texto de Leonardo Tissot
Lá pela segunda metade dos anos 2000 era possível encontrar, escondido em algum dos corredores da Livraria Cultura, um pequeno tesouro indie: uma cópia de “Perfect Sound Forever”, livro sobre a história do Pavement assinado pelo jornalista Rob Jovanovic. Bastavam alguns trocados para que um pedaço e tanto da história do rock alternativo dos anos 1990 passasse a figurar na biblioteca da sua casa.
Corta para 2024. Esgotado, o livro lançado há 20 anos pela finada editora Justin, Charles and Co. hoje custa uma pequena fortuna — você encontra algumas cópias em sites como eBay e similares por valores que podem chegar aos 500 dólares. Mas fique tranquilo, caro fã. Vamos ajudá-lo a poupar seu suado dinheirinho.
Elencamos 25 curiosidades sobre o Pavement que estão no livro de Jovanovic, desde o gosto da banda por futebol, passando pela amizade com o falecido David Berman (Silver Jews), as desventuras do baterista Gary Young com Kurt Cobain e Courtney Love e muito mais.
01 — Futebol punk: O vocalista Stephen Malkmus e o guitarrista Scott Kannberg (também conhecido como Spiral Stairs) são amigos desde a infância — eles, inclusive, estudavam na mesma escola, em Stockton, Califórnia. Ambos amavam futebol. Mas, enquanto Kannberg era um dos craques do Stockton FC, Malkmus era mais familiarizado com o banco de reservas do que com a bola. Na verdade, o vocalista sonhava em se tornar um astro do basquete. “Nenhum dos atletas da escola jogavam futebol — eles gostavam de futebol americano, então jogar futebol era algo que os garotos punks faziam”, diz Malkmus no livro.
02 — Rock and roll all nite: Além da paixão por esportes, os amigos já compartilhavam o gosto pela música. Mas nada que lembrasse remotamente o som que fariam anos mais tarde. O primeiro disco de Kannberg foi “Destroyer”, do Kiss. Malkmus também era fã de Gene Simmons e companhia — o primeiro álbum que comprou foi “Hotter Than Hell”, aos 11 anos de idade. Já o primeiro show assistido pelo vocalista, dois anos antes, foi uma apresentação de Elton John no Oakland Coliseum, em São Francisco.
03 — Guitarras sem mão: O pai do baterista original da banda, Gary Young, foi vice-presidente da Steinberger Guitars. A empresa se tornou conhecida pelas guitarras sem o headstock (mão), que se tornaram populares nos anos 80 — alguém lembra da banda brasileira Yahoo?
04 — O Black Flag de Stockton: A primeira banda de Stephen Malkmus foi a Straw Dogs, no seu último ano de colégio (1983). O show de estreia do grupo foi a abertura de uma apresentação do T.S.O.L. Kannberg era fã da banda do amigo. “Eles eram a resposta de Stockton para o Black Flag, D.O.A. e Dead Kennedys. Steve escreveu várias músicas. As letras eram bem engraçadas”, relembra o guitarrista.
05 — Unidos pelo R.E.M.: O percussionista Bob Nastanovich e Malkmus se tornaram amigos na Universidade da Virgínia — eles se conheceram por meio de um colega de quarto do futuro vocalista do Pavement. A dupla se deu bem logo de cara por terem muitos gostos em comum. Acompanhados por David Berman (que viria a ser vocalista do Silver Jews), passavam os fins de semana viajando para Nova York, Washington e Athens para ver shows. Foi daí que surgiu a obsessão da dupla pelo R.E.M. — que, anos depois, resultaria na ode ao quarteto de Athens “Unseen Power of the Picket Fence” (lançada inicialmente na coletânea “No Alternative”).
06 — A special new band: Após se formar na faculdade e voltar a morar na casa dos pais, em Stockton, Malkmus voltou a cruzar o caminho de Kannberg. Sem terem muito o que fazer, os amigos começaram a tocar juntos até decidirem gravar um single. O estúdio mais barato da cidade era de propriedade de Gary Young (que se tornaria o primeiro baterista da banda). A primeira sessão de gravação do que viria a ser o Pavement ocorreu em 17 de janeiro de 1989.
07 — Tiros em Stockton: No mesmo dia em que Malkmus e Kannberg gravaram as cinco faixas que compunham o primeiro EP da banda, “Slay Tracks (1933-1969)”, houve um tiroteio em Stockton. “Sabe como isso acontece o tempo todo agora? Bem, esse foi o primeiro caso. A mídia do país inteiro veio para Stockton. Foi esquisito”, diz Kannberg.
08 — Ótimo nome: Com o EP gravado, Kannberg ficou responsável por distribuir uma parte das mil cópias produzidas para gravadoras e fanzines, os únicos potenciais interessados na barulheira criada em pouco mais de quatro horas no estúdio de Young. Enquanto isso, Malkmus passava alguns meses mochilando pela Europa. Para sua surpresa, enquanto visitava uma loja na Áustria, o vocalista ouviu “Slay Tracks” tocando e pediu para ver o disco. “É de uma banda chamada Pavement. É um ótimo nome, alguém tinha que usá-lo”, comentou o dono da loja.
09 — O fax da Matador: Animados com a repercussão de “Slay Tracks”, Malkmus e Kannberg passaram a levar a ideia de ter uma banda (um pouco) mais a sério. Após gravarem o primeiro álbum, “Slanted And Enchanted” (1992), de forma independente, era hora de encontrar uma gravadora interessada em lançar o trabalho de um jeito mais… profissional. “Estávamos pensando na Sub Pop, SST, um desses selos indies bacanas”, lembra Kannberg. A gravadora Drag City demonstrou interesse, mas Malkmus acabou optando por aceitar a proposta da Matador. Perguntado pelo staff da Drag City por qual razão escolheu o selo concorrente, o vocalista deu a resposta mais Stephen Malkmus possível: “eles estão em Nova York e têm uma máquina de fax”. “Eu estava morando em Nova York e queria um selo de lá. Era mais fácil ir até o escritório deles”, esclareceu o vocalista a Jovanovic anos depois.
10 — Perfeitos demais: “Slanted And Enchanted” criou um burburinho enorme no fervilhante mundinho do rock alternativo pré-”Nevermind”. Antes mesmo de ser lançado oficialmente, o disco foi resenhado pela revista “Spin”. “O Pavement é tão bom que parece até perfeito demais”, derramou-se Erik Davis na publicação americana. O disco só chegaria às lojas em março de 1992, nada menos que 15 meses após ser gravado.
11 — Kurt quem? A banda não caiu apenas nas graças da crítica, mas também de veteranos do rock alternativo, como o Sonic Youth. Inclusive, foram convidados para sair em turnê com o quarteto nova-iorquino. O baterista Gary Young, cerca de 15 anos mais velho que o restante dos membros do Pavement , não estava familiarizado com as figuras que habitavam aquele mundo. O negócio dele era rock clássico. “Estávamos em Los Angeles e um cara estava no camarim. Fiquei ali batendo papo com ele por meia hora. Daí chega o Kannberg e me pergunta: ‘sabe quem era aquele? Kurt Cobain’. E eu: ‘quem é esse?’. No mesmo dia, uma gorda horrorosa vem e me dá um beijo na boca, e eu também não fazia ideia de quem era — era a Courtney Love”, conta Young no livro.
12 — De costa a costa: Um dos fatos mais curiosos sobre o Pavement — e que a imprensa especializada mais gostava de salientar nas reportagens sobre o grupo — era que seus integrantes moravam em cidades diferentes. Enquanto Malkmus e o baixista Mark Ibold viviam em Nova York (o vocalista depois se mudou para Portland), Bob Nastanovich morava em Kentucky, na costa leste. Na costa oeste, viviam Kannberg (em Berkeley, Califórnia) e Gary Young (que nunca saiu de Stockton).
13 — Cada um no seu quadrado: Isso se tornou um desafio nos preparativos para a gravação do segundo álbum “Crooked Rain, Crooked Rain” (1994), especialmente com a saída do baterista Gary Young (detalhada no documentário “Louder Than You Think”, que integrou a programação do festival In-Edit Brasil em 2023) e a entrada de Steve West (que morava na Virgínia) para substituí-lo. “Poderíamos morar do outro lado da rua e não nos vermos nunca”, minimizava Malkmus.
14 — Gravações no escuro: “Crooked Rain, Crooked Rain” foi gravado em Nova York em agosto de 1993, mais precisamente no Random Falls Studio. “Fiquei um mês em Nova York, onde gravamos e mixamos o disco. Mark estava lá todos os dias e tocou baixo numa porção de músicas, mas não fizemos o disco como uma banda. O lugar era deprimente. Era um apartamento de um cara no 12º andar do prédio. Ele tinha uma cama detonada em um quarto e alguns equipamentos de gravação em outro, onde colocamos a bateria. E ainda tinha o banheiro e uma salinha onde enfiamos os amplificadores e microfones. Não tinha janelas. Era escuro o tempo todo”, relembra Kannberg. Bob Nastanovich não participou das gravações.
15 — O batera na banheira: A frase “the second drummer drowned, his telephone was found” (algo como “o segundo baterista se afogou, seu telefone foi encontrado”), de “Cut Your Hair”, é uma brincadeira com o percussionista Bob Nastanovich — que só ficou sabendo a respeito quando ouviu o disco pronto. “Bob não sabe nadar e, quando atende o telefone, ele está sempre na banheira. Teve uma noite em que ele trancou a porta e pegou no sono. Pensamos que ele pudesse ter se afogado”, explica Steve West.
16 — Jay Leno e a guitarra: Na primeira apresentação da banda em um talk show (o de Jay Leno), o apresentador vai cumprimentar os músicos após uma performance de “Cut Your Hair”. Acidentalmente, Leno rompe a correia de guitarra de Malkmus, fazendo o instrumento cair no chão. “Parece que eu acabei de comprar uma guitarra”, brincou o comediante.
17 — Ciúmes na Rolling Stone: O sucesso de “Crooked Rain” trouxe as primeiras tensões entre os integrantes da banda. Kannberg se negou a participar de uma entrevista e sessão de fotos para uma matéria da Rolling Stone, pois feria os “valores indie” do grupo. Para piorar a situação, o jornalista responsável pelo texto achava que o guitarrista havia tido um caso com a sua namorada — o que Kannberg garante que não aconteceu. “Ela contou pra ele que tinha ficado com um dos caras da banda, mas não fui eu”.
18 — Existe almoço (e discos) grátis: “Wowee Zowee” (1995) foi o primeiro disco que o Pavement gravou como banda, com todos os integrantes participando do processo. O álbum foi gravado em Memphis e Nova York entre o fim de 1994 e começo de 1995. Uma das curiosidades dessa época é que Malkmus e Kannberg estavam sendo cortejados por grandes gravadoras e iam a almoços e reuniões de negócios com executivos. Eles adoravam ganhar brindes, discos e refeições gratuitas, mas garantem que nunca tiveram a intenção de sair da Matador.
19 — Muita erva: Os primeiros singles de “Wowee Zowee” foram “Rattled by the Rush” e “Father to a Sister of Thought”, que não chegaram a lugar algum. “Eu estava fumando muita erva. Elas soavam como hits pra mim”, diverte-se Malkmus. Os executivos da Warner, major que tinha um acordo de distribuição com a Matador, ficaram doidos. Eles ainda tinham esperança de fazer do Pavement “o novo Nirvana” — a banda obviamente não estava interessada.
20 — Flop-palooza: Em 1995, a banda topou participar do Lollapalooza, a convite do Sonic Youth (headliners do festival naquele ano). Curiosamente, o Pavement já havia sido convidado um ano antes, mas a banda teria sido vetada por Billy Corgan, do headliner Smashing Pumpkins (ouçam “Range Life” e entenderão). A experiência, mais uma vez, dividiu os integrantes do grupo. Malkmus não gostava de tocar para multidões, mas o restante da banda se divertiu bastante. O fracasso de público do evento deve ter agradado o vocalista.
21 — R.E.M. de novo: Para “Brighten the Corners”, o Pavement recrutou Mitch Easter, lendário produtor dos primeiros discos do R.E.M. O processo de composição e gravação da banda se tornou menos autocentrado em Malkmus e contou com músicas de Kannberg (“Passat Dream” e “Date w/ Ikea”) e a participação de todos os integrantes. Gravado, em grande parte, ao vivo no estúdio, com overdubs acrescentados posteriormente, o disco tem uma vibe mais parecida com a de “Crooked Rain” — inclusive nas letras sacaneando outras bandas. Mas o disco também traz canções mais maduras, influências mais amplas (especialmente de The Byrds) e pelo menos dois “hinos” da geração X: “Stereo” e “Shady Lane”.
22 — “Muy amigo” de Damon Albarn: Nessa época, Damon Albarn (Blur, Gorillaz) se considerava um grande amigo de Malkmus. Mas a recíproca não era 100% verdadeira, segundo Jovanovic. Após finalizar as gravações de “Brighten the Corners”, Malkmus viajou a Londres para gravar um cover do X com Justine Frischmann (Elastica), então namorada do vocalista do Blur. Albarn começou a mencionar o Pavement em entrevistas. Mas nem isso amoleceu o coração de Malkmus. “Quando eu estava lá, curtia mais a namorada dele. Gosto mais de sair com ela. Ele falava ‘ei, somos amigos!’, e eu ficava, tipo, ‘é, nos divertimos juntos’. Mas ele era como um menininho e ela era a figura materna”, destilou. Malkmus fala um pouco mais sobre Justine e Damon (e a influência do Pavement sobre o Blur – escancarada no disco de 1997 dos ingleses) em um impagável quiz feito pela NME.
23 — OK Pavement: Em 1998, após o fim da turnê de “Brighten the Corners”, as coisas começaram a ficar tensas. Malkmus compôs músicas para o próximo disco da banda, mas não tinha paciência de ensiná-las aos companheiros — ele implicava especialmente com o baterista Steve West. O Pavement decidiu que precisava de ajuda externa para tentar concluir o álbum, e estreitou ainda mais suas relações com o rock britânico. A banda chamou ninguém menos que Nigel Godrich, produtor do disco mais importante do final do século XX, “OK Computer”, do Radiohead, para colaborar com o quinto álbum do grupo. Mas até mesmo Godrich teve dificuldades em fazer a banda trabalhar de maneira funcional no estúdio.
24 — Easy listening: “Terror Twilight” ficou pronto após passagens por Portland, Nova York e Londres, sete estúdios diferentes, Malkmus dando uma de Dave Grohl (ele regravou partes de bateria de Steve West), participação de Jonny Greenwood (Radiohead) tocando harmônica em “Platform Blues” e uma relação completamente fraturada entre os integrantes do Pavement. Quanto ao disco? Jovanovic resume assim: “Muitas das deliciosas explosões sonoras de ruído e feedback que caracterizavam as primeiras gravações já eram. Isso não quer dizer que a transformação seja totalmente negativa. Indiscutível, porém, é que grande parte da velha truculência simplesmente desapareceu, com uma vibe ‘easy listening’ ameaçando assumir o controle”.
25 — Fin: Após lidar com o comportamento errático de Malkmus durante a turnê de “Terror Twilight”, a banda resolveu chamá-lo para uma reunião do tipo “qual é a tua, cara?”. O vocalista admitiu que não queria mais continuar com a banda e que eles nunca mais gravariam juntos novamente, “mas que poderiam continuar tocando ao vivo”. A turnê terminou aos trancos e barrancos e a gravadora lançou um press release anunciando um “hiato” por tempo indeterminado. Oito meses se passaram até Malkmus ligar para Kannberg e meter essa: “você precisa alterar o site e dizer que não somos mais uma banda”. “O quê? Já contou pros outros?”, retrucou o guitarrista. “Eles devem estar sabendo”, resumiu Malkmus. Não estavam. Tanto que Kannberg nunca fez a alteração solicitada.
No final da década, a banda se reuniu pela primeira vez para shows — e, inclusive, veio ao Brasil, para apresentação única no Planeta Terra, em 2010 (“Mika fez o melhor espetáculo, Pavement o melhor show, mas o que o Planeta Terra 2010 crava como tendência é uma postura dançante e festeira que coloca Hot Chip como in e Smashing Pumpkins como out”, alguém cravou aqui mesmo nesse site). Quatorze anos depois, o quinteto retorna ao país, mais uma vez para show único no C6 Fest, no próximo dia 19 de maio.
A promessa de nunca mais gravarem juntos continua valendo, pelo menos por enquanto. Mas, ao que tudo indica, a banda voltou a se divertir no palco (ou os boletos pesaram no bolso), e é esse show que veremos por aqui — desde que Malkmus esteja a fim, claro.
– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo. Leia outros textos de Leonardo!.