texto de Gabriel Pinheiro
Dois sherpas encaram o corpo inerte de um turista inglês que sofre uma queda durante uma escalada no Monte Everest. Enquanto decidem o que fazer — tentar socorrê-lo correndo o risco de também se acidentarem? avisar a base? — os dois homens refletem e rememoram acontecimentos passados que, de uma forma ou de outra, os levaram até ali, até aquele momento de contemplação do abismo.
“Dois sherpas espreitam o abismo. As cabeças vasculhando o nadir. Os corpos estirados nas rochas, as mãos apoiadas na beira de um precipício. Parecem esperar alguma coisa. Mas sem ansiedade. Com um repertório de gestos serenos que se equilibram entre a resignação e o ceticismo”. Primeiro romance publicado no Brasil do escritor argentino Sebastián Martínez Daniell, “Dois sherpas” ganha edição nacional pela Ponto Edita com tradução de Maurício Tamboni.
Não conheceremos os dois homens pelo nome. Um é o “sherpa velho”, o outro o “sherpa jovem”. Nesta escolha, Daniell expõe, simbolicamente, o apagamento da singularidade de toda uma comunidade, de uma etnia. Nesse processo, os sherpas são vistos objetificados enquanto mercadoria, como mais um item obrigatório ao turista que almeja a escalada do Everest. “Carregadores, é como essa gente chama a gente quando está lá. Quem? Essa gente: os visitantes da montanha. Essa gente, os visitantes autocomplacentes, pensa o sherpa velho”.
Os sherpas são uma etnia do Nepal, no alto do Himalaia. “Povo do leste”, significa o seu nome. Tal população foi fundamental para a conquista ocidental do Everest e de outros picos importantes da região, atuando como guias para os alpinistas em busca de altitudes extremas — na verdade, muito mais que guias, responsáveis tanto pelo êxito de expedições, quanto pela própria sobrevivência de seus participantes.
De construção fragmentária, “Dois sherpas” resgata algumas dessas histórias de conquista da montanha de maior altitude do planeta. “5 de julho de 1953, aeroporto de Heathrow. É verão em Londres. Os fotógrafos imortalizam a chegada dos heróis do Himalaia. O neozelandês Hillary usa gravata e um terno claro, da moda, alinhado, com três botões, mas só um deles fechado. O sherpa Norgay, camisa com mangas arregaçadas, colarinho desabotoado e uma bandeira britânica na mão direita. (…) Imediatamente nomeiam o neozelandês Cavaleiro-Comendador da Ordem do Império Britânico (…). Para Norgay, dão uma medalha com a efígie do rei George IV, o gago”. Em comum, todas essas histórias trazem o não reconhecimento daqueles que foram fundamentais para o seu sucesso.
“Dois sherpas” é um olhar agudo para o colonialismo, para uma visão colonial que se mantém através dos séculos também na relação entre o turista e a população local — visão esta que pode facilmente ser transportada do Himalaia para outras diferentes localidades e realidades. Composto predominantemente de capítulos curtos — alguns de apenas um ou dois parágrafos — o texto de Sebastián Martínez Daniell caminha entre a ficção e o registro histórico.
Na medida em que o tempo presente parece em suspenso frente à queda do turista britânico, é no passado que se dá a maior parte de sua ação. Neste mergulho no passado, adentramos não só nas memórias dos dois personagens, mas na memória da própria montanha. Uma memória marcada pelo silêncio e pelo apagamento: “O resto era silêncio… se é que podemos chamar de silêncio o ruído ensurdecedor do vento passando pelos picos do Himalaia.”
A edição da Ponto Edita para “Dois sherpas” conta com um longo ensaio gráfico, que acompanha toda a narrativa, de autoria de Luís Fernando Protásio. Em um gesto que se aproxima daquele realizado por Sebastián no romance, Protásio fragmenta imagens do Monte Everest até a abstração, reconfigurando-as e descobrindo novos sentidos. Vale conferir!
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.