textos por Marcelo Costa
“Vidas Passadas”, de Celine Song (2023)
Ano 2000, em Seul, na Coréia (mas poderia ser Cachoeiro do Itapemirim, Pindamonhangaba ou Manaus): dois colegas de escola que, nitidamente, nutrem um sentimento um pelo outro, tem a relação rompida pela mudança repentina de um deles, cuja família não apenas se muda para um outro país, mas outro continente. O tempo passa, a cabeça sonha e, século 21, a internet aproxima: 12 anos depois, aquele menino e aquela menina de 12 anos agora tem 24, e se reaproximam através da web, mantendo longas conversas, ele ainda em Seul, ela agora em Nova York. Como é natural em qualquer relacionamento, conversar é bom, mas se ver é absolutamente necessário para que o romance não perca o folego, mas, bem, nesse caso há um oceano – e não adianta muito ele ser pacífico – entre eles, e acontece o que sempre acontece nessas histórias: uma das partes cansa e o rompimento do contato é uma questão de tempo. Mas, no caso desse quase casal, eles ainda vão ter um terceiro encontro… 12 anos depois, com ela já casada e ele amargando o fim de um relacionamento. A diretora e roteirista Celine Song não está inventando a roda em “Past Lives”, mas, sim, contando uma história que aconteceu milhares e milhares e milhares de vezes na humanidade – e continuará a acontecer porque o medo é um componente intrínseco ao ser-humano. Isso, de maneira alguma, desmerece “Vidas Passadas”, pois retratar fatos corriqueiros e contá-los de maneira sincera tem o dom de criar laços emocionais com o público e Celine Young consegue esse intento (ainda que o começo em off seja um deslize imperdoável que não está à altura do restante da história). Ainda assim, “Vidas Passadas” não passa de uma singela ode ao “se”, essa conjunção subordinativa que enlouquece inseguros no mundo todo desde que o Tico e o Teco começaram a confabular e racionar coisas há cerca de dois milhões de anos, o que soa… raso após 106 minutos de projeção. Mas é um filme bonito (indicado ao Oscar de Melhor Filme e Melhor Roteiro “Óbvio” Original) com uma bela cena final, absolutamente óbvia, de cortar corações (não consumidos pelo cinismo).
Nota: 7
“Ficção Americana”, de Cord Jefferson (2023)
Thelonious “Monk” Ellison personifica uma pessoa que, espero, você conheça: nascido em uma família de classe alta, extremamente inteligente, mas com pouco trato social (algo desabonador numa sociedade que nunca está pronta para ouvir verdades), ele é um romancista elogiado no meio acadêmico, mas solenemente ignorado pelo público. Ele também é professor em uma universidade, mas seu temperamento provocativo lhe persegue: na brilhante cena inicial, nosso herói, que é negro, está dando uma aula sobre a história da literatura do sul dos Estados Unidos quando é confrontado por uma aluna, branca de cabelos azuis, sobre a palavra “nigger” escrita por ele na lousa. Ela se sente ofendida pela palavra, e a discussão (“É preciso entender o contexto da época, mas, Brittany, se eu superei isso, você também consegue”) acaba rendendo à Monk um afastamento e uma sugestão do conselho da faculdade: que ele participe de um seminário literário e passe um tempo com a família em sua cidade natal, Boston. Tanto seu mergulho no núcleo familiar quanto seu “passeio” na feira literária irão inspirar Monk a um desafio: escrever (sob pseudônimo) um livro lixo repleto de clichês literários que brancos amam ler em livros escritos por negros para zombar das editoras, dos brancos e dos próprios negros que sustentam essa narrativa com estereótipos. E, claro, o livro se tornará o grande best seller da temporada… Fuck! Estreia absolutamente impagável de Cord Jefferson na direção com roteiro adaptado por ele mesmo do livro “Erasure” (2001), de Percival Everett, “American Fiction” é… delicioso, e parte do charme do filme está na atuação perfeita de Jeffrey Wright, merecidamente indicado como Melhor Ator no Oscar (“Ficção Americana” ainda concorre a Melhor Filme, Roteiro Adaptado, Trilha Sonora e Ator Coadjuvante para Sterling K. Marrom, que interpreta o hilário irmão gay de Monk), e na maneira que a história satiriza a sociedade. Infelizmente, sairá de mãos abanando da premiação (assim como “O Maestro”, torcemos), mas esqueça a Academia e se delicie com um filme divertido e inteligente.
Nota 8
“Zona de Interesse”, de Jonathan Glazer (2023)
Virtual vencedor da categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar (e indicado ainda como Melhor Filme, Diretor, Roteiro Adaptado e Melhor Som – que deveria levar também), “The Zone of Interest” é um dos melhores filmes da temporada e o melhor filme já feito para exemplificar a Banalidade do Mal, teoria (atualíssima) defendida pela filosofa Hannah Arendt que demonstra como fantoches que se limitam a cumprir ordens podem colaborar em crimes e genocídios. No caso de “Zona de Interesse”, o roteiro adaptado pelo diretor Jonathan Glazer do livro de mesmo nome do autor britânico Martin Amis, publicado em 2014, foca em Rudolf Höss, comandante nazista responsável pelo campo de concentração de Auschwitz, local em que cerca de 1 milhão de pessoas foram cruelmente assassinadas em câmaras de gás e crematórios. O espectador, porém, não verá nada disso (lembra de “O Filho de Saul“?), mas ouvirá (gritos, gemidos, silêncios): “Zona de Interesse” foca no cotidiano sereno da família de Rudolf Höss vivendo tranquilamente em uma enorme casa com piscina, jardim e solário no muro ao lado do campo de concentração sob tutela rígida de Hedwig (interpretada com perfeição por Sandra Hüller, que também está excelente em outro filme indicado ao Oscar, “Anatomia de Uma Queda” – e, ainda, em “Toni Erdmann”, ótimo filme de 2016), esposa do comandante e mãe dos quatro filhos do casal. É na cruel dualidade de uma família “tocando a vida” ao lado de um local em que milhares de pessoas são queimadas vivas diariamente que reside o impacto narrativo de “Zona de Interesse”, com o som exterior em destaque causando um efeito devastador no público, um recurso que perde impacto numa segunda sessão, ainda que filmes como esse – ou “Katyn”, o sufocante retrato de Andrzej Wajda sobre o massacre nazista perpetrado na floresta bielorussa, e muitos outros sobre o tema – sejam feitos para ver apenas uma vez e ficar na memória por muito tempo, lembranças da crueldade humana. Não se trata de um filme perfeito (retrabalhadas em negativo, as “cenas das maçãs” soam deslocadas da montagem final), mas, ainda assim, um grande e necessário filme sobre a maldade humana.
Nota: 9
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
OSCAR 2024. LEIA TAMBÉM:
– “Ficção Americana” satiriza a sociedade e é um filme divertido e inteligente.
– Bonito e raso, “Vidas Passadas” é uma singela ode ao “se”.
– “Zona de Interesse”, um grande e necessário filme sobre a maldade humana.
– “Barbie” é uma viagem pop divertida sobre vida, morte, consumo e felicidade
– “Os Rejeitados” reúne Alexander Payne e Paul Giamatti 20 anos após “Sideways”
– “A Sala dos Professores”, de İlker Çatak, é um pequeno grande filme
– “Anatomia de Uma Queda” e o debate sobre a mutabilidade da “verdade”
– “Dias Perfeitos” é uma delicada obra-prima, mais uma de Wim Wenders.
– “Assassinos da Lua das Flores” são 3 horas e 26 minutos memoráveis de Scorsese
– “Maestro”, de Bradley Copper, é um completo show na forma, mas vazio de alma
– “Oppenheimer” constrói um documento definitivo sobre a estupidez da guerra
– “Pobres Criaturas” encanta em sua criatividade, inventividade e estranheza
– “Meu Amigo Robô” é uma animação delicada sobre amizade, solidão e amadurecimento
– “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso” surpreende, comove, empolga e intriga
– Em “Napoleão”, Ridley Scott foca mais em batalhas e menos em fidelidade histórica
– Pablo Larraín transforma Pinochet em um mostruoso vampiro em “O Conde”
– “Missão Impossível: Acerto de Contas Parte 1” confirma importância da sala de cinema