texto de João Paulo Barreto
O diálogo mais impactante de “O Mal que nos Habita” (“Cuando acecha la maldad” / “When Evil Lurks”, 2023), filme escrito e dirigido pelo cineasta argentino Demián Rugna, é aquele no qual uma ex-golpista religiosa fala sobre o fato de ter mantido, junto ao marido já falecido, uma igreja na qual perpetrava esquemas ilícitos com atores fingindo possessões para manipular a fé alheia e tomar o dinheiro de pessoas que buscavam orientação. Na sua fala, a mulher explica que, um dia, surgiu alguém realmente possuído em seu templo, que vomitou partes dos corpos de seus familiares, devorados por ele na noite anterior. Era o começo de uma presumida epidemia, na qual as aparições demoníacas surgem em pessoas quase como uma doença, e cabe a alguns poucos indivíduos o conhecimento, oriundo de monges, de como retirar tais males dos corpos já condenados de modo a não transmitir aquilo àqueles em seu entorno.
“Deus estava morto, e o tempo das igrejas terminou rapidamente. E nós assumimos a responsabilidade pelos danos que causamos à fé”, explica a agora idosa enquanto segue seu destino para tentar corrigir o mal e salvar a localidade interiorana onde vive do que aquele futuro pós apocalíptico em uma Argentina rural representa para todo o planeta. E é neste crescente que o filme de Rugna se apresenta ao espectador, quando os fatos já trágicos se fazem realidade e cabe aos poucos naquela zona rural levar à frente a vida ainda de forma humana, distante dos já, presumivelmente, destruídos centros urbanos. E este é um dos pontos diferenciais do texto do cineasta. Aqui, o mal é citado de maneira quase sanitária, como algo contido não com rezas ou fé. Qualquer deus está morto, como afirmou a ex-pilantra. Então, cabe ao pragmatismo e ao puro planejamento quase científico o foco para se manter vivo diante do mal que parece querer suplantar a humanidade.
Com uma trama simples, o longa do país de Messi se apoia em pouco para conseguir uma sagaz narrativa. Na premissa de que qualquer possuído precisa ser eliminado de forma adequada para não alastrar o horror contido em si mesmo como um vírus, “O Mal que nos Habita” encontra seu principal direcionamento no brutal resultado oriundo da estupidez humana, que apresenta da maneira com a qual os habitantes daquela localidade tomam as decisões mais equivocadas possíveis à medida com que se deparam com o resultado da proliferação do mal como forma de contágio mutante. E em cenas horripilantes, o simbolismo da perda da fé confundindo-se com a perda da sanidade torna-se o foco central daquela catarse fílmica.
Aos poucos, o espectador vai sendo apresentado ao contexto do que se tornou o mundo naquele momento, com seus personagens ou em negação diante da gravidade de seu entorno ou buscando culpados quando a situação já se encontra em outro nível de gravidade. Assim, diante da ignorância e prepotência, se perde qualquer conceito de proteção contra algo que se mescla entre a brutalidade do real; o folclórico que se torna cantigas entoadas por mais velhos e o desconhecido subestimado que abre margem a erros fatais diante da arrogância de quem os comete. Nesta ambientação, Démian Rugna encontra o cenário perfeito para, após apresentada toda aquela estrutura, explorar as várias maneiras visuais como a monstruosidade daquela realidade se apresenta para nós.
E em um dos pontos que melhor reflete o conteúdo visual que, aqui, serve não como muleta narrativa para disfarçar uma trama capenga, mas, sim, como um complemento para sua sagacidade, o espetáculo da produção argentina encanta os admiradores do gênero do terror de maneira impressionante ao destacar os cruciais aspectos gráficos de sua trama. Os mesmos, representados pela necessidade de traduzir em imagens aquela perda de qualquer senso de sanidade, criam o choque imprescindível das consequências da deflagração daquele mal.
Assim, quando vemos uma mãe devorar o cérebro de seu rebento como se fosse uma tigela contendo algo saboroso de se lamber os dedos; ou quando uma gestante, ao se deparar com a possibilidade de possessão ainda em seu útero, age de modo assassino e suicida diante da escolha arbitrária de seu marido; ou quando a apresentação do mal em sua sequência ainda inicial traz um pútrido e obeso homem a definhar em sua cama, a percepção de um cuidado técnico impar em sua produção torna “O Mal que nos Habita” uma obra de ainda maior impacto.
Mas claro que sua opção em valorizar esse impacto gráfico vai além de um modo gratuito de se ilustrar aquele cinema. No intuito de fazer valer o teor psicológico de seu terror, Rugna utiliza, também, um modo já notório de destacar esse aspecto quando, em seu desfecho, apresenta as crianças possuídas naquele longínquo vilarejo literalmente esquecido por qualquer deus já morto. E são tais crianças que vão recepcionar aquele símbolo maligno a surgir. No climax de “O Mal que nos Habita”, é difícil não pensar em “A Aldeia dos Amaldiçoados”, clássico de 1960, dirigido por Wolf Rilla, ou em “Bad Seed” (no Brasil, “Tara Maldita”), outro clássico do terror dirigido em 1956 por Mervyn Leroy. Muito satisfatório sair da sala escura e ver um jovem clássico do terror nascendo.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual