texto de Eduardo Juliano
Se o título em português não traduz bem os pensamentos e a vida de Fran – uma personagem que já sumiu, já desapareceu, já desistiu de interagir, de viver, de ser – é o título original “Sometimes I Think About Dying” (“Às vezes eu penso em morrer”, numa tradução literal) que realmente faz todo sentido. Afinal, a protagonista costuma se perder em devaneios imaginando a sua própria morte.
O corpo sem vida jogado no mato ou numa praia deserta, coberto de ferimentos e insetos, são os vislumbres mais recorrentes, embora não sejam os únicos. Tais pensamentos intrusivos, de alguma forma, deixam a rotina da Fran menos enfadonha e são alimentados subconscientemente pela protagonista, não pela inclinação suicida de que a fatalidade se concretize, mas pelo sentido escapista de querer estar em outro lugar para além daquela existência sem graça. Porém apesar do tema existencialista pesado, o filme consegue ser suave e até engraçado em alguns momentos.
Logo nas primeiras cenas somos agraciados com a união perfeita entre imagens que parecem ter sido tiradas de um sonho relaxante e a trilha sonora nostálgica e melancólica do Dabney Morris. Essa sintonia fina entre som e imagem nos ajuda a entender e sentir mais rapidamente a realidade gélida e solitária da Fran, interpretada de maneira contida e com bastante sensibilidade pela Daisy Ridley, mais conhecida por seu papel como Rey na saga “Star Wars”.
Se esgueirando pelos cantos, se esforçando para passar despercebida, Fran vai se perdendo na rotina, até que a monotonia do trabalho tedioso no escritório, a falta de comunicabilidade e o inexistente relacionamento interpessoal com seus colegas é interrompido com a chegada de um novo funcionário que parece finalmente notá-la.
Ao rir de uma piada ruim que ela timidamente faz, o novo colega tira Fran da invisibilidade na qual ela estava confortavelmente acostumada e inadvertidamente a faz voltar a sonhar em ter amigos, um relacionamento, experimentar filmes e comidas novas e querer sentir algo que seus muros invisíveis não permitem. Mas esse não é o tipo de filme que termina com a personagem redescobrindo que a vida é maravilhosa e sendo feliz para sempre. O conteúdo aqui é muito mais coerente e plausível.
Cria do cinema independente norte americano, a diretora Rachel Lambert, em seu novo trabalho, busca referências nas obras de Michel Gondry, Spike Jonze e Charlie Kaufman para nos intrigar com o estudo de uma personagem emocionalmente complexa, escondida em silêncios e não fazendo o menor esforço para fazer parte de sua própria existência.
Talvez o maior desafio da diretora aqui resida no fato de como ela poderia deixar evidente para o publico o que a se passa na cabeça de uma personagem tão quieta e misteriosa. Afinal não temos qualquer informação sobre seu passado, nem sabemos o que a levou a viver totalmente só e no bairro mais silencioso e deserto daquela pequena cidade litorânea. Além do comportamento tímido e arredio no trabalho, do qual também não sabemos exatamente no que consiste, Fran é um enigma a ser decifrado.
Para nossa sorte, existe um trabalho de composição cênica extraordinário, que reverbera numa atmosfera muito coesa e interessante de se observar, embora o filme evoque também um certo tom de fábula ou de realismo fantástico.
A direção de arte é fator primordial para o entendimento da personagem, visto que existe uma atenção ao detalhes e um cuidado extremo com o uso da paleta de cores nos ambientes e roupas, bem como a mudança ocasional delas em momentos chave que, casadas com uma mise-en-scène sempre atenta a como a personagem se sente em relação ao mundo que a cerca, somos levados instintivamente a perceber e entender o turbilhão de sentimentos que se passam internamente em Fran, sem que seja absolutamente necessário o uso da exposição verbal.
O longa, que teve sua première no Festival de Sundance em 2023 recebendo uma indicação do júri principal à diretora, Rachel Lambert, é inspirado na peça “Killers” (2013), de Kevin Armento, e aborda a necessidade urgente de conexão humana real, cada vez mais rara em nossas rasas dinâmicas sociais, nas quais fingimos interações sem nos dispormos realmente a enxergar o outro enquanto ansiamos pela mínima sensação de pertencimento.
– Eduardo Juliano é administrador e cinéfilo. Também escreve no Urge :: A Arte nos conforta