entrevista de João Paulo Barreto
Roteirizado pelo jovem e prodigiosos escritor Raphael Montes, que já havia tido êxito como autor do livro que deu origem à série da Netflix “Bom Dia Verônica”, e dirigido pelo veterano José Eduardo Belmonte, “Uma Família Feliz” (2024) constrói – em seus pouco mais de cem minutos – uma narrativa de suspense que instiga a audiência por nunca deixar muito claro as intenções e naturezas de seus personagens centrais. Ao abordar a rotina de uma família aparentemente perfeita (que concretiza a ideia irônica de seu título), Montes, em seu roteiro, destrincha a plasticidade falsa de uma classe social branca e rica, a famosa “beautiful people”, mas que, naquela vida reluzente feito cristal, a mesma fragilidade dessa metáfora comparativa se destaca.
A bela Eva (Grazzi Massafera, mais uma vez surpreendendo em papéis dramáticos) é uma jovem artesã de bonecas hiper-realistas que está grávida do primeiro filho. Casada com Vicente, um jovem e bem-sucedido advogado (Reynaldo Gianecchini, caprichando em manter a real personalidade e motivações de seu personagem nas sombras) e madrasta das gêmeas filhas oriundas do primeiro casamento de seu esposo, Eva tem em sua vida a aparente perfeita rotina que toda jovem mãe busca. Dedicada à casa luxuosa e aos cuidados domésticos com as enteadas e marido, ela, também, encontra tempo para manter sua profissão de artista.
Porém, nos sorrisos perfeitos e tesão em uníssono daquele casal ideal, uma personalidade passivo-agressiva por parte do marido se esconde. Um comportamento tóxico que encontra vazão no menosprezo para com a profissão de sua esposa. Após o nascimento do bebê, o estresse oriundo de todo trabalho que chega junto com o rebento, bem como uma série de acontecimentos suspeitos de violência doméstica com as crianças vem à tona. Em sua direção, que não apela para sustos fáceis, Belmonte se apoia de modo eficiente na direção de arte do filme, que utiliza as bonecas fabricadas por Eva para gerar uma análise plástica e hermética daquele ambiente falso onde vive a mulher.
E à medida que o filme vai desenvolvendo sua trama e os mistérios relacionados ao que realmente vem acontecendo de violento com as crianças, o público é levado a conhecer as nuances psicológicas tanto de Vicente e Eva, quanto do mais surpreendente elo que liga aqueles familiares.
O diretor Belmonte, em entrevista ao Scream & Yell, falou sobre essa junção de visões com Raphael Montes, que, além de roteirizar o filme, trabalhou como diretor-assistente. “Todo o processo é dialético. O cinema é um processo dialético na sua própria origem. Ele é lúdico e é tecnológico ao mesmo tempo. Parto do pressuposto de que em todo o processo dialético, você tem que estar se ajustando à situação, às circunstâncias e às pessoas. Venho da escola de documentário. Então, trabalho muito nessa lógica. Óbvio, são visões de mundo e jeitos diferentes. Óbvio que a gente às vezes discorda, mas somos adultos e profissionais, também. E tem uma coisa bacana: estamos preocupados com o resultado. Temos um bem comum nas nossas discordâncias (o filme), e acho que ele prevaleceu sempre. Foi um processo muito rico”.
Raphael Montes afirma que, mesmo tendo roteirizado o filme (que se tornou livro em uma expansão após ter tido sua origem como roteiro), esteve no set não na função de escritor, mas, sim, de diretor-assistente. “Quando fui para o set, tentei ir não como autor. Tentei ter uma visão de alguém que está lá como diretor-assistente. Então, às vezes no set surgia alguma coisa, e eu, em vez de ser o autor e falar ‘Não, mas no roteiro está assim’, eu falava ‘Ficou bom. Vamos nisso, Belmonte. O que você acha?’ Tinha um pouco desse processo. O autor que escreveu o roteiro não foi para o set. Quem foi para o set foi o diretor-assistente”, confirma.
Para Reynaldo Gianecchini, o aspecto ambíguo de seu personagem foi algo que ele utilizou na composição de Vicente. “Como um bom filme de gênero, thriller, esse elemento foi muito importante. Criar esse mistério e não deixar nada super explícito. Tínhamos, claro, que ter esse cuidado, essa preocupação de não revelar nada (antes). A ideia era criar o tempo todo essa ambiguidade para que esse personagem não fosse, em nenhum momento, entendido de cara. Faz parte do thriller isso. Então, foi um processo interessante de fazer no set”, relembra o ator.
“Uma Família Feliz” representa um retorno do ator ao cinema após uma revisita às suas origens, quando começou a se interessar pelo tablado no Teatro Oficina, que tinha o saudoso dramaturgo Zé Celso como idealizador e guerreiro à frente. Tal revisita aconteceu em “Fédro”, filme lançado em 2021. Baseado em Platão, o longa traz o próprio Zé Celso ao lado de seu pupilo em uma conversa intima dentro de um apartamento. No papo com o Scream & Yell, Gianecchini comentou o impacto de reencontrar e atuar ao lado do seu mentor. “Essa palavra é muito boa. Impacto. É o que o Zé Celso me causa. Fazer o ‘Fédro’, para mim, foi de, uma certa forma, olhar para tanta coisa minha, sabe? Foi muito importante aquele dia que eu passei lá, fechado com ele, em um apartamento e falando sobre tantas coisas. Acho que abriu muito a minha cabeça para um monte de coisas. Porque ele tem uma liberdade que é gigante. E isso só faz a gente entender o quanto temos a nossas amarras quando estamos diante de uma pessoa assim, tão livre”, afirma o ator em relação ao mestre.
Ao falar de Zé Celso e da experiência em “Fédro”, Gianecchini relembra com uma introspecção palpável sua origem nos palcos. “Artisticamente, tudo comigo começou ali. Ele foi o que o cara que, de uma certa forma, fez eu entender que eu queria ser ator e, principalmente, ator de teatro. Acho que mudou muito depois de que eu passei aquela tarde com ele. Parece besteira falar isso, mas, algo lá dentro mexe com um desafio seu, do artista. Do que é ser artista. Do que você quer. E foi num momento muito perfeito de transição minha. Quero parar um pouco de fazer novela após vinte anos. Quero fazer personagens e me desafiar em outras narrativas, em outros jeitos de contar história, em outros veículos. Tudo isso veio junto para eu repensar o artista que eu quero ser. O ser humano que eu quero ser. Os processos que eu quero viver com artistas que me levam para viver os processo como ser humano. Porque, quando a gente aceita um trabalho, a gente está se propondo também a viver umas experiências pessoais muito significantes. Zé Celso tem muito a ver com isso. Foi lindo de ver a sincronicidade da vida”, filosofa o ator.
Leia abaixo na íntegra a entrevista com José Eduardo Belmonte, com Raphael Montes e com Reynaldo Gianecchini.
Uma vez que no set estava presente o Raphael Montes na função de diretor-assistente, para vocês foi difícil encontrar um uníssono de pensamentos entre roteirista e diretor na execução do projeto “Um Família Feliz”?
José Eduardo Belmonte – Todo o processo é dialético. O cinema é um processo dialético na sua própria origem. Ele é lúdico e é tecnológico ao mesmo tempo. Ele é muito industrial e lúdico ao mesmo tempo. Parto do pressuposto de que em todo o processo dialético você tem que estar se ajustando à situação, às circunstâncias e às pessoas. Venho da escola de documentário. Só fiz um documentário em minha vida, mas a minha formação acadêmica é de documentarista. Então, trabalho muito nessa lógica. Óbvio, são visões de mundo e jeitos diferentes. Óbvio que a gente às vezes discorda, mas somos adultos e profissionais. Trabalhamos nessa lógica. E tem uma coisa bacana: estamos preocupados com o resultado. Temos um bem comum nas nossas discordâncias e eu acho que esse bem comum prevaleceu sempre. Foi muito rico. Quando a gente reflete, podemos pensar: “De repente, eu faria diferente? Sim”. E o Rapha, também, faria algo diferente. Mas isso é bonito. Porque vejo o filme e ele é, no bom sentido da palavra, um mix entre o universo do Rapha e o meu universo. Se você assiste ao filme e você lê o livro, ele é muita mistura do universo dos meus filmes com o universo do Rafael. Isso é muito bacana no cinema: a arte do encontro. É uma arte dialética em que você cria a síntese. E é bonito quando a síntese consegue acontecer. Já vivi processos como produtor em filmes com outros produtores no qual essa síntese não aconteceu. Ficava um troço meio ambíguo, no mau sentido. Algo tipo, “é isso, não é isso”, sabe? Aqui, conseguimos uma organicidade. Com muita conversa, com muito diálogo e com muita discordância, também. Isso é do processo dos adultos e dos profissionais. É uma coisa um pouco de família e é bonito. Tem as tias e os primos da família. A diretora de fotografia, a diretora de arte, a produtora, o elenco, que teve uma participação muito grande na dramaturgia desse processo – o trabalho do Giane (Reynaldo Gianecchini), o trabalho da Grazi (Massafera). O processo todo é colaborativo. E ele só é bom assim. A ideia e o conceito de direção são muito superestimados. A ideia do diretor em um grande trono, como um grande autor, isso não existe no cinema. Isso é um paradigma que se inventou nos anos 1960 que precisamos repensar. Assim como também a ideia da televisão, do autor, como o cara que está em um trono responsável pela decisão. Isso é um paradigma antigo. O paradigma moderno é o do processo colaborativo.
Raphael Montes – Concordo totalmente com Belmonte. O mais importante nesse processo foi o nosso diálogo. E, justamente, ainda que tendo eventuais discordâncias, que, sendo honesto, nem foram tantas, o que foi muito importante para nós, desde o início, foi responder: “o que a gente quer fazer juntos?”. A gente falava muito de referências. “O que a gente quer fazer?” E concordamos que a gente queria fazer um bom suspense brasileiro. Queríamos fazer um suspense com elementos brasileiros, em um universo brasileiro que, de algum modo, tem um pouco de melodrama. Tem um pouco do que a gente já tem na nossa cinematografia, vamos dizer. Mas que fosse um suspense que homenageasse as chaves do gênero e que impactasse o público nesse lugar do gênero. Então, tendo isso como premissa, as nossas conversas eram em cima disso. Ou seja, queríamos fazer o mesmo filme. Claro que às vezes enxergávamos diferente a maneira de fazer isso. Mas concordo totalmente com o Belmonte: hoje, ao assistir ao filme, o vejo como sendo muito meu, com a minha assinatura. Mas, também, sim, é um filme muito do Belmonte. E isso que é o bonito do processo, sabe? Se esse filme fosse escrito por mim e dirigido por outro diretor, ele seria um outro filme. Porque é isso. Tem a identidade do Belmonte muito ali. E esse encontro foi muito legal.
Como foi esse processo entre deixar a função de escritor e passar para a de diretor-assistente no set?
Raphael Montes – O processo do escritor é muito solitário. Escrever livro é algo muito sozinho. Você decide tudo. Não tem problema de orçamento. Não tem um produtor te ligando e falando “isso é muito caro”, que tem que repensar. Posso fazer o que eu quiser no livro. Então, como o processo do escritor é muito solitário, o processo do audiovisual tem essa coisa da troca, que gosto de fazer. É justamente o que chega do outro. E no set tentei, quando ia, ir muito como diretor-assistente, não como autor. Tentei ter uma visão de alguém que está lá como diretor-assistente. Então, às vezes no próprio set, surgia alguma coisa, e eu, em vez de ser o autor e falar “Não, mas no roteiro está assim”, eu falava “Mas isso ficou bom. Vamos nisso, Belmonte. O que você acha?” O autor que escreveu o roteiro não foi para o set. Quem foi para o set foi o diretor-assistente. Como método, nós definimos como é que funcionaria no set, que é um lugar em que é muito importante o diretor ter essa espécie de controle do que está acontecendo. Então, eventualmente, quando tinha alguma sugestão, eu falava com o Belmonte, e ele me dizia: “Rapha, essa é uma boa ideia”. Ou então: “Não, Rapha, não é preciso”. Porque o Belmonte monta filmes. Então, às vezes, eu falava: “Belmonte, vamos fazer um plano assim?” E ele respondia: “Não, não preciso desse plano porque daqui já corto para lá”. Foi um aprendizado para mim. Aprendi muito também vendo isso tudo no set com ele.
O livro expande a história do roteiro do filme. Imagino que essa liberdade maior na escrita lhe deu mais possibilidades para desenvolvimento dos personagens e da história.
Raphael Montes – Sim. E foi prazeroso escrever primeiro o roteiro e, dele, escrever o livro. Do roteiro, pude expandir e fazer o romance. Além de expandir, pois tem alguns acontecimentos que simplesmente não existem no filme porque não cabia, ele é da perspectiva da Eva. O romance é narrado em primeira pessoa a partir da cabeça da protagonista. Então, eu ainda pude entrar na personagem, que é algo muito próprio da literatura, a figura do narrador. No cinema, a câmera está lá filmando e ela é externa. Na literatura, eu consigo entrar na cabeça da personagem. E isso é muito legal para mim. Então, foi um prazer e uma alegria, porque pude expandir o universo, fazendo o livro a partir do filme.
Reynaldo, seu personagem traz uma personalidade muito dúbia, uma presença ambígua. Como foi a construção do Vicente para que se pudesse transmitir à audiência essa sensação?
Reynaldo Gianecchini – Como um bom filme de gênero, thriller, esse elemento foi muito importante. Criar esse mistério e não deixar nada super explícito. É um personagem que o tempo todo tem que estar ambíguo. Assim como todos. A gente tinha, claro, que ter esse cuidado, essa preocupação de não revelar nada antes. Seria o contrário. A ideia era criar o tempo todo essa ambiguidade para que esse personagem não fosse, em nenhum momento, entendido de cara. Faz parte do thriller isso. Então, foi um processo interessante de fazer np set. Contei muito com o Belmonte, que criava uma dinâmica para cada cena para que ali tivessem todos os elementos, mas que fossem ocultos, também. “Uma Família Feliz” é um filme sobre as aparências. Então, na interpretação, também, era sobre o que a gente escondia. Tinham que estar lá várias emoções, mas ocultas. O mistério surgia disso. E junto também vem a montagem, todo o trabalho de atenção do Belmonte, que, também, é o montador do filme. A gente conseguiu uma coisa que, eu assistindo ao filme, eu mesmo fico achando o Vicente muito misterioso. Eu sei tudo o que eu fiz, mas como público, assisti e consegui me desprender, embarcar muito na história e ficar completamente intrigado com esse cara. Por exemplo, ele parece muito fofo. E, claro, a gente tinha que ter essa camada relacionada ao pai que, aparentemente, é presente ali com as filhas, ajuda na casa. Mas, ao mesmo tempo, o Belmonte usava uma palavra muito boa para defini-lo. Ele é o passivo agressivo. Ele parece fofo, mas também agride no momento em que ele descredibiliza bastante a mulher. E ele é machists quando solta umas frases e a descredibiliza como esposa e mãe. São várias coisinhas que tinham que estar presentes ali e que a gente ia construindo cena a cena com muito cuidado para deixar sempre essa ambivalência no ar. Foi um processo difícil. É difícil de fazer. Mas, por isso mesmo, muito instigante e muito prazeroso.
“Uma Família Feliz” é o seu primeiro filme após ter lançado há dois anos o documentário “Fédro”, que trazia você e o Zé Celso em cena. Revisitar sua origem no Teatro Oficina, passar aquele período em cena com o seu mentor, gerou um impacto muito forte, imagino. Como foi esse revisitar de sua trajetória, de olhar para trás em sua vida artística e pessoal, e voltar ao cinema após esse processo?
Reynaldo Gianecchini – Essa palavra é muito boa: impacto. É o que Zé Celso me causa. Fazer o “Fédro” foi olhar para tanta coisa minha. Aquele dia que eu passei lá fechado com ele em um apartamento e falando sobre tantas coisas foi muito importante. Acho que abriu muito a minha cabeça para um monte de coisas. Zé Celso tem uma liberdade que é gigante. E isso só faz a gente entender o quanto temos as nossas amarras quando estamos diante de uma pessoa assim, tão livre. Artisticamente também. De certa forma, tudo comigo começou ali. Ele foi o cara que, de certa forma, me fez entender que eu queria ser ator. Principalmente, ator de teatro. Acho que mudei muito depois que passei aquela tarde com ele. Parece besteira falar isso, mas algo lá dentro mexe com um desafio seu, do artista. Do que é ser artista. Do que você quer. E foi num momento muito perfeito, porque é um momento de transição minha. Eu também quero parar um pouco de fazer novela após vinte anos. Quero fazer personagens e me desafiar em outras narrativas, em outros jeitos de contar histórias, em outros veículos. Tudo isso veio junto para eu repensar o artista que eu quero ser, o ser humano que eu quero ser, os processos que eu quero viver com artistas que me levam para viver os processo como ser humano. Porque, quando a gente aceita um trabalho, a gente está se propondo também a viver umas experiências pessoais muito significantes. Zé Celso tem muito a ver com isso. Foi lindo de ver a sincronicidade da vida. Como isso vai te levando. Sinto que, no cinema, ainda faltava eu fazer personagens que eu pudesse me expressar, talvez, de uma forma maior. Tive boas oportunidades na TV fazendo novela e muitas no teatro. Eu fiz, durante muito tempo, essas duas coisas, menos cinema. Então, acho que, agora, a minha vontade é de fazer muito mais esses mergulhos no cinema, que são narrativas um pouco mais elaboradas de você contar a história. Estou tendo a sorte de receber bons personagens como esse de “Uma Família Feliz”, como o de “Bom Dia, Verônica”. Acho que tudo vem na hora certa. Estou muito feliz com isso. Quando você repensa a trajetória, gosto muito de olhar para trás e ver como tudo veio na hora certa. E como tudo me encaminhou para um crescimento profissional, pessoal, para eu estar aqui pensando e fazendo o que eu estou fazendo hoje.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.