texto de Renan Guerra
Na virada dos anos 1980 para os 1990 começamos a acompanhar o declínio dos cinemas de rua pelo Brasil: muitos fecharam as portas e uma grande maioria abrigou novos comércios tais como supermercados, estacionamentos e, principalmente, inúmeras igrejas evangélicas. Nas capitais, no entanto, muitos desses cinemas ganharam sobrevida com a exibição de filmes pornográficos. Cinemas que sempre exibiram filmes heterossexuais acabaram se tornando ponto de encontro de todas as sexualidades tidas como desviantes: gays, bissexuais, homens, mulheres trans e travestis, todos se tornam um único corpo em movimento por entre os corredores escuros dessas salas de exibição. Um desses frequentadores foi o cantor, compositor e escritor Luís Capucho, que passar horas de seus dias nas sessões do Cine Orly, no centro do Rio de Janeiro. A narrativa despudorada e poética desses dias ganha vida no livro “Cinema Orly”, de 1999.
Clássico cult da literatura marginal brasileira da virada do século, “Cinema Orly” ganhou uma nova edição luxuosa pela Editora Carambaia, dentro da coleção Sete Chaves, voltada para a literatura erótica e que tem curadoria de Eliane Robert Moraes, importante pesquisadora de literatura erótica brasileira e internacional, com trabalhos em torno de nomes como Hilda Hilst e Marquês de Sade. Lançado em capa dura e com belíssimo projeto gráfico de Laura Lotufo, o livro ainda acompanha posfácio assinado por Eliane Robert Moraes ao lado de Bruno Cosentino, compositor e doutor em literatura brasileira.
Na narrativa de “Cinema Orly” pouco sabemos do personagem principal, nem mesmo seu nome é informado, tudo que nos é contado é que ele tem 30 anos, trabalha em um ofício desconhecido e mora com a mãe. No Orly ele conhece, ao longo do romance, dois namorados, sem que os encontros anônimos deixem de acontecer. De todo modo, a espinha dorsal do livro está nas incursões desse narrador entre as fileiras de poltronas do cinema, descrevendo de forma direta e sem pudores os encontros, os corpos tesos e toda a fauna de bichas, travestis e discretos homens que por ali circulam.
De todo modo, sabemos que esse mistério que se esconde nas páginas de “Cinema Orly” tem a ver com o mundo real onde habita Luís Capucho. Nos anos 1990, Capucho trabalhava como professor ao mesmo tempo em que estava se lançando no universo musical – suas canções seriam posteriormente gravadas por pares geracionais dele como Cássia Eller, Daúde e Pedro Luís e a Parede. Porém, em 1996, Capucho entra em coma devido a uma neurotoxoplasmose e, nesse mesmo momento, se descobre HIV positivo. A doença deixaria sequelas físicas e motoras no artista, um dos principais pontos está na sua fala, que se torna mais lenta e difícil. Aos poucos, ainda sem conseguir voltar a tocar violão, ele começa o trabalho de escrita de “Cinema Orly”.
Nos anos 2000, Capucho conseguiria retomar sua carreira musical e lançaria uma série de discos, o mais recente é uma coletânea chamada “La Vida Es Libre – Canciones de Luís Capucho, Vol.1” (2023), com uma série de releituras feitas por nomes como Nehedar, Arthur Nogueira, Luiza Brina e Gustavo Galo. Uma parte dos escritos de Capucho inspirou a narrativa do excepcional filme poético-biográfico “Peixe Abissal”, de Rafael Saar, que conferimos por aqui na 15ª edição do festival In-Edit. Ainda que música e cinema ampliem o olhar sobre Luís Capucho são nas páginas de seus livros que conseguimos desvendar de forma mais profunda suas complexidades e as nuances. “Cinema Orly” é uma narrativa sedutora, que nos pega pela mão e nos guia no escuro desse cinema de forma quase sinestésica: sentimos os cheiros, entendemos a temperatura do ambiente, quase conseguimos ouvir a respiração de cada corpo ali presente. E tudo isso se dá pela escrita única de Luís Capucho, que consegue transitar entre descrições gráficas de genitais masculinos da mesma maneira com que concatena signos religiosos para entender aquela procissão de corpos em torno do sexo.
E isso tudo se dá pela liberdade ampla do texto – há um ou outro porém que deixa claro o seu tempo de escrita e questões que são bastante anos 1990 para o nosso tempo, mas nada que diminua a leitura. “Cinema Orly” segue ousado e forte, dialogando com grandes clássicos da literatura erótica e de títulos importantes nacionais, como os livros mais pornográficos de Hilda Hilst ou a ousadia de “A casa dos budas ditosos”, de João Ubaldo Ribeiro, também lançado em 1999. O livro de Capucho tem as nuances de ainda captar as experiências de uma comunidade marginalizada, funcionando como um retrato de todos esses corpos desviantes em um mundo pós-HIV/AIDS e que experiencia possibilidades únicas de sua sexualidade ali dentro daquele cinema – esse mesmo microcosmo, aliás, é captado por Jacques Nolot no ótimo filme “La chatte à deux têtes”, de 2002.
Com isso tudo podemos entender a literatura de Capucho como uma possibilidade distinta de olhar para o sexo e o desejo por outras lentes, compreendendo as perspectivas e o desejo do outro em todas as suas nuances. Por isso mesmo, “Cinema Orly” se torna uma leitura surpreendente e única e sua reedição deve ser celebrada!
Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.