texto de Davi Caro
Por mais estranho que possa parecer, o Pearl Jam é, até hoje, a mais singular de todas as bandas surgidas em sua geração. Basta tomar consciência de que o disco tido por muitos como seu melhor, “Vitalogy” (1994), completa 30 anos de seu lançamento original em 2024. Em retrospecto, este também pode ser considerado o disco no qual o Pearl Jam solidificou as bases que os conduziriam pelo resto da carreira – estamos falando, afinal, de um álbum que teve a audácia de juntar verdadeiros clássicos do quinteto de Seattle, como “Not For You” e “Corduroy”, com pérolas experimentais como a esquisita e desnorteante “Bugs”. Porém, mais além, “Vitalogy” se mostra o ponto final da primeira etapa da banda (sendo precedido pelos clássicos “Ten” e “Vs.”, de 1991 e 1993, respectivamente), e acabou dando lugar a uma nova faceta do grupo, que se perderia de si mesmo ao longo dos discos lançados até o fim dos anos 1990.
Pensar em tudo isso faz com que o processo de audição de “Dark Matter” (2024), mais novo álbum dos caras, traga consigo uma infindade de surpresas, mas também uma carga enorme de reflexão. O hiato que separa o novo trabalho de seu último disco de inéditas, “Gigaton” (2020) – quatro anos – pode não ser tão extenso quanto o período que se impõs entre este e seu antecessor, “Lightning Bolt” (2013), mas analisar os três em conjunto revela bastante sobre o processo adotado por Eddie Vedder (voz, guitarra), Stone Gossard (guitarra), Jeff Ament (baixo), Mike McReady (guitarra) e Matt Cameron (bateria) ao longo da última década. O álbum lançado no ano da pandemia mostrava um grupo de músicos tentando, ainda que muitas vezes com pouca confiança, variar sua paleta sonora no esforço de mostrar vitalidade e relevância num mundo onde poucas bandas de rock angariavam tanta atenção do público e da crítica com fervor.
A boa notícia, assim, é que, em “Dark Matter”, a banda descobre não precisar ir tão longe para se mostrar afiada e confiante. O décimo-segundo álbum de estúdio dos grupo (o quarto lançado por meio de sua própria gravadora, Monkeywrench Records) foi gravado ao longo de 2023 sob a batuta do jovem produtor Andrew Watt – o mesmo responsável por dar um requinte de modernidade, ainda que calculadamente sujo o suficiente, a trabalhos recentes de veteranos como Ozzy Osbourne e Rolling Stones… além de ter cuidado da produção do recente disco solo de Vedder, “Earthling”. A presença de Watt, no estúdio, já indicavam o proverbial clichê do “retorno à boa forma”. Principalmente em comparação com as sessões que conceberam o (divisivo) trabalho anterior.
O primeiro single – a faixa-título – realmente faz jus a expectativa de uma sonoridade mais orgânica, porém não antiquada. O resultado fica em algum lugar entre os momentos mais raivosos de “Yield” (1998) e os pontos mais memoráveis de “Backspacer” (2009), com a potência quase virtuose de Matt Cameron duelando com um empolgante desempenho de Vedder nos vocais. De maneira coerente, os mesmos dois elementos se fazem protagonistas da primeira faixa, a mais corrida “Scared Of Fear”, apesar de a dupla de guitarras de Stone Gossard e Mike McReady disputar seu merecido espaço. Já Jeff Ament se faz mais presente, em seus marcantes graves, na também acelerada e politizada “React, Respond”, na qual o vocalista questiona se “Estamos em guerra uns contra os outros?/ Você está em guerra contra você mesmo?”.
A tendência reflexiva continua na bonita, porém menos marcante “Wreckage”, que também serviu como o terceiro single do novo disco. Já “Won’t Tell” é muito mais recompensadora em suas melodias de seis cordas, bem como em seus acréscimos de teclados, que harmonizam, etéreos, nos refrãos. Aliás, os mesmos teclados – cortesia, inclusive, do convidado e ex-Chili Pepper Josh Klinghoffer – são a arma secreta da atmosférica “Upper Hand”, que lembra, ainda que de longe, os momentos mais experimentais de “Binaural” (2000). É um choque quando colocada lado-a-lado com as faixas seguintes, a mais tradicional “Waiting For Stevie” (cujo título, de acordo com o próprio Eddie Vedder, é uma referência a Stevie Wonder) e o segundo single, a boa “Running”, que pode ser a jóia oculta no repertório.
“Something Special” inicia a trinca que fecha o trabalho, com Cameron conduzindo ritmos que remontam ao pop sessentista (uma impressão auxiliada pelos backing vocals que tomam conta da faixa nos refrãos). É uma tentativa de inovação que, infelizmente, acaba decepcionando um pouco por soar menos confiante. Muito melhor prestar atenção em cada detalhe sutil do violão de cordas de aço que conduz “Got To Give”, que poderia facilmente ser trocada de lugar com a derradeira “Setting Sun”, que inova por usar percussão menos comum ao mesmo tempo que não deixa a sonoridade acústica de lado. Ambas são claramente feitas da mesma ambição em mostrar maturidade e vitalidade, e ajudam a concluir o disco de forma mais equilibrada – ou, pelo menos, mais espontânea.
Esta dicotomia entre reconhecer a própria longevidade e buscar a relevância (ou, ao menos, exibir a vitalidade ainda existente) há muito alimentam a jornada do Pearl Jam, à medida que seus novos lançamentos se tornam mais bissextos apesar de a banda nunca se distanciar de seu público, tocando ao vivo exaustivamente e, desde sempre, fazendo de seus shows uma experiência antológica. Aqueles dispostos a testemunhar o quinteto em seu habitat natural – o palco – devem se surpreender com a força das novas canções junto ao repertório já cristalizado no imaginário popular.
“Dark Matter” consegue equilibrar vários acertos (que não chegam a ser estratosféricos) apesar de momentos menos criativos e que, paradoxalmente, mostram cansaço na tentativa de soar mais contemporâneo (embora não estraguem a experiência). Longe de serem os rapazes combativos do início de carreira, ou os austeros experientes nos quais se transmutaram no início do novo século, o Pearl Jam agora parece atravessar uma nova fase, na qual mostram graça ao abraçar seu legado e celebrar sua jornada fazendo o que sempre fizeram: bons discos. Feliz o tempo no qual isso bastava para fazer de um artista, ou grupo, digno da atenção de tantos.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.