texto de Davi Caro
Poucas pessoas discordariam do status de ícones inegáveis que o Jesus & Mary Chain angariou para si. Há quase 40 anos de seu incensado debute, “Psychocandy” (1985), os irmãos Jim e William Reid venceram praticamente todas as adversidades que podem se abater sobre uma banda formada por dois irmãos escoceses e disfuncionais: porém, pasme, cá está “Glasgow Eyes” (2024), lançado pelo selo Fuzz Club, e o segundo novo trabalho da dupla desde seu retorno, em 2007 – o anterior, o bacana “Damage and Joy”, saiu há sete anos. Não que ainda haja algo a provar (por parte dos dois) ou a se esperar (da parte do público); o simples fato de os músicos consanguíneos conseguirem, mais uma vez, se apresentar em público sem quaisquer farpas já é um feito comovente e, por que não, histórico.
Mas é claro que não estamos falando de qualquer banda, e mesmo um dos nomes mais influentes e estabelecidos da música alternativa no século 20 (e no seguinte também) é capaz de surpreender. Mesmo retendo o co-produtor (e ex-Killing Joke) Youth como principal colaborador, o processo de composição e registro se mostrou um tanto mais insular do que no álbum passado, onde boa parte do material já havia saído em outras versões, ou vinha sendo trabalhado por algum tempo: “Glasgow Eyes” é fruto de uma abordagem que, segundo o mais novo dos Reid, o assemelha ao que a dupla fazia há quarenta anos: “Vamos só ir para o estúdio e ver o que acontece”, disse Jim, frente ao lançamento do primeiro single, “jamcod”. Aqui, em meio às barulheiras guitarrísticas com as quais os iniciados já são mais do que acostumados, surgem sintetizadores que modernizam a abordagem que pariu “Automatic” (1989). Eis a primeira surpresa: pela primeira vez, o Jesus & Mary Chain não parece desconfortável em se aproximar de sonoridades mais, aham, “modernas”.
Não custa citar que, de acordo com William, o álbum precisou ser inteiramente refeito graças a falhas técnicas que acabaram apagando os registros iniciais. Talvez a oportunidade de refazer as gravações, então, tenha aberto a porta para os teclados dissonantes que permeiam as faixas – uma abordagem que se mostra mais do que acertada, a exemplo da abertura “Venal Joy”. Mesmo que o uso dos tais efeitos se mostre ora mais coadjuvante (como na apropriadamente entitulada “Discotheque”), ora mais determinante no arranjo (na penúltima – e ótima – “Girl71”), “Glasgow Skies” não traz os irmãos Reid fazendo questão de se distanciarem tanto daquilo que fazem melhor: melodias ao mesmo tempo viciantes em sua doçura e desorientadoras em suas microfonias e barulheira.
E é claro que os fãs de longa data tem mais do que motivos suficientes para se empolgar com o novo material: “Pure Poor” é a mais reminiscente do J&MC como o grupo foi apresentado ao mundo pela primeira vez, tanto no aspecto sonoro quanto na parte lírica. Mais acelerada, porém não menos característica, é “Mediterranean X Film”, com suas referências à June Cash, Winston Churchill e Charles De Gaulle (ainda que a faixa perca um pouco do gás conforme se aproxima do final). Mais recompensadora, e mais “quadrada”, “Second of June” se vale de bonitas melodias de piano e percussão bastante discreta, além de servir de evidência da qualidade vocal de Jim, que canta como se fosse 1987. Além de, de forma surpreendente, trazer uma citação ao próprio nome da banda na letra, num aceno que pode soar estranho vindo de personalidades tão notoriamente sisudas e blasé quanto os dois irmãos.
Este, aliás, é um ponto no qual o novo disco se diferencia, e muito, dos álbuns que alçaram os Reid ao sucesso mundial e ao status de influência perpétua: o senso de humor. Talvez seja a reputação de Jim e William como briguentos e disfuncionais falando mais alto, mas “Glasgow Eyes” é o som dos dois músicos compondo, gravando, e, pasme, se divertindo juntos. É bem difícil precisar quando foi a última vez em que o duo soou tão relaxado em um novo disco, e as vibes positivas se extendem para além da sonoridade: com um riff perigosamente próximo daquele de “I Love Rock and Roll”, imortalizado por Joan Jett e seus Blackhearts (quiçá uma quase-paródia?), a sensacional “The Eagles and the Beatles” enfileira referências não só ao Fab Four, como também a Dylan, aos Rolling Stones e aos Sex Pistols – com a mesma honraria sendo extendida também ao Small Faces e até ao lendário produtor e empresário britânico Andrew “Loog” Oldham. Divertindo e encantando ao mesmo tempo, a faixa tem uma “prima” bem humorada no encerramento, com a inacreditável “Hey Lou Reid” (com “i”, mesmo). A segunda só perde em relação à primeira no que diz respeito à interpretação vocal de William, enterrado na mixagem de maneira que pode até ser proposital. O mais velho da dupla, aliás, soa muito melhor na bacana “American Born”, no extremo oposto do álbum.
Dá para dizer que os sete anos que separaram “Glasgow Eyes” de seu antecessor fizeram bem ao centro criativo do J&MC. Jim e William Reid mostram, em seu novo repertório, que não apenas amadureceram enquanto artistas – tanto individual quanto coletivamente – e aprenderam a incorporar tendências mais atuais a seu som, tão distinto, sem descaracterizá-lo. Outro ponto digno de nota tem a ver com a vibe passada pelo repertório em si, e com as nuances presentes nas canções: poucas vezes a banda soou tão relaxada e à vontade em um registro em estúdio, mesmo quando comparando as novas canções com aquelas presentes em “Damage and Joy”.
A tensão entre os dois irmãos, peça fundamental nos processos de gravação e composição de clássicos como “Darklands” (1987) ou “Honey’s Dead” (1992) parece ter dado lugar a um consciente desejo de colaboração, com a dupla dividindo de forma quase igual os vocais principais no novo disco. Pelo menos, é o que transparece no palco: o Jesus & Mary Chain segue fazendo shows, e, a julgar pelo recente registro ao vivo “Sunset 666” (2023), ainda mostram muito gás em cima de um palco (o último show em São Paulo, em 2019, “foi uma noite inesquecível”, cravou o Scream & Yell). Se mostrando pouco comprometidos a lançar material novo com uma frequência alta, os Reid demonstram entusiasmo (ainda que por trás de seu eterno verniz de deslocamento cool) em amadurecer diante de seu público. É justo, dessa forma, dizer que, se “Glasgow Eyes” vier a ser o último registro em estúdio de uma das bandas mais influentes de sua geração, deixará um testamento mais do que digno de seu legado: o de mestres na arte de fundir microfonias ensurdecedoras com melodias transcedentais em sua simplicidade e beleza, ou de alquimistas na transformação da disfunção familiar em boas (e, às vezes, imortais) canções.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.