texto de Leandro Luz
“A Câmara” (2023) é uma velha nova peça no quebra-cabeças da produção documental brasileira contemporânea. Parte desse conjunto se dedica incansavelmente a registrar os pormenores agudos da vida política dentro das quatro paredes dos imponentes monumentos arquitetônicos do Distrito Federal. Estão neste cerco filmes como “Alvorada” (Anna Muylaert e Lô Politi, 2021), “Democracia em Vertigem” (Petra Costa, 2019), “O Processo” (Maria Augusta Ramos, 2018), “Excelentíssimos” (Douglas Duarte, 2018), entre outros. Todos com diferenças bem delimitadas, tanto na escolha de seus temas centrais quanto de suas abordagens estéticas, porém com semelhanças o bastante para apontarmos alguns vícios que ora funcionam pelo acúmulo, ora cansam pela repetição.
Neste filme, dirigido pela dupla Cristiane Bernardes e Tiago de Aragão (diretor do curta-metragem “Entre Parentes”, de 2018, que já se valia de imagens da vida política brasileira), a câmera se volta para as deputadas habitantes do parlamento na reta final do ano de 2022. Para introduzir tal interesse, os primeiros planos são compostos por fotografias 3×4 dessas mulheres, plotadas lado a lado em uma parede branca, sem qualquer aparente distinção. Denota-se então uma das premissas éticas principais: as deputadas serão filmadas independentemente de partido político ou visão ideológica, sem protagonismos muito evidentes ou grandes teses previamente elaboradas.
Isso de fato acontece, mas não sem obstáculos. Toda vez que um artista se dedica a abordar um determinado tema tomando uma distância relativamente grande para evitar assumir discursos fáceis e por demais maniqueístas, nasce um conflito inerente. Ao cabo, observar é o suficiente? Sobretudo quando lidamos com a natureza do documentário, corre-se sempre um risco: cair na fogueira ou permanecer o tempo todo em banho maria. “A Câmara” sofre deste conflito, e é curioso notar como o filme se preocupa muito em tomar a devida distância, ainda que a sua câmera insista em chegar bem próximo das personagens, por vezes ignorando o foco, buscando uma intimidade entre cotovelos e paletós no meio de um campo de guerra. Distâncias que dizem respeito a campos distintos.
Conscientes de tudo (dos riscos, da produção contemporânea de documentários no Brasil, das distâncias que precisam constantemente calcular), os diretores se valem da montagem, assinada por Marisa Mendonça, para criar algum tipo de fricção. Tanto é que um dos momentos mais interessantes do filme mora num corte: a Deputada Federal Sâmia Bomfim escracha um deputado em virtude de uma discussão em torno do direito ao aborto; nesta cena, o homem impõe a sua opinião e ainda procura atingir a deputada levantando questões a respeito da materniadade dela; na cena seguinte, Sâmia entra em seu gabinete para reencontrar o filho, à espera do reencontro (típico da vida de uma trabalhadora no Brasil, que vira e mexe precisa carregar a prole para o terreno de seu ofício). Esta é a última sequência do filme e também o seu clímax. Os diretores sabem disso e conseguem explorar as performances muito bem, em todos os seus pormenores.
No entanto, não é apenas de instantes bem-sucedidos que “A Câmara” é composto. Há um embate performático, um cabo de guerra ideológico que, apesar da ciência dos realizadores, a sua interferência não parece suficiente. Na busca por respeitar as distâncias, como apontado acima, a ética, que também e sobretudo reside nas imagens, fragiliza-se, causando alguns questionamentos em torno do quanto de duração o filme concede a cada um dos grupos (direita, esquerda, os seus supostos extremos, o centrão, e por aí vai).
Ainda assim, um dos trunfos da obra é explorar a ideia de performance e de relaxamento. O documentário é composto basicamente por um mosaico de eventos, alguns bastante curiosos: uma deputada bolsonarista é entrevistada em um telejornal a respeito do projeto de combate às fake news; outra explana, também para uma TV aberta, a sua visão sobre preconceito, afirmando que não existe racismo estrutural no Brasil; discussões a respeito do pedido de veto a um projeto de lei que garantiria o direito à pensão para idosos vítimas de hanseníase, que sofreram segregação até meados dos anos 1980 no Brasil. Em cada uma dessas situações, as deputadas em questão estão cientes da presença da câmera e, portanto, suas performances são exaltadas.
O jogo inteligente executado pelos realizadores, contudo, está em valorizar o “pós-evento”, quando, teoricamente, não haveria mais o interesse do filme, mas a câmera segue rodando; daí saem os gestos mais relevantes, neste ínterim de relaxamento: no intervalo do telejornal, a deputada conta o que verdadeiramente está em jogo em relação às Fake News; quando acaba o programa que busca debater o racismo, duas deputadas se enfrentam em um bate-boca agressivo; ao final do debate na plenária sobre a hanseníase, a deputada (Maria do Rosário) olha para o lado e suspira de alívio por ter conquistado uma pequena grande batalha. Não à toa preserva-se um plano de um homem ajustando uma câmera em um tripé de mesa, que fica instantes sozinha no quadro fitando-nos, quase como nos convidando para também participarmos dessa encenação entre a performance e o relaxamento.
Apesar desse trunfo, a montagem às vezes exagera na duração dos planos. Neste âmbito, vale ressaltar a cena do culto evangélico comandado por uma deputada nas dependências da Câmara, às oito e meia da manhã que, apesar de intrigante, se estende em demasia. Qual a graça de mostrar por tanto tempo algo que tortura uma parcela grande dos espectadores se, no final das contas, o propósito da cena está muito mais no seu subtexto: denota-se, entre uma cena e outra, que o quórum do culto por vezes é muito maior do que encontramos nas próprias sessões da câmara. Revela-se o escárnio da política brasileira, sim, mas a que custo?
“A Câmara” também evidencia, assim como o faz outros documentários citados no início deste texto, momentos singelos. Benedita da Silva é a primeira deputada a ganhar maior destaque no filme, e suas aparições, em geral, cumprem a função do “respiro fofo” diante de tanto assunto polêmico (e remete, por exemplo, ao relato de Dilma Rousseff ensinando como fazer uma receita em outro documentário).
Logo no início do filme, Benedita conversa com a deputada Jandira Feghali sobre a blusa que está vestindo, e relembra que a comprou na China, quando ambas visitaram um país na ocasião de um encontro de mulheres na política (“muito bem preservada, tecido bom”, afirma ela). Mais tarde, pede para um assessor ajustar a gola da mesma blusa antes de gravar um vídeo de apoio para uma campanha e comenta como os brincos estão intocáveis nas orelhas, ainda que tenha perdido as tarrachas. Bom, são obviamente ações afetuosas para quem conhece e admira a história da primeira senadora negra do Brasil e uma das lideranças mais significativas do PT, não obstante perguntamo-nos, ao final, de que maneira isso colabora com o que o documentário pretende discutir. Aliás, esta é uma pergunta importante que fica (e incomoda): o que se quis contar com este grande mosaico de ideias?
– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.
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