texto de Davi Caro
Poucos artesãos do pop já demonstraram gostar tanto de um desafio como Robert Smith. O líder e fundador do The Cure, no alto de suas mais de quatro décadas de atividade, segue sendo um poço de contradições que, seja graças à sua extensa discografia ou à constante renovação de sua já massiva base de fãs, segue conquistando novos admiradores e se faz presente, ainda que por meio do espírito que guiou seus trabalhos desde o debut de sua banda (“Three Imaginary Boys”, 1979). Um homem de 60 anos que, ao mesmo tempo, não alterou sequer minimamente suas escolhas estéticas desde o início dos anos 1980; o cérebro por trás de uma instituição da música “alternativa” (em meio aos muitos outros rótulos que se queira aplicar) que lançou seu último trabalho de inéditas em 2008, e simultaneamente conseguiu e consegue não saturar sua presença na divisa entre o mainstream que os acolheu com estranheza e o underground que os reverencia, fazendo shows elogiadíssimos até os dias atuais; figura central de turnês milionárias e paladino pelo direito de seus fãs conseguirem ingressos a preços justos; uma figura lendária que, alçada ao status de ícone gótico, descarta o epíteto com veemência.
O The Cure se encontra atualmente em sua turnê “Shows of A Lost World”, que (em teoria) funciona como um prelúdio ao novo e já incansavelmente prometido novo álbum – similarmente chamado “Songs of A Lost World”. A esta altura, não é como se Robert e seus asseclas devessem nada a ninguém: uma banda responsável por algo como “Disintegration” (1989) ou “The Head on The Door” (1985) deveria estar acima de algo assim. Mas isso nem sempre foi uma realidade. Há quarenta anos, Smith se viu com as costas contra a parede, pressionado para dar continuidade a um legado que havia se convertido em uma espécie de trauma. Desafiado a fazer aquilo que jamais havia tentado – uma canção pop “boba” – o cantor, no alto de seus 20 e poucos anos, iniciou um período que, ao longo do lançamento de três singles muito destoantes de seu trabalho mais conhecido, desencadeou um processo que os levaria ao nível de perenidade dos quais pouquíssimos de seus co-geracionais podem se orgulhar. “Japanese Whispers”, lançado em dezembro de 1983 e compilando os três singles já citados, ainda é uma das maiores anomalias em um catálogo mais do que farto delas.
Basta olhar o que precedeu o então novo lançamento para começar a entender “Japanese Whispers” como um ponto muito fora da curva. Com “Pornography” (de 1982), o The Cure – então um trio, com Smith nos vocais, guitarras e teclados, Simon Gallup no baixo e Lol Tolhurst na bateria – concluía uma trilogia antecedida por “Seventeen Seconds” e “Faith” (de 1980 e 1981, respectivamente). A trinca, hoje aclamada como pilares do rock gótico, do dreampop e do shoegaze (entre muitos outros) documentava a guinada da banda em direção a uma sonoridade enevoada, macabra e repleta de desilusão, paranóia e desespero. Diante de platéias estupefatas frente à aparência chocante dos músicos, que passavam a adotar os cabelos e a maquiagem que os tornaria figuras de fascínio, a tensão presente no material finalmente transbordou para fora dos palcos e das furiosas execuções das novas músicas. Após um desentendimento no qual chegaram às vias de fato, Gallup deixou o grupo, essencialmente impondo um hiato à uma história que começava a tomar proporções maiores.
Frustrado e esgotado, Smith se distanciou temporariamente da banda que fundou e de sua função como frontman, mas não da música: ao mesmo tempo em que a saída de Simon forçava a paralisação das atividades, Robert receberia um convite de Steve Severin para integrar oficialmente a banda na qual este tocava baixo, o Siouxsie and the Banshees. Vendo a oportunidade de se integrar a uma formação na qual era apenas o guitarrista, o músico vestiu a camisa: gravou um disco ao vivo (“Nocturne”, 1983) e ainda participaria do maior êxito comercial da banda de Siouxsie Sioux (a cover para “Dear Prudence”, dos Beatles, presente em “Hyena”, de 1984). O nível de performance de seus novos companheiros, aliás, serviu como uma demonstração do potencial que uma banda como a sua própria poderia desenvolver, tanto em shows quanto em estúdios. Foi quando pressionado por Chris Parry (empresário do The Cure e diretor do selo Fiction, ao qual a banda pertencia) a escrever algo como nunca antes havia feito, um single pop típico, que Robert voltou seus pensamentos ao seu grupo original. Pelo menos por enquanto, o The Cure passaria a ser um duo, com o remanescente Tolhurst redesignado da bateria (onde era eficiente, embora limitado) para os teclados (com os quais tinha pouca familiaridade em comparação) enquanto Smith cuidaria do resto. Ainda dividido entre suas duas funções separadas, os dois parceiros retornaram ao estúdio ainda em 1982.
Lançado em novembro, “Let’s Go To Bed” marcou o primeiro lançamento da nova formação da banda (mesmo que contasse com o aporte do baterista Steve Goulding em conjunção com percussão eletrônica), e, logo de cara, o contraste era inevitável: o mesmo cidadão que havia aberto seu último disco com “It doesn’t matter if we all die”, agora soava inquieto, jovial e, talvez, até feliz. Com sintetizadores tomando a frente de um arranjo discretamente funky, e letras que faziam referências a um amor levemente obsessivo, o single ditava o reposicionamento da banda junto a contemporâneos como New Order e Soft Cell, chamando a atenção tanto do público já devoto do The Cure quanto de DJs interessados em sonorizar pistas de dança. Ninguém parecia se importar com a aparente desolação do lado B, que remetia ao passado recente com a soturna “Just One Kiss”.
Alguns devem ter pensado na adoção de elementos alinhados ao synthpop como uma coisa passageira, apenas um desvio breve na progressão criativa de um gênio em ebulição. Fácil, então, imaginar o choque que a primeira audição de “The Walk” deve ter causado: aqui, a aposta na sonoridade quase eletrônica foi dobrada, com tempos mais acelerados e escolhas de timbres ainda mais afinadas com o que se ouvia na época. Mais impressionista e menos alegre que a antecessora, a canção conseguiu superar qualquer ceticismo quando de seu lançamento, já em junho de 1983, e o estranhamento se dissipou – pelo menos o suficiente para que os fãs deixassem passar a pérola psicodélica que é “Lament”, presente no outro lado da prensagem (todos os b-sides dessa época seriam reunidos no box quádruplo “Join The Dots“, um tesouro).
Mas Robert Smith, claro, já era alguém que preferia confundir a explicar, e não deixa de ser apropriado que o último lançamento dessa nova fase fosse também o mais distinto: concebida com foco nos gatos e na forma como estes superam as mais cruéis adversidades que se impõem em seu caminho sem deixarem de ser fiéis a seus instintos, “The Lovecats” é uma jóia quase jazz que abusa de efeitos mil e tem arranjos enriquecidos por linhas de piano deslizantes e hipnóticas, assim como a mais descontraída das performances vocais de Smith até então. Além disso, a faixa também traz a primeira participação como instrumentista do co-produtor do disco, Phil Thornalley (que já havia assinado “Pornography”) que contribui com elásticas linhas de baixo acústico, bem como conta com o apoio do também estreante baterista Andy Anderson, com seus ritmos caminhantes e que remontam à destreza dos felinos que dão título à música. Os dois, inclusive, também aparecem no verso do vinil, com “Speak My Language” sendo um perfeito exemplo do nível de dinamismo recém-alcançado pelos músicos em conjunção.
Quando do lançamento de “Japanese Whispers”, o objetivo de preservar os tracklists originais mesmo compilados foi mantido à medida do possível, trazendo um balanço completo do quão longe o The Cure havia chego em relação à sua sonoridade mais conhecida até ali. A única exceção, então, acabou sendo a esquisita e doce “Mr. Pink Eyes”, egressa de “The Lovecats” e substituída por “The Upstairs Room”, das mesmas sessões. Não que a mudança tenha impactado a performance comercial do disco em qualquer aspecto: combinar os lançamentos se provou uma decisão acertada quando “Japanese Whispers” se tornou o primeiro disco do The Cure a entrar na parada de álbuns da Billboard, já na virada para 1984, e os vídeos produzidos para cada uma das canções principais, cheios de cores e cenários criativos e bem produzidos, ajudaram muito.
Visto hoje em dia, porém, o álbum surpreende por causa das duas contradições presentes no cerne de sua criação: primeiro, porque apesar de ser uma coleção de alguns dos singles mais marcantes e inimitáveis da banda (inclusive presentes regularmente em muitas de suas apresentações desde então), raramente figura como o que se poderia chamar de “porta de entrada” para novos fãs. Enquanto compilação, é normalmente preterido neste sentido em favor da posterior “Standing On A Beach: The Singles”, que, em 1986, revelou o grupo a uma nova maré de novos admiradores do outro lado do Atlântico – inclusive no Brasil, que visitariam um ano depois pela primeira vez.
Segundo, porque embora pensado desde o início como um esforço um tanto displicente de lidar com demandas comerciais, “Japanese Whispers” tornou-se o catalisador de uma nova era para o The Cure. Determinado a fazer um disco com maior uniformidade conceitual, Robert trouxe Lol Tolhurst consigo para o estúdio mais uma vez em 1984, desta vez contando também com o efetivado Andy Anderson. Thornalley foi mantido como membro mesmo preterido durante as gravações de “The Top”, e uma nova figura passou a frequentar as sessões: Pearl Thompson, um antigo colaborador, participa adicionando saxofone, e também seria incorporado ao grupo, agora um quinteto, como guitarrista e tecladista. Phil e Andy eventualmente sairiam logo em 1985, substituídos pelo retornante Simon Gallup (que permanece até hoje) e pelo estreante Boris Williams. Com uma nova e estável formação, Smith começaria a compor as canções para “The Head On The Door”, o disco que, em breve, escancararia as portas de grandes audiências para o The Cure a nível global.
É fácil imaginar uma realidade alternativa onde “Japanese Whispers” nunca existiu; difícil é pensar em como muito de uma das mais inacreditáveis discografias na história da música pop tampouco existiria, neste caso. A redentora apresentação recente no festival Primavera Sound Brasil, que deve permanecer na memória de todos os presentes por muitos e muitos anos, é prova de como o The Cure, e Robert Smith em particular, continuam sendo tão desafiadores quanto se mostraram em seu momento mais incerto, há quatro décadas. E que assim permaneça – afinal, o que não falta são evidências de que Robert Smith ainda tem muito a dizer, seja cantando a plenos pulmões no topo de um penhasco ou, porque não, simplesmente sussurrando.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.
Parabéns pelo excelente texto, Davi. Só discordo quando você fala isso aqui: ” A trinca, hoje aclamada como pilares do rock gótico, do dreampop e do shoegaze (entre muitos outros)”. Gótico, Darkwave e Pós-Punk, tudo bem, já Shoegaze e Dreampop, passa longe. O Disintegration até tem umas camadas de teclados e de guitarras que podem ter sido usadas como influência por algumas bandas Shoegaze/Dreampop.
Muito obrigado pelo comentário, Luciano! Concordo muito com o que você disse. Falando sobre a tal trinca de álbuns, quis dizer que são influências, além de musicais, também estéticas, sobretudo nas capas – como a fotografia borrada de “Isn’t Anything”, do My Bloody Valentine, por exemplo. Mas musicalmente, o Disintegration é, de longe, o mais influente tanto para o dreampop quanto para o shoegaze, e isso não ficou tão claro no texto. Valeu mesmo! 🙂