entrevista de Pedro Salgado, especial de Lisboa
Quando conversamos pelo celular, no final de uma manhã de quarta-feira, JP Simões está visivelmente animado. Os ecos da boa receptividade ao seu disco de versões de José Mário Branco, um dos nomes maiores da canção portuguesa, ainda se fazem sentir. Procurando desvendar um pouco mais sobre o grau de intimismo e qualidade que alcançou com o disco “JP Simões Canta José Mário Branco” (2024), questiono-o sobre os aspectos que o marcaram durante a abordagem ao cancioneiro do mestre. “O que mais me impressionou ao revisitar a obra do José Mário Branco é que há imensa coerência em tudo aquilo. A presença dele, a poesia que escrevia e escolhia tinha um grau de seriedade e de compaixão muito forte. Naturalmente, algumas coisas marcaram-me mais do que outras, mas ‘Inquietação’ é uma das minhas canções preferidas de sempre. É a pessoa que descobres por detrás do homem e é o trabalho de uma vida que é manifestado com muita clareza, frontalidade e beleza num acervo de obras musicais”, explica.
Para além do trabalho com os Pop Dell’Arte, Belle Chase Hotel, Quinteto Tati e solo, JP Simões colocou igualmente o seu cunho no alter-ego musical Bloom. Sob a égide do projeto, o músico conimbricense editou dois discos particularmente interessantes: o denso e bucólico “Tremble Like a Flower” (2017) e o roqueiro e enérgico “Drafty Moon” (2021), onde são patentes as infuências de David Bowie, Bryan Ferry e Scott Walker. Tendo em conta um percurso artístico pleno e multifacetado, que inclui também trabalhos para cinema, teatro e a escrita de contos, ponho à sua consideração desafios futuros que ainda não tenha concretizado e lhe pareçam apetecíveis. “É uma boa questão. Estou sempre à espera de fazer um disco que me satisfaça completamente. Isso aconteceu um pouco com ‘Drafty Moon’ e também com o ‘1970’ (2006). Mas, demora algum tempo até voltar a acontecer. Pessoalmente, adorei fazer este disco de José Mário Branco. No meu trabalho autoral existem outros mundos e outras expectativas. Um dia destes gostava de escrever um belo romance, mas terei de encontrar tempo (risos)”, conta.
Embora confesse escutar mais o jazz pós 1959, o bebop, John Coltrane, David Bowie e a sua própria música, JP Simões sublinha a vitalidade da atual música portuguesa e aponta as diversas correntes que estão a singrar e despertam a sua atenção: “A música portuguesa feita por gente jovem está intensa e há muita coisa nova. Ultimamente, escuto mais quem trabalha na recuperação das raízes tradicionais e mistura-as com as novas tecnologias e é uma tendência apreciável. Também assistimos à reinvenção do Festival da Canção e um conjunto de novos artistas de espírito patriótico. Para além disso, existe um grupo de pessoas que se formou essencialmente no jazz e não está propriamente na comunidade dos cantautores ou bandas portuguesas. São músicos muito bons que trabalham no mundo inteiro e estão a ter excelentes resultados fazendo uma música tremenda. Isso deixa-me muito feliz, porque vou ouvindo coisas que resultam da influência do jazz e dos caminhos de liberdade que sugerem”. O presente cenário português motiva igualmente uma consideração final carregada de otimismo. “Fazem-se cada vez mais coisas boas com poucos meios e é ótimo que assim seja. Em 30 canções há uma faixa que é extraordinária e isso acontece porque a produção está a aumentar. De um momento para o outro aparecem coisas belas e é o que procuramos”, conclui.
De Lisboa para o Brasil, JP Simões conversou com o Scream & Yell. Confira:
Gostaria que me contasse um pouco da história do seu novo disco. Como surgiu a vontade de reler o cancioneiro de José Mário Branco e os objetivos que pretendia concretizar com o trabalho?
Eu já vinha namorando a obra de José Mário Branco há alguns anos. No meu primeiro disco solo (“1970”, de 2006) tenho uma versão de “Inquietação”, que é uma música de que gosto desde garoto. Dando um salto no tempo, a partir de 2019, fiz alguns shows, por ocasião do 25 de Abril (Dia da Revolução dos Cravos), e falaram-me sempre em tocar o cancioneiro dos compositores mais iconográficos da revolução. Por isso, fui fazendo espetáculos com a colaboração de um grupo e em especial do Nuno Ferreira, que fez os arranjos e as produções para banda, e apercebi-me que tinha cada vez mais repertório do José Mário Branco. Fazia todo o sentido cantá-lo e fui crescendo dentro deste trabalho. Entretanto, o meu editor, Hugo Ferreira, da Omnichord Records, que era diretor da Rádio Universidade de Coimbra (RUC) há uns anos atrás, por ocasião do aniversário de José Mário Branco convidou-o para ir lá cantar. Ele disse que não estava com paciência para montar uma banda e fez um belíssimo concerto com guitarra. O Hugo Ferreira gravou a atuação e, como sempre admirou o José Mário Branco, quis fazer algo porque achou que a voz dele foi importante em momentos mais complicados, durante a evolução da nossa democracia, mas também agora. Há cerca de um ano e meio, o Hugo perguntou-me se eu queria pegar numa guitarra e fazer uma versão para disco daquele concerto. Como já vinha a trabalhar a obra do José Mário Branco, sugeri que talvez fosse melhor selecionar as músicas que conseguia interpretar com mais naturalidade e pegar um pouco no repertório construído com o Nuno Ferreira desde 2019. Essa foi a gênese do disco, depois fomos burilando as canções escolhidas e aí está o disco.
Das várias faixas do álbum, gostei de “Cada dia são cem (Carta ao remetente)” e particularmente “Perfilados de Medo” pela sua soltura vocal e pela dinâmica colocada pelos músicos que o acompanharam. Qual é o seu comentário?
O que tentamos fazer em quase todas as músicas (com exceção de “Perfilados de Medo”) foi traduzir para os nossos instrumentos os arranjos originais e não perder muita coisa. É evidente que se notam diferenças na maneira de interpretar e na mudança de timbre, ou seja, adaptamos aquilo ao nosso universo de sons. Quase tudo foi feito com respeito imenso pela versão original. A faixa “Perfilados de Medo” foi um delírio na maionese, porque fui juntando percussões, efeitos e guitarras e editei aquilo laboriosamente ao longo de meses e tentei criar uma coisa meio psicodélica. Isso aconteceu porque ao vivo a canção crescia de uma forma intensa e espontânea, já que era muito forte, e mexeu com as minhas entranhas e terminávamos numa espécie de caos (risos). Acabou por ser uma sugestão para eu explorar durante a construção dessa música. Essa foi a única faixa que eu tomei a liberdade de modificar. A base é a mesma e os acordes, a estrutura e as letras são idênticos, mas eu extravasei um bocado na sua produção. As outras canções são mais fiéis aos originais.
Você vai participar brevemente no evento “Sons da Liberdade”, que assinala os 50 anos do 25 de Abril, no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, apresentando o seu disco mais recente. Quais são as suas expectativas para o espetáculo e como encara a efeméride?
A minha expectativa é que pela primeira vez reuni as condições para levar o quinteto que tocou no disco e vamos conseguir tocar o álbum fielmente com todos os timbres e instrumentos. Isto para mim já é um grande anseio, porque nunca aconteceu, e estou muito feliz por ter tido condições para o fazer. A minha outra esperança é que dê um prazer danado a mim e aos músicos e passe para o público. Independentemente de eu estar a dar forma a estas canções, as pessoas vão ao concerto para escutar as músicas de José Mário Branco. Portanto, os dois aspectos deixam-me feliz. Creio igualmente que o público vai ao show para sentir a força que estas canções transmitem e lembrar a importância e a intensidade de lutarmos pelos nossos direitos e liberdades que é algo que esteve e estará sempre presente na música do José Mário Branco. Considero que a revolução de 25 de abril deu um exemplo extraordinário ao mundo porque mudou-se um regime duro com um mínimo de violência possível e tenho muito orgulho do que aconteceu no meu país. Mas, a conquista da democracia não é uma garantia de felicidade. É apenas a certeza de que as pessoas vão ter mais autodeterminação e é preciso não confundir liberdade com sociedade. Acaba por ser algo parecido com o lema de John F. Kennedy: “Não fiquem à espera do que a democracia pode fazer por vocês, mas façam alguma coisa pela democracia”. E essa é a mensagem fundamental nos 50 anos de revolução.
Em 2018, você participou no Festival da Canção com uma música arrojada e que merecia melhor sorte (“Alvoroço”). Como enquadra esta faixa no conjunto da sua obra?
Eu não trabalhava em canções escritas em português desde 2013, quando fiz o meu álbum em nome próprio (“Roma”), porque passei por uma fase de bloqueio de escrita durante algum tempo. Quando surgiu a proposta de fazer uma música para o Festival da Canção aceitei. A ideia era mudar um pouco o festival e ligá-lo à real tradição de compositores e autores do nosso país. Era esse tipo de produção. Entretanto, a minha namorada pediu-me que eu fosse rever o Festival da TV Record de 1967 do Brasil, onde na final se encontravam músicos como Caetano Veloso (“Alegria, Alegria”), Chico Buarque (“Roda Viva”) e quem ganhou foi o Edu Lobo com a canção “Ponteio”. Eu acabei por me inspirar e fiz uma música imbuída do espírito de 1967. A minha ambição era que entrasse uma ideia de cantautor e não fosse só a noção de entretenimento e fantasia. Deu-me muito gozo fazer essa faixa e tenho bastante orgulho nela. Não estava à espera que ela alcançasse um lugar muito alto, porque o público do Festival da Canção é outro. Claro que em 2017 aconteceu uma coisa mágica quando o Salvador Sobral ganhou o Festival Eurovisão da Canção com “Amar Pelos Dois”, que é uma música muito bela e despejada de artifícios. Eu achei magnífico e foi por isso que apresentei “Alvoroço”. De resto, a canção deu-me algumas pistas sobre o que poderei fazer num novo trabalho como JP Simões.
Por ocasião do seu anterior trabalho “Drafty Moon” (2021), com o alter-ego Bloom, você disse numa entrevista que “Mudar drasticamente de estilo não é uma coisa que me seja incomum”. Até onde pretende levar este mote criativo como Bloom ou numa faceta diferente?
O projeto Bloom deu-me mais liberdade, talvez pelo compromisso de escrever em inglês. Por isso, progredi verticalmente e pude explorar outros caminhos. Julgo que é uma coisa possível de trazer para um disco em meu nome. Está tudo em aberto. Mas, o fundamental é que desde há algum tempo eu não estava com motivação para fazer um disco em nome próprio e agora estou porque tenho curiosidade para ver o que está do outro lado. Este ano ainda vou lançar um novo álbum de Bloom com um conjunto de canções que foram feitas durante a pandemia sem grandes expectativas. Mas, tive mais esperança com o álbum “Drafty Moon” que teve alguma repercussão e o disco ainda passa numa série de rádios. O novo trabalho como Bloom será simples e é de produção caseira, mas faço-o sem grandes perspectivas de o levar para a estrada. Voltando ao início da sua pergunta, eu não programo muito as coisas. Tirando o disco “1970”, que foi pensado num determinado conceito, em geral as ideias vão aparecendo. É por essa razão que às vezes dou por mim a caminhar num estilo musical que não me é familiar. O curioso é que David Bowie disse numa entrevista: “Quando estás a trabalhar em qualquer coisa e começas a perder o pé e não sabes bem onde aquilo te pode levar então é provável que estejas no lugar certo”. Gosto desse mote, embora nem sempre me consiga aventurar tanto quanto as minhas palavras sugerem, mas vou tentando sempre que posso.
A sua ligação com o Brasil é forte e é sobejamente conhecida. Nesse sentido, existe algum músico brasileiro com quem gostaria de fazer uma parceria e uma mensagem que pretenda deixar aos leitores do Scream & Yell?
Sou muito clássico nessas coisas, porque gosto de bossa nova e MPB. A minha geração foi influenciada pelo Tom Jobim, Vinicius, Chico Buarque, Edu Lobo e Caetano Veloso. Mas, há um músico que adoro e tive a oportunidade de estar com ele num festival em Belo Horizonte que é o Thiago Amud. Ele é um instrumentista incrível e um escritor fantástico. Claro que é uma pessoa muito literária e a música dele não encaixa bem naquele lado de suavidade brasileira. Mas gosto bastante do trabalho dele e é alguém com quem gostaria de colaborar. Recordo também que em 2013 a banda Graveola e o Lixo Polifônico, do Luiz Gabriel Lopes, releu uma música minha, “A Lenda do Homem Pássaro” (uma faixa incluída na coletânea do Scream & Yell “Projeto Visto: Brasil + Portugal”) e foi algo que me deixou bastante orgulhoso. Gostaria muito de voltar e fazer shows por lá. É sempre um prazer imenso, porque adoro o Brasil. Considerando que estamos a comemorar os 50 anos da revolução portuguesa, uma revolução que lutou contra formas de opressão políticas, sociais e espirituais, eu desejo que a música no Brasil continue a ser uma força de combate contra a autoridade.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.