texto de Gabriel Pinheiro
O ambiente íntimo, familiar e a maneira como esse espaço é moldado e transformado por fatores externos – a política, as normas sociais, os padrões e regras impostos historicamente aos papéis de pai, mãe, filho, homem e mulher – é o espaço rememorado e analisado pelo escritor francês Édouard Louis em dois livros breves e pungentes. “Quem matou meu pai” e “Lutas e metamorfoses de uma mulher” foram publicados pela Todavia Livros em 2023, com tradução de Marília Scalzo.
Cada trabalho foca em um dos “pilares” do núcleo familiar de Louis, o pai e a mãe, percorrendo, sobretudo, um período entre os anos 1990 e 2000, durante a infância e a adolescência do escritor numa comunidade pobre no interior da França. Se olha para o passado, Édouard Louis compartilha com o leitor a maneira como as cicatrizes do relacionamento com cada progenitor deixaram marcas indeléveis, que persistem no tempo presente.
“Quem matou meu pai” começa nos convidando a imaginá-lo como uma peça de teatro. “Se este texto fosse um texto teatral, deveria começar com essas palavras: Um pai e um filho estão a alguns metros um do outro num grande espaço, vasto e vazio”. Nesta breve narrativa ensaística, Edouard apresenta ao leitor como este espaço entre pai e filho se tornou cada vez mais vasto e vazio ao longo dos anos de convivência dentro do ambiente familiar.
A masculinidade tóxica, o trauma – tanto aquele imposto quanto aquele sofrido, ambos diretamente relacionados –, a homofobia e a pobreza são alguns dos temas que se destacam na narrativa. Se poderia cair no maniqueísmo dos papéis determinados – pai opressor e o filho oprimido –, Edouard Louis destrincha com muito cuidado e atenção este relacionamento, não restringindo-o ao ambiente íntimo, mas observando o quanto o mundo exterior e o próprio passado do pai (e seu processo de crescimento em um lar disfuncional) afetam diretamente a maneira como esta relação se deu ao longo da infância e da adolescência do escritor. “É estranho, porque, como seu pai era violento, você repetia obsessivamente que nunca seria violento, que nunca bateria em nenhum dos filhos, você dizia: Nunca vou encostar a mão em nenhum filho meu, nunca na minha vida”.
Já em “Lutas e metamorfoses de uma mulher”, Édouard Louis direciona o olhar para a figura materna, reconstruindo em texto tanto um passado compartilhado, quanto um verdadeiro processo de independência da mãe, que se vê divorciada do pai e dos papéis socialmente impostos à mulher dentro de um vilarejo francês marcado pela ausência de recursos. “Por que tenho a impressão de estar escrevendo uma história triste, sendo que meu objetivo era contar a história de uma libertação?”
Logo no início, Édouard declara que tudo começou com uma foto encontrada ao acaso. Nela, a mãe está sozinha, aos 20 anos. Uma selfie num período em que os celulares ainda não existiam. A mulher sorri e o olhar parece transmitir, quem sabe, um sentimento de felicidade. Essa imagem não condiz com aquela guardada na memória do período em que ambos compartilharam o mesmo teto. “A visão da sua felicidade me fez sentir a injustiça de sua destruição. Chorei diante dessa imagem porque fui, sem querer, ou talvez, melhor dizendo, com ela e às vezes contra ela, um dos atores dessa destruição”.
Obras independentes e complementares, tanto “Quem matou meu pai” quanto “Lutas e metamorfoses de uma mulher” partem do íntimo para dizer de algo bem mais amplo. Édouard Louis faz uma leitura contundente da sociedade francesa, da opressão de classe e da política do país. Num gesto que remete fortemente ao trabalho da também francesa Annie Ernaux, Louis conecta as tortuosas trajetórias dos progenitores – e, consequentemente, a própria – com as questões de classe, a imobilidade e a desigualdade social. “Disseram-me que a literatura nunca deveria soar como um manifesto político, e no entanto afio cada uma de minhas frases como se afia a lâmina de uma faca”.
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– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.