texto de Renan Guerra
“João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili”, essa era a logística na “Quadrilha”, poema de Carlos Drummond de Andrade publicado em 1930 em que havia uma régua monogâmica. Hoje em dia podemos pensar em novos arranjos, com João e Teresa amando Raimundo e Raimundo amando os dois. Não que esses arranjos não existissem nos tempos de Drummond, só se tornaram cada vez mais comuns na atualidade e mais expostos na sociedade. E é nesse universo que habitam os personagens de “Quarto Aberto”, o primeiro romance de Tobias Carvalho. No livro, lançado em 2023 pela Companhia das Letras, os jovens Artur, Antônio, Caique e Eric se envolvem em uma ciranda que bagunça os seus relacionamentos e as suas perspectivas de amor e sexo.
Tobias Carvalho tem uma prosa direta, classificada por alguns até como seca, em que os diálogos e o fluxo de acontecimentos são mais importantes que as digressões ou descrições. Isso já ficava claro em sua excelente estreia em “As Coisas” (Record, 2018), que destaca contos curtos e velozes sobre encontros, romances e sexo – numa perspectiva de homens gays e jovens. Seu segundo livro, “Visão Noturna” (Todavia, 2021), apresentava contos mais longos, mas ainda bastante diretos sobre o universo dos sonhos – já contamos mais sobre ele aqui no site. “Quarto Aberto” retorna ao universo de sua estreia: o mundo dos romances e encontros gays, com um recorte bastante específico, que, deixamos claro, deve nortear essa leitura. Carvalho escreve aqui sobre gays de classe média em uma cidade grande – no caso, Porto Alegre – e isso delimita algumas questões.
Quando se fala em literatura LGBTQIA+, tende-se a colocar num mesmo balaio uma série de autores que, na verdade, não se conectam a não ser por serem parte de uma mesma sigla. Nossas experiências são múltiplas e isso se releva em narrativas distintas. No livro de Tobias acompanhamos a história de Artur, jovem que tem um trabalho comum numa livraria e nos finais de semana performa como drag queen em bares da cidade. Vivendo um dia a dia tranquilo com seu namorado Caíque, Artur tem sua relação bagunçada quando Eric, um menino com quem ele já teve envolvimento, retorna para essa equação, e ainda traz junto seu namorado Antônio. Nesse novo arranjo ficam latentes questões sobre sexo, desejo, posse e liberdade afetiva, mas também entram na conta as tensões de classe, performatividade de gênero e até tateia uma possível discussão de raça – três dos personagens centrais são brancos e um deles é negro.
Todas essas questões se amarram em uma narrativa que é fluida, pois “Quarto Aberto” não se propõe a ser nenhum tratado sobre esses temas, mas sim um recorte bem delimitado: acompanhamos uma fase da vida de Artur e todas as nuances, medos e vivências de um determinado período. Nisso temos uma narrativa que olha com bom humor para momentos amplos, seja uma experiência de sexo à três, uma viagem para uma fazenda de família, uma performance nova de uma drag queen ou mesmo um final de semana na rave. E nisso tudo, o que fica bastante claro é que Tobias Carvalho tem um olhar bastante apurado para esse tipo específico de homossexual sobre o qual ele se debruça e, talvez por isso mesmo, o livro dividiu opiniões: há quem amou e há quem colocou muitos poréns.
De todo modo, o fato é que a narrativa do livro nos faz mergulhar nesse universo dos quatro jovens e a leitura é fácil e direta. Trata-se de um tipo de romance que devoramos com velocidade e, nesse mergulho, é bem fácil que a gente passe por uma série de sentimentos: ora odiamos os personagens, depois achamos que eles são egoístas, para logo em seguida entendermos algumas de suas falhas; tudo isso se dá apenas porque Carvalho tem uma escrita precisa ao criar nuances e complexidades em seus personagens e, talvez por isso mesmo, torná-los humanos o bastante para que a gente os deteste em diferentes momentos. No final das contas, “Quarto Aberto” é um interessante retrato dos relacionamentos nesse momento em que vivemos conectados a apps, em que o sexo se encontra a um toque e que as relações ganharam novas camadas, por isso mesmo é uma leitura interessante, funcionando como uma espécie de polaroide desse momento de transição e de encontros e solidões.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.