texto de Homero Pivotto Jr.
fotos de Billy Valdez
É um tanto irônico pensar em um túmulo como descanso final no momento em que a banda de metal brasileira de maior expressividade, o Sepultura (alcunha que remete, justamente, a um jazigo) está prestes a desencarnar como corpo artístico. Após 40 anos bem vividos no circuito do som pesado mundial, o quarteto afirmou, quando comunicou oficialmente sobre a parada nas atividades, em dezembro de 2023, que quer aproveitar o bom momento para sair de cena. Para isso, estruturou a turnê “Celebrating Life Through Death”, que está rodando o país e passou por Porto Alegre na última quinta-feira (21). Em um auditório Araújo Vianna lotado (cerca de 3,2 mil pessoas e ingressos esgotados), o grupo batizado em homenagem à música ‘Dancing on Your Grave’ (do álbum “Another Perfect Day”), do Motörhead, mostrou que, apesar dos dias contados, ainda se mantém em ótima forma. No repertório, de aproximadamente duas horas, temas de diversas fases da longeva carreira, com predomínio de composições dos discos “Chaos A.D” (5), “Roots” (5) e “Quadra” (3).
Flávio Soares, vocalista e baixista da clássica banda thrash gaúcha Leviaethan, foi responsável por trazer o Sepultura pela primeira vez à capital gaúcha para um show no ginásio do Colégio Estadual Protásio Alves, em 1988, quando o grupo divulgava o álbum “Schizophrenia” (1987). Presente na despedida do conjunto mineiro no Rio Grande do Sul, o veterano analisou o momento: “Olho com os olhos de quem compreende como a máquina funciona. Hoje o Sepultura é uma empresa, muito distante do Sepultura daquela época, quando toparam almoçar na minha casa, comendo rango que a minha mãe fez… Mas é um evento histórico.”
Realmente é. Difícil não associar o Sepultura a muito da evolução pela qual passou o metal nacional nas últimas décadas. O pioneirismo da banda até hoje ecoa e precede um possível silêncio fúnebre com o fim iminente. Do início com influência death/black ao thrash ainda nos anos 1980, passando pelo flerte com o hardcore e ritmos menos óbvios com o passar dos anos, o Sepultura marcou seu nome na história. Não à toa, vendeu mais de 20 milhões de discos no mundo todo e tocou em lugares do globo que, antes, nenhum músico do Brasil havia chegado. Em meio às conquistas, também rolaram perrengues: a troca de integrantes — sendo a mais notória a saída dos fundadores Max (guitarra e voz) e Iggor Cavalera (bateria) —, a consequente complicação com gravadoras, a rejeição de parte dos fãs e as perdas pessoais são exemplos. Entre os revezes recentes está a passagem da esposa de longa data do guitarrista Andreas Kisser, que morreu de câncer em 2022, fazendo com que o músico reforçasse a ideia de encerrar a trajetória iniciada pelos irmãos Cavalera em 1984.
“A gente lida com a morte todos os dias, em finais de ciclo, relacionamentos, emprego, mudança de país. Se você vai num cinema assistir a um filme e não tem fim, ele não tem sentido. Enfim, não tenho nada definido ainda, tem várias possibilidades, mas eu quero pensar no agora, realmente celebrar esse momento”, declarou o músico ao jornalista Paulo Rocha, de GZH, sobre a parada da banda.
Em fevereiro, mais um baque: Eloy Casagrande, baterista desde 2011, pediu desligamento — especula-se, ainda sem comprovação, de que ele vá para o gigante Slipknot. Mas o Sepultura já passou por tantas provações, não seria essa que deixaria a banda sem chão. Então, Andreas, Paulo Jr (baixo) e Derrick Green (voz) convocaram o jovem e talentoso Greyson Nekrutman (que estava no Suicidal Tendencies), de 21 anos, para o kit percussivo. Com alguns ensaios, o Sepultura renasceu, mais vez, para sua derradeira gira. Afinal, “under a pale grey sky we shall arise”.
No horário marcado para o evento começar em Porto Alegre, às 21h, o telão exibiu um vídeo da banda no backstage instigando os fãs e alertando que o espetáculo começaria em 15 minutos. Passado esse tempo, o som mecânico com ‘Polícia’, em sua versão original dos Titãs, precedeu a apresentação. Uma espécie de compilação com trechos de sucessos do Sepultura, acompanhado de uma montagem com imagens do grupo no telão, serviu de intro e deu as boas-vindas ao quarteto, que foi se acomodando em suas posições. O palco sem exagero de atrativos, decorado com telões de led ao fundo e nas laterais, chamava atenção pela funcionalidade e realçava o protagonismo da música. Entre o público, ainda que o predomínio fosse de gente acima dos 30 anos, havia jovens e pais com seus filhos — comprovando o que disse Andreas em entrevista para O Ben para todo mal: “o metal é uma coisa bem família”.
Abrindo o repertório, uma trinca de “Chaos A.D” (1993): ‘Refuse/Resist’, ‘Territory’ e ‘Slave New World’. Já de cara, Derrick mostra-se um monstro vocal, aparentando não fazer esforço para colocar sua voz potente e carregada de drive em destaque. ‘Phanto Self’ representou o disco “Machine Messiah” (2017) e precedeu ‘Dusted’ e ‘Attitude’ — ambas do “Roots” (1996). ‘Kairos’, faixa-título do 12º trabalho de estúdio do quarteto, de 2011, veio em seguida. Andreas, então, apresentou o novo responsável pelas baquetas, que se mostrou integrado ao time. Greyson, mais econômico que seus antecessores nas peças de bateria, bate forte e com precisão. Porém, em alguns momentos, parecia perder um pouco da intensidade nas batidas. ‘Means to an End’ e ‘Guardians of Earth’ (do mais recente trampo “Quadra”, de 2020) apareceram intercaladas por ‘Cut-Throat’ (do “Roots”). Vale notar também o baixista Paulo Jr. Se no passado ele deixou para Andreas gravar os graves em discos como ‘Arise’, por supostamente não conseguir, agora mostra-se firme e confiante com seu instrumento de cinco cordas.
O show seguiu com ‘Mind War’ (de “Roorback”, 2003), ‘False’ (de “Dante XXI”, de 2006) e ‘Choke’ (de “Against”, 1998). Antes de ‘Escape to the Void’ (do “Schizophrenia”), o guitarrista recordou a estreia em palcos porto-alegrenses (aquela mencionada aqui nos primeiros parágrafos). Logo depois, tivemos a percussiva ‘Kaiowas’ — outra de “Chaos A.D” —, ‘Sepulnation’ (do “Nation”, 2001) e ‘Biotech is Godzilla’ (parceria com o ex-Dead Kennedy Jello Biafra, lançada no “Chaos A.D”). Fechando a primeira parte, ‘Agony of Defeat’ (do “Quadra”), ‘Troops of Doom’ (do “Morbid Visions”, 1986) e ‘Inner Self’ (do “Beneath the Remains”, de 1989). O bis teve início com ‘Arise’ (tema que batiza o álbum lançado em 1991, quando o grupo ganhou visibilidade ao tocar no Rock In Rio 2) e fechou com a dobradinha ‘Ratamahta’ e ‘Roots Bloody Roots’ (as duas de “Roots”).
Com um show bem pensado e uma performance entrosada, o Sepultura dá seu adeus consagrando-se como a banda que surgiu dos escombros do terceiro mundo e insurgiu-se como referência no som pesado internacional.
– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.
– Billy Valdez é pai da Kaáka, fotógrafo, videomaker, integrante do Coletivo Catarse e baixista da Diokane