texto e vídeos de Bruno Capelas
fotos por Iris Alves
“Idades e palcos” – em português, esse é o nome da turnê que o cantor Tom Jones trouxe à cidade de São Paulo, na noite do último dia 17 de abril, no Espaço Unimed. Ele sabe do que fala: do alto de seus 83 anos, Jones soma seis décadas de carreira, e já fez de tudo um pouco em sua discografia: do pop de rádio AM a blues e country raiz, passando por versões particulares de algumas das canções mais maliciosas que já passaram pela Terra – caso de “Sexbomb” ou de “You Can Leave Your Hat On”, mais conhecida por muita gente como “aquela pra fazer strip-tease”. Mas quem foi à casa noturna da Barra Funda pensando em hits óbvios e sensualidade nos cabelos brancos ganhou também um strip-tease… da alma.
Não que Tom Jones não ofereça à audiência os sucessos que marcaram gerações com sua voz – como bom crooner criado nos anos 1960, ele sabe o poder de um bom refrão. Mas mais do que apenas viver de nostalgia barata, ele escolhe um repertório para a noite que propõe também analisar o envelhecimento de um artista, algo que fica claro desde o início com a balada “I’m Growing Old”, um dos principais números de seu mais recente disco – “Surrounded by Time”, de 2021. Executada apenas a voz e piano, a canção dá o tom do que virá a seguir: uma contraposição entre a experiência de ver os cabelos embranquecerem e a cabeça ainda se sentir jovem, com alguns hits no meio do caminho.
É também o que dá pra sentir em duas releituras espertas do cantor: “Not Dark Yet”, de Bob Dylan, e “Tower of Song”, de Leonard Cohen. Se na versão original, Robert Zimmermann fazia de sua própria criação um lamento sobre a velhice que chega, Tom Jones a transforma num rock convencional, como quem busca não só aproveitar até o último raio de luz, mas até bate palmas para o pôr do sol. Por outro lado, ao reler “Tower of Song”, é possível sentir já no primeiro verso que Jones sabe bem como é ver os amigos sumindo – ao longo da noite, ele homenageia gente que já se foi e com quem conviveu de maneira mais ou menos próxima, como Prince, Burt Bacharach, Jerry Lee Lewis ou Chuck Berry.
Mais do que apenas evidenciar a forma como Jones sente a passagem do tempo, as duas canções servem também como símbolos de um cantor que, a despeito de ser conhecido por hits ousados, busca de alguma forma trazer profundidade e modernidade para seu repertório. Isso pode acontecer na correta releitura de outra favorita de Dylan (“One More Cup of Coffee”) ou, ainda, quando ele executa dois números de seu mais recente disco que não fariam feio em álbuns de nomes “mais contemporâneos”, como David Byrne (a provocativa “Talking Reality Television Blues”) ou Nick Cave (com a elegia “Lazarus Man”, um blues moderno de quase dez minutos de duração).
Não é exatamente uma surpresa para quem já se dispôs a mergulhar um pouco na obra do cantor. Em setembro de 1999, três meses depois que Santana criou um padrão para álbuns cheios de participações especiais com “Supernatural”, o galês lançou o curioso “Reload”. O disco não só contém a versão original de “Sexbomb”, mas também inclui releituras de Talking Heads (“Burnin’ Down the House”), Lenny Kravitz (“Are You Gonna Go My Way”) ou Iggy Pop (“Lust for Life”) ao lado, respectivamente de Nina Persson, Robbie Williams e Pretenders – isso para não falar nas colaborações de Jones de queridinhos do indie, como Portishead ou James Dean Bradfield, do Manic Street Preachers. Mas divagamos.
Muito vivo no palco do Espaço Unimed, Jones evita sabiamente que uma única energia tome conta do show. Aos poucos, ele vai alternando diferentes tipos de canções, entre números mais ousados, releituras previsíveis (um bom exemplo é “Popstar”, do amigo Cat Stevens) e, claro, sucessos. Logo na partida, surgem “It’s Not Unusual” e “What’s New Pussycat?”, em versões dignas de papel carbono – tal como aquela propaganda que já denuncia idade (ou “referência de velho”), “a voz de Jones continua a mesma, mas os cabelos…“. Outra que não faltou no repertório da noite foi “Sexbomb”, em uma versão mais bluesy e menos dançante, mas ficaram de fora hits como “She’s a Lady” ou “I’ll Never Fall In Love Again”.
Não que o público pareça ter sentido falta. Distribuída de maneira esquisita em cadeiras pelo recinto do Espaço Unimed, a despeito do show ter sido inicialmente vendido em formato de mesa, a plateia pouco se empolgou durante o show, com exceção de alguns aplausos mais emocionados. A baixa lotação também não ajudou muito: em uma estimativa rápida, é possível apontar que pelo menos uns 40% dos assentos estiveram vazios durante todo o espetáculo, realizado numa quarta-feira de tempo instável em São Paulo (ora chovia, ora fazia calor).
Só houve três momentos em que o público se movimentou de maneira mais expansiva. A primeira foi no hit “You Can Leave Your Hat On”, executada à risca por Jones e sua competente (mas um pouco quadrada) banda. Minutos depois, foi a vez de lembrar Prince com a sacolejante “Kiss” – uma daquelas músicas que, enquanto existir um espaço que se assemelhe a uma pista, continuará indefinidamente fazendo seres humanos e outros mamíferos dançarem.
Já no bis, depois da reflexiva “One Hell of a Life”, o cantor galês atraiu bastante gente ao pé do palco para um momento rock’n’roll. Primeiro, veio a homenagem à pioneira Sister Rosetta Tharpe com “Strange Things Happen Everyday”. Depois, ele lembrou um causo: “certa vez, eu e Elvis fazíamos shows juntos em Las Vegas, e depois saíamos para curtir. Um dia fomos ver Chuck Berry tocar e Elvis me disse: ‘Chuck é o rei do rock’n’roll’”. Foi a deixa para que a banda irrompesse no mais clássico dos riffs: “Johnny B. Goode”, que fez gente de diversas gerações lustrar a pista com seus sapatos enquanto Jones mostrava seu lado mais moleque.
Ao final do show, ele reuniu os músicos, agradeceu a presença da plateia e disse que se divertiu muito. “Nós tocamos juntos há muito tempo e queremos tocar por muito tempo mais pra vocês”, comentou o galês, mostrando a vitória da juventude cerebral sobre o envelhecimento do corpo e chutando pra longe qualquer carnê de aposentadoria. Pode parecer pouco, mas não é: em tempos que bandas jovens se despedem a troco de nada, ver um artista veterano com tanta avidez pelo palco, mesmo numa noite morna, é de tirar o chapéu.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
Parabéns pelo post e análise, Bruno! Estamos falando de um ícone, amigo de Elvis e tanto outros ícones, com muita história pra conta. A verdade nua e cria: enquanto proliferam as bandas e músicas de qualidade duvidosa, Sir Tom Jones segue fazendo história e cumprindo sua missão com a mesma vitalidade que o projetou nos palcos do mundo todo. Vida longa para ele!