entre os Dene. “Afastar os povos indígenas de sua cultura – apagar, de fato, a essência de sua indigenidade – foi a política oficial do Canadá por muito tempo”.
Entre as muitas denúncias registradas pelo artista, está a de um projeto educacional que, durante décadas, retirou crianças do seio desta comunidade – e de outros grupos indígenas canadenses – levando-as para colégios internos. O efeito dessa política foi devastador: foram aproximadamente 150 mil crianças indígenas e um dramático histórico de abusos, violência física e psicológica por um sistema que não visava a educação, mas a colonização. “Os corpos feridos de crianças traumatizadas eram apenas uma parte de uma realidade maior revelada pela Comissão da Verdade e Reconciliação. Seu relatório final, de 2015, concluiu que o governo e as igrejas canadenses eram culpados de um ‘genocídio cultural’”.
Construído por meio de inúmeras vozes entrevistadas e observadas por Joe Sacco, “Pagar a terra” é um olhar contundente sobre a colonização, a resistência de povos originários e a relação entre o homem e a terra. O traço de Sacco reconstrói tanto paisagens sublimes que resistem ao homem, quanto aquelas marcadas pelos dejetos resultantes de uma exploração sistemática e desenfreada. Ao denunciar a luta dos Dene, Joe Sacco não se retira da cena, refletindo também sobre o seu papel enquanto jornalista: “Quer dizer, qual a diferença entre a indústria do petróleo e eu? Ambos viemos aqui para extrair alguma coisa”.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.