entrevista de João Paulo Barreto
Morar longe, lá em Jaçanã, e se esforçar para não perder o trem que sai agora às 11h por dois motivos: a mãe não dorme enquanto ele não chega e porque, se perdê-lo, só amanhã de manhã. Marcar um samba lá no Brás, na casa do coligado Arnesto. Ser alertado de levar uns embutidos e umas biritas. Chegar na hora combinada e dar de cara com a casa vazia, a porta fechada e sem o aviso do amigo colado (o vento levou). A balconista do Black Tie, o boteco do samba, Iracema, com sua beleza, talento para a arte do figurino e tragicidade futura. A derrubada do palacete abandonado, uma saudosa maloca onde viviam João, Joca e Mato Grosso, os três amigos com alergia a trabalho e afinidade por duas coisas: cachaça e samba.
Os causos e personagens citados acima são criação de João Rubinato, o comediante e sambista que adotou para si a alcunha lendária de Adoniran Barbosa. Tais criações, agora, ilustram uma maneira poética de conhecermos quem foi tal gigante. E o nome da obra cinematográfica que batiza essa visita com liberdade poética à sua trajetória não poderia ser mais apropriado que o mesmo que batizava o palacete em ruínas onde viviam algumas de suas criações: “Saudosa Maloca” (2024).
Dirigido por Pedro Serrano e com Paulo Miklos encarnando Adoniran Barbosa, o filme não somente traz uma dramatização da obra do sambista através de seus notórios personagens, mas cria para a audiência uma reflexão sobre a dura lida do compositor popular brasileiro e sua busca por reconhecimento dentro de sua arte. Serrano, que já havia visitado a trajetória do ícone da música brasileira em duas ocasiões distintas (através do curta metragem de 2015, “Dá Licença de Contar”; e com o documentário “Adoniran – Meu Nome é João Rubinato”, de 2018), retorna a uma proposta de narrativa poética da vida de Adoniran e entrega um resultado que prima não somente pelo cômico, mas, também, por um eficiente drama dentro da reflexão atrelada às dificuldades da figura do artista e sua vontade de viver do que produz.
“A minha primeira abordagem com o curta era essa abordagem poética sobre a sua obra”, explica Pedro Serrano em entrevista ao Scream & Yell. “Eu me interessava em falar dele através da obra criada por ele e não através do recorte de uma cinebiografia. Como existiu o projeto do curta como uma viagem no universo criativo dele, foi no documentário que eu tive a possibilidade de me entregar para fazer algo biográfico e documental nesse sentido de linguagem para falar de fatos da vida”, pontua.
Com essa licença poética e um foco na química precisa entre seus três protagonistas, o diretor encontrou uma maneira de homenagear não somente Adoniran, mas toda uma época do samba paulistano. E vai além. A partir da presença de Gero Camilo no papel do folgado e preguiçoso Mato Grosso, e de Gustavo Machado como o galanteador bon-vivant e não menos preguiçoso Joca, “Saudosa Maloca” encontra ecos de uma comédia clássica que remete à “Os Três Patetas”, Mazzaropi, Buster Keaton e Chaplin.
Paulo Miklos pontua essa química de seus colegas de cena. “O Pedro deixou a gente muito à vontade. Trabalhamos isso muito detalhadamente nas cenas”, relembra. “Criamos e aprofundamos essa cumplicidade – além de ser de seu privilégio trabalhar com o Gero e Gustavo. Esse trio de vagabundos, essa turma de maloqueiros, o trio da maloca, teve a chance de desenvolver essa cumplicidade já nos ensaios do curta. O Pedro trabalhou com a gente cada momento daqueles. E a gente foi buscar essas brincadeiras que remetem muito às comédias do cinema mudo. É um humor físico. É uma possibilidade de fazer essa coisa interessante da relação entre os personagens”, define Miklos.
Sobre a genuína química não somente entre o trio, mas, sobretudo, entre os personagens de Gero Camilo e Gustavo Machado, Paulo Miklos relembra que, dentro da figura patriarcal de Adoniran, ele, várias vezes, apenas testemunhava a interação cômica entre seus parceiros de filme. “Por muitos momentos, eu estava assistindo aos dois. Porque eles têm uma dinâmica tão incrível em cena. E o Adoniran dava mais bronca neles. Pareciam dois moleques, dois garotos. E o Adoniran era uma espécie de pai dando bronca. Então, se criou essa relação bacana muito próxima da gente. Isso transparece no filme e é um dos pilares da história”, explica o eterno Titã.
A citada reflexão que o filme traz relacionada à realidade dura da tentativa do compositor popular alçar ao sucesso dentro de sua arte, algo que remete ao clássico “Rio, Zona Norte” (1957), de Nelson Pereira do Santos, também é abordada pelo diretor e por seu protagonista.
“Essa luta do compositor foi a luta do Adoniran. Apesar do filme não ser biográfico, é uma coisa que está presente na alma, nas criações dele. Essa luta do trabalhador para sobreviver, que ele tanto retrata na crônica social, é um pouco a luta dele”, crava Pedro Serrano. “Adoniran não morreu consagrado, rico, morando numa mansão. O cara estava até o fim da vida tendo que se provar, achando que não tinha reconhecimento suficiente. Ele ficou no ostracismo um tempo, depois retornou, depois caiu no esquecimento de novo, depois voltou. Então, tem tudo a ver com o próprio personagem. Acho que quando a gente vai falar também do reconhecimento de arte, do viver da arte, e como é um clássico do clichê achar que isso é vagabundagem perto, justamente, da oposição ao progresso que é essa coisa cartesiana que vem trazer a lógica do capitalismo”, aprofunda o cineasta.
Paulo Miklos destaca um momento chave do filme para exemplificar essa luta. “Fiquei muito feliz com aquela nossa cena do rádio. Porque aquilo é uma realidade. Inclusive que ele tenta colocar o samba dele, mostrar o samba dele, e a sugestão que vem é: ‘Olha, esse seu samba, melhor, não. Melhor se você cantar um samba de verdade’. E aí ele vai lá e canta um do Noel Rosa (risos). Mesmo assim não funciona. E o sujeito ainda o destrata. E ele volta para casa abatido porque não conseguiu”, descreve o ator. Então, tem essa realidade retratada no filme. Mas a gente sabe que Adoniran tem grandes feitos na carreira. Picos de sucesso como compositor, como ‘Trem das Onze’, por exemplo. Então, tem as duas coisas: a felicidade, o momento do sucesso, e o drama, também. Assim como nas canções. O filme tem essa coisa essa coisa bacana de emocionar, de trazer o drama das canções do Adoniran. De nos colocar na pele dos personagens, na pele do compositor, também”, conclui o cantor.
Neste papo com o Scream & Yell, Pedro Serrano e Paulo Miklos refletem sobre o processo de mergulhar na obra de Adoniran Barbosa. Confira!
Seu mergulho na obra do Adoniran Barbosa passa por três projetos. O curta-metragem de 2015, “Dá Licença de Contar”; o documentário “Adoniran, Meu Nome é João Rubinato”, de 2020, e, agora, o longa de ficção “Saudosa Maloca” (2024), que volta a abordar a trajetória de Adoniran de forma poética. Após o doc, você teve alguma dificuldade em seguir por esse caminho da liberdade lírica para contar a história?
Pedro – A minha primeira abordagem com o curta era essa abordagem poética sobre a sua obra. Eu me interessava em falar dele através da obra criada por ele e não através do recorte de uma cinebiografia. Como existiu o projeto do curta, que era uma viagem ao universo criativo dele, foi no documentário, sim, que eu tive a possibilidade de me entregar para fazer algo biográfico e documental nesse sentido de linguagem, mas, também, de falar de fatos da vida. Não necessariamente de forma cronológica, mas contando a história da vida dele. Porque a abordagem do outro projeto já era outra. Eles são complementares. O que a gente pode dizer é que uma obra complementa a outra. Quem sente falta de diálogo em uma pode assistir à outra. Quem sente falta de algo na outra pode ver a anterior. Nessa cronologia, o curta vem fazendo essa abordagem no universo criativo. Já o documentário, nesse espaço de tempo entre o curta e o longa, faz a biografia dele. O longa, agora, vem aprofundar essa abordagem poética nessa narrativa ficcional sobre os sambas, sobre os personagens que ele cantou e sobre as histórias que ele contou nesses sambas.
A química entre você, Paulo Miklos, o Gero Camilo e o Gustavo Machado é palpável nessa comédia física que remete a um humor clássico. Como foi achar essa sintonia que funcionou tão bem, Paulo? E Pedro, qual caminho você seguiu como diretor para alcançar essa sintonia entre os três protagonistas?
Paulo – O Pedro deixou a gente muito à vontade. Trabalhamos muito detalhadamente isso nas cenas e tudo. A gente criou e aprofundou essa cumplicidade que você está chamando a atenção. Além de ser de seu privilégio trabalhar com Gero, Gustavo e com o elenco, como a Leilah, o Sidney e todos os outros. Mas esse trio de vagabundos, essa turma de maloqueiros, o trio da maloca, tivemos a chance de desenvolver essa cumplicidade já nos ensaios do curta. O Pedro trabalhou com a gente a cada cena, a cada momento daqueles. E a gente foi buscar essas brincadeiras que remetem muito às comédias do cinema mudo. É um humor físico. É uma possibilidade de fazer essa coisa interessante da relação entre os personagens. Isso tudo a gente experimentou no curta. Muitos desses achados a gente trouxe para o longa, agora, e aprofundou essas situações. É uma felicidade poder trabalhar com gente tão talentosa. E eu, por muitos momentos, estava assistindo aos dois. Porque eles têm uma dinâmica tão incrível em cena. E o Adoniran dava mais bronca neles. Pareciam dois moleques, dois garotos. E o Adoniran era uma espécie de pai dando bronca e tal. Então, se criou essa relação bacana muito próxima da gente. Isso transparece no filme e é um dos pilares da história.
Pedro – Estou de acordo. Acho que além de um roteiro bem trabalhado, talvez a grande força do filme seja essa química. Claro que sou suspeito, mas eu também vejo essa química desse trio principal. Ela cativa o espectador e o faz ter empatia por eles. Sempre foi isso que eu quis. Independente de fatos acontecendo, primeiro a ideia era desenvolver no espectador uma empatia por esses personagens e por esse estilo de vida deles para, então, ele poder se sensibilizar em como as coisas que vão acontecer. Porque o que vai acontecer muitos já sabem, uma vez que está escrito nas músicas. Então, sempre achei que essa relação de empatia com os personagens era fundamental. E isso foi construído, como Paulo disse, em improvisos de ensaio, de técnicas de palhaçaria e de improviso, mesmo, que a gente fez desde o curta até a preparação para o longa. É que, sim, quando você fala que é impossível não sorrir, esse sentimento que você, como espectador, teve, era exatamente o que eu queria. Era querer que o público olhasse para esses personagens e tivesse esse carinho, esse sorriso de ver algo meio ingênuo que a gente tem ao ver, por exemplo, Chaplin, Buster Keaton e Mazzaropi. E foram essas referências que eu trouxe para os nossos ensaios, para a gente trabalhar em cima. Porque, inclusive, o filme tem homenagens a números desses grandes comediantes. Isso se justificava para mim porque, primeiro, trazia essa fantasia meio de fábula que eu queria dar. Esse tom meio fantástico para esse passado que não existe mais. E segundo porque a gente queria falar justamente dessa cidade que não existe. Então, se é para falar do passado, vamos também transportar isso para uma linguagem de um cinema do passado, o cinema mudo. E nisso acho o tom de atuação deles uma das coisas mais especiais do filme. Era um risco, porque poderia ficar totalmente forçado… um pouco um pastelão e de mau gosto. Ou pode agradar. E espero que tenha agradado. Acho que funcionou.
O filme, para além da comédia, traz a luta de um compositor, de um artista, para viver de sua arte. Uma luta para fugir do ostracismo. Como foi encontrar esse direcionamento do drama, de um tema mais sério, dentro da comédia?
Pedro – Acho que o filme faz rir e chorar. A gente vê as pessoas rindo muito nas sessões, mas, na maioria das vezes, saindo com lágrimas nos olhos ou com os olhos marejados. Porque essa luta do compositor foi a luta do Adoniran. Apesar do filme não ser biográfico, é uma coisa que está presente na alma, nas criações dele. Essa luta do trabalhador para sobreviver, que ele tanto retrata na crônica social, é um pouco a luta dele. Ele não morreu consagrado, rico, morando numa mansão. O cara estava até o fim da vida tendo que se provar, achando que não tinha reconhecimento suficiente. Ele ficou no ostracismo um tempo, depois retornou, depois caiu no esquecimento de novo, depois voltou. Então, tem tudo a ver com o próprio personagem. Acho que quando a gente vai falar também do reconhecimento de arte, do viver da arte, e como é um clássico (do clichê) achar que isso é vagabundagem perto, justamente, da oposição ao progresso que é essa coisa cartesiana que vem trazer a lógica do capitalismo. Coisas assim são opostas e fazem um sentido dentro da poética dele, também. Esses caras querem viver de música. É um conflito universal que todos entendem. Mas tá chegando uma força maior que talvez vá querer botar eles no batente mais tradicional. E a parte do drama acho que vem, também, do drama, dessa coisa do retrato social dele. Tinham críticas sociais profundas, apesar dele fazer isso de uma forma engraçada. Mas tem temas profundos e sérios. Então, o drama vinha para contar isso, também. Não era só brincadeira. É uma reflexão de temas que nos são caros. Não sei para você como músico…
Paulo – Sem dúvida. Fiquei muito feliz com aquela nossa cena do rádio. Porque aquilo é uma realidade. Inclusive que ele tenta colocar o samba dele, mostrar o samba dele, e a sugestão que vem é: “Olha, esse seu samba, melhor, não. Melhor se você cantar um samba de verdade. E aí ele vai lá e canta um do Noel Rosa (risos). Mesmo assim não funciona. E o sujeito ainda o destrata. E ele volta para casa abatido porque não conseguiu. Então, tem essa realidade retratada no filme. Mas a gente sabe que o Adoniran tem grandes feitos na carreira. Picos de sucesso como compositor, como “Trem das Onze”, por exemplo. Então, tem as duas coisas. Tem a felicidade, tem o momento do sucesso, e tem o drama, também. Assim como nas canções. O filme tem essa coisa bacana de emocionar, de trazer o drama das canções do Adoniran. De nos colocar na pele dos personagens e se emocionar. Então, tem a pele do compositor também.
Pedro – Essa passagem da rádio que o Paulo citou, por exemplo: sempre insisto em deixa claro que “Saudosa Maloca” não é um filme biográfico. Não é uma cinebiografia tradicional. A proposta é mergulhar no universo criativo das obras, mas quando era pertinente, cabia no roteiro, claro que tem pinceladas biográficas. Essa cena da rádio é uma delas. Ele, realmente, como calouro, a primeira vez que foi cantar, cantou “Filosofia”, do Noel Rosa. Isso porque ainda não tinha espaço para uma linguagem dele de samba. E ele realmente ouviu do cara que a voz dele era boa pra enterrar defunto. Então, quando você fala isso, o gráfico dele é assim (indicando altos e baixos com a mão). Pinga do sucesso, depois fracassa na batalha. É isso. É um batalhador que estava sempre se reinventando.
Paulo, uma pergunta um tanto introspectiva. Me recordo de ainda adolescente já ter uma certa relação com o teatro e, quando assisti ao “Acústico MTV” em 1997, já percebi a sua veia para a atuação. Corta para poucos anos depois, e você faz “O Invasor” (2001). Pouco mais de duas décadas depois, sua carreira como ator se consolida em papéis marcantes, como o de “Estômago” (2007), como o do recente “O Homem Cordial” (2019). Olhando em retrospecto, como você avalia esse peso da mudança de sua carreira que começou como músico e enveredou pela atuação?
Paulo – “O Invasor” veio como uma grande descoberta pra mim. Uma descoberta de realização artística. Foi uma coisa muito intensa. Uma alegria muito grande descobrir que eu era capaz de fazer isso. E a partir de então topei fazer tudo. Fui correr atrás de mais e mais. E aprender mais e mais com os colegas, com os diretores, enfim, com cada papel, cada experiência. Então, você tem razão. Aquele cara da banda, o roqueiro, já era histriônico, já era atirado, já era provocador. Eu já estava transbordando dali. Querendo provocar o público. Brincar e descobrir coisas como intérprete, também. Como cantor. Por exemplo, algo que os Titãs me deram. Que foi a chance de cantar uma música melódica e, ao mesmo tempo, cantar uma música em um urro, com a coisa do berro. Aquilo dos extremos. De tudo isso, eu gosto. É uma coisa que me realiza demais. Principalmente, variar. E nada como atuar para poder variar. Estava comentando que cada personagem desses é um mergulho numa situação completamente diferente, às vezes numa época diferente, em um tempo diferente. E eu me que me realizo demais atuando.
Pedro – E vários instrumentos, também.
Paulo – Sim, isso faz parte desse variar.
Pedro – Ouso fazer um adendo: nessa turnê de despedida (dos Titãs), acho que toda a sua experiência com cinema ficou perceptível. Com um mega show de mil câmeras e a tua relação com elas, você era o cara que, no palco, a gente percebe que estava atento o tempo inteiro a essa relação com a câmera, com o telão do show.
Paulo – Sim. Inclusive, fiquei atrás dos câmeras dando direcionamentos. “Pra cá! Aqui, ó! Pega aqui!” (risos) A gente jogou junto! Eles estavam no palco. Então, foi muito divertido. Me diverti demais.
Cogita enveredar pela direção um dia, Paulo?
Paulo – Não sei. Acho que não. Adoro atuar. Acho que é uma coisa na qual me encontrei. Mas fico acompanhando o Pedro, por exemplo, no trabalho dele. Fico admirado em ver o desenvolvimento. Em ver as escolhas que ele faz. A maneira como ele sugere as coisas. Como ele vai colocando e levando os atores para o lado que interessa para o filme. Gosto disso. Mas não sei se eu seria capaz de fazer o que ele faz (risos)
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.