Cinema: “A Semente do Mal” acerta quando utiliza o humor e o melodrama sob a lógica contestadora do horror

texto de Leandro Luz

“A Semente do Mal” (Gabriel Abrantes, 2023), que estreou no MOTELX (Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa) e chega agora aos cinemas brasileiros, corre o risco de ser enquadrado como um mero exemplar do “terror de shopping” da temporada e, consequentemente, tende a ser descartado por boa parte dos críticos. O cartaz sombrio composto por uma mulher vestida de branco e posicionada entre duas paredes simétricas sujas de sangue, com dois bebês que rastejam em sua direção, somado ao título do filme que grita em neon vermelho corroboram com esse objetivo marqueteiro de se comunicar com as massas. O trailer também provoca uma sensação de déjà-vu, e mesmo evitando revelar o principal mistério da trama, constrói um paralelo crível entre o filme independente europeu com o cinemão americano que chega semana sim, outra também nos quatro cantos do mundo. Não obstante, esses tópicos extra-filme escondem algumas das principais qualidades do longa-metragem português, que se sai bem em boa parte das coisas que experimenta.

Não que o filme se distancie tanto de um padrão do cinema de horror mainstream. Na verdade, o diretor Gabriel Abrantes se mostra muito consciente de uma tradição – ou, para os mais rabugentos, de uma linha de produção – e consegue navegar bem pelos códigos do gênero, ao passo que traz referências que vão desde “O Iluminado” (Stanley Kubrick, 1980) e “Suspiria” (Dario Argento, 1977) até “Arraste-me para o Inferno” (Sam Raimi, 2009). Ainda que se contenha demais em momentos-chave, Abrantes consegue estabelecer atmosferas e se enveredar por algumas ideias grotescas que fazem de “A Semente do Mal” um exemplar que se destaca dos lançamentos do tipo em 2024.

“A Semente do Mal” começa com um prólogo inteligente que introduz a sua principal locação, um palacete situado em uma floresta ao norte de Portugal, e garante algumas pistas e contra-pistas para o que veremos a seguir. A sequência mostra uma mãe cuidando de seus dois bebês. Ela os acaricia, os alimenta e, quando decide colocá-los para dormir, é surpreendida por um casal de invasores que consegue roubar uma das crianças. O clima estabelecido é de pura tensão, calcado na lógica dos filmes de home-invasion (subgênero do horror que traz a invasão domiciliar para o centro da ação). No entanto, a abordagem que veremos a seguir será outra.

Ed e Riley estão apaixonados um pelo outro e vivem uma boa vida em Nova York. Sem saber a respeito de suas próprias origens nem sequer conhecer alguém de sua família, Ed é presenteado por Riley com uma espécie de artefato tecnológico que promete analisar o seu DNA e revelar as suas raízes. Ed, portanto, descobre a existência de um irmão gêmeo, Manuel, e parte para o norte de Portugal para encontrá-lo. Lá chegando, conhece também sua mãe, Amélia, em uma das cenas mais aterrorizantes e desconfortáveis do ano: Amélia, moribunda e acamada, derrama lágrimas ao encontrar seu filho há tantos anos perdido; Ed olha para a mãe com um misto de repulsa e resignação, evidentemente emocionado com o encontro apesar de identificar algo muito estranho em seu semblante, um rosto marcado e envelhecido pelo tempo, mas esticado e desfigurado pelo que aparenta um sem número de intervenções cirúrgicas que esticaram, puxaram e encheram os seus lábios, nariz e olhos. O trabalho de maquiagem, aliado às intervenções do figurino e da direção de arte, contribuem para a aura de fábula estabelecida no minuto em que Ed e Riley pisam na casa da família, ainda que as conexões com certo realismo jamais sejam deixadas de lado.

Paula Szabo, diretora de arte, povoa a mansão com padronagens e itens de decoração que unem o luxo de uma família de posses (na sala de estar ergue-se um retrato de família supostamente pintado por Goya) com o insólito típico de uma boa história de bruxas (o piso que forma um símbolo estranho, as paredes carmim, o porão que esconde segredos por trás das sombras), tudo muito bem ressaltado pela eficiente fotografia assinada por Vasco Viana, que joga com as luzes e as sombras para garantir o equilíbrio de tom e de ritmo impresso no filme pela direção.

Abrantes é o diretor, ao lado de Daniel Schmidt, de “Diamantino” (2018), longa-metragem que chamou a atenção há alguns anos e conta a história de uma estrela do futebol em decadência, vivida por Carloto Cotta, que também protagoniza “A Semente do Mal”. O tipo físico e o rosto quadrado de galã do ator são elementos explorados com muita sagacidade por ambos os filmes, mais ainda neste último, no qual Cotta precisa interpretar irmãos gêmeos que falam, se portam e se vestem de forma oposta, e o faz com uma maestria ao mesmo tempo austera e cômica assombrosa. Surpreendentemente, Abrantes se revela um prodigioso operário do horror, super consciente do papel do suspense, da comédia, do camp e até do melodrama em sua artesania.

Aos estudiosos do cinema de horror, pode interessar uma investigação pela história do cinema português com o gênero. História esta não tão prolífica, sobretudo sob um ponto de vista mais comercial, porém com alguns marcos interessantes. O primeiro e talvez mais importante deles seja o longa-metragem “O Crime de Aldeia Velha”, obra-prima dirigida por Manuel Guimarães em 1964 sobre um vilarejo religioso que acusa uma mulher de estar possuída pelo demônio. Outro filme nesta mesma linha é “A Maldição de Marialva”, realizado por Antonio de Macedo em 1989 sobre uma condessa acusada de ter poderes sobrenaturais, inspirado na lenda da Dama Pé-de-Cabra e nos escritos de Alexandre Herculano. Ainda, mais recentemente, “O Barão” (Edgar Pêra, 2011), uma alegoria ao Salazarismo que bebe do imaginário barroco para construir a sua fantasia também é um ótimo exemplo de como o cinema de horror se desenvolveu ao longo dos anos em Portugal.

Deixando de lado as terras lusitanas e trazendo a conversa para o Brasil, também é curiosa a semelhança temática com o curta-metragem “Amor Só de Mãe”, grande exemplar do cinema brasileiro dirigido por Dennison Ramalho em 2003. No slogan presente no cartaz de “A Semente do Mal” lemos os seguintes dizeres: “Amor de mãe é para sempre”. Amélia, mãe de Ed e Manuel, ama-os fervorosa e alucinadamente, e na medida em que avançamos na trama e descobrimos um pouco mais do segredo que rege esta relação familiar mais apreensivos e perplexos ficamos. Nós, espectadores, e a namorada de Ed, que logo cedo nota a enrascada em que se meteu. A atriz Brigette Lundy-Paine interpreta Riley com carisma e segurança, e é responsável por guiar o espectador pelo turbilhão de emoções que a narrativa propõe. Aqui, uma má escalação faria todo o projeto naufragar.

Mas nem tudo são flores em “A Semente do Mal”. Gabriel Abrantes, apesar de muito habilidoso, às vezes se mostra acadêmico demais, organizando a ação de maneira excessivamemte metódica, seguindo tanto as regras invisíveis do gênero que perde a chance de se aventurar por águas mais fantasiosas. Um exemplo desse desperdício é o início da sequência clímax do filme, na qual uma montagem paralela – que vai durar praticamente até a cena final antes do epílogo – mostra Riley lutando pela própria vida enquanto Ed encara os “verdadeiros encantos” de sua mãe; para quem assistiu a “X – A Marca da Morte” (Ti West, 2022), a cena não vai parecer tão surpreendente assim, e Abrantes bem que poderia ter brincado um pouco mais com a representação de uma ideia de possessão e controle, mas acaba apostando no básico, ainda que algumas imagens guardem certa força repugnante. Abrantes afirma em entrevistas que se inspirou na sequência final de “O Iluminado” para conceber esse artifício narrativo tão caro à construção do suspense, mas o seu desfecho, diferente do filme do Kubrick, precisava de uma base bem mais sólida para funcionar do ponto de vista dramático. A única personagem que reivindica o nosso desassossego é Riley, mas o filme também tenta nos impactar por meio de outros eventos e personagens, inclusive aparições novas que foram apresentadas de forma tão rasa e mecânica que jamais soam apropriadas.

Em resumo, “A Semente do Mal” preza mais pela harmonia do que pelo risco, garantindo uma estrutura dramatúrgica eficiente, porém com um estilo evidentemente acanhado, em uma tentativa até bastante óbvia de se adequar ao mercado internacional – a própria escolha do inglês como idioma central adotado pelos personagens, ainda que narrativamente justificada, corrobora com essa ideia. De todo modo, o longa português reclama um espaço estimulante entre a indústria e a artesania, lança indagações a respeito de questões tão em voga como a noção de ancestralidade e acerta sobretudo quando utiliza o humor e o melodrama, sob a lógica contestadora do horror, para cozinhar as emoções de seus personagens e cravar as unhas na alma de seu espectador.

– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

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