texto por Marcelo Costa
fotos por Fernando Yokota
Em um fim de semana de calor elevado, o Autódromo de Interlagos recebeu a segunda edição brasileira do festival catalão Primavera Sound reunindo um excelente público e proporcionando um número considerável de shows inesquecíveis – para vários públicos (uma das características do festival espanhol). Contrariando a previsão de alguns – e por que não, olho gordo também -, o Primavera Sound São Paulo superou as expectativas focando naquilo que mais interessa para grande parte de seu público: a música. Ao contrário de diversos festivais com roda gigante, tirolesa e, principalmente, ações de marketing que poluem o olhar do público antes, DURANTE e depois dos shows, o Primavera SP, que também teve diversas ações de marcas estratégicas parceiras, deu espaço de sobra para o olhar descansar e focar no mais importante: os shows.
O formato do festival, que na primeira edição tomou o espaço do Complexo Anhembi, ficou bem interessante no autódromo, ainda que o sol tenha incomodado demais, algo que os festivais como um todo vão precisar repensar para um futuro de ondas de calor elevadas, pois colocar artistas e fãs debaixo de mais de 30 graus é cruel e bastante arriscado tanto quanto tira parte do tesão de se ver um show: o sol na moleira incomoda e a fruição se esvai. Houve farta distribuição de água tanto quanto distribuição de protetor solar, mas não havia praticamente nenhuma área de sombra nos palcos principais, e para assistir aos shows tinha que ficar no sol. Talvez fosse o caso de pensar em tendas – abertas nas extremidades como no Coachella – para mil ou duas mil pessoas assistirem a shows menores, como o dos artistas nacionais que abrem tanto quanto de nomes indies internacionais pequenos do line-up. E em reposicionar os palcos Corona e São Paulo, que no choque de horários de artistas tinham o som vazado de um lado para o outro, o que atrapalhou tanto o público quanto músicos (alguns, visivelmente incomodados) e foi um dos poucos problemas estruturais do fim de semana.
No quesito shows, a sensação que fica é a de que o Primavera São Paulo está construindo a sua própria história. Quando você olha um artista no cartaz do Primavera Barcelona, você sabe porque ele está ali. A curadoria catalã conseguiu algo raro de que é ter um público apaixonado pelo festival, e o line-up, muitas vezes sem megaestrelas, reflete a confiança de que esse público depositou no evento. E, claro, isso foi algo que eles próprios foram descobrindo ano a ano, saindo de 8 mil pessoas pra 100 mil (uma das pautas dessa conversa). O Primavera SP não tem como ser o Primavera Barcelona (ou Porto), porque o nosso público é diferente (e por isso perdemos Blur – e Pulp neste ano). O Primavera SP tem que ser… ele mesmo, com características próprias atendendo ao seu nicho de público, e crescendo com ele. E isso é algo que se conquista com o tempo. É preciso pensar se esse é o real tamanho do festival, porque se for sempre será necessário umas farofices como Killers pra conta fechar. E tudo bem… será um Primavera SP com a cara do Brasil. E, crescendo aos poucos, pode se sonhar mais alto. Vamos aos shows?
ESPECIAL: O TOP 10 SHOWS DO PRIMAVERA SOUND POR 10 CONVIDADOS
SÁBADO – 02/12/2023
Larissa Conforto abriu o festival no sábado com seu projeto Àiyé e sol torando. O show – de um dos discos nacionais do ano – teve vários problemas, e acabou sendo encurtado. “A passagem de som atrasou e a gente foi penalizado”, disse Larissa, que ainda conseguiu mostrar canções como “Onda” e “Oxumaré (Que Meus Venenos Sejam Mel)” e impressionar com o cenário caprichado. No palco ao lado, Getúlio Abelha, cada vez melhor, entrou carregado por seus dançarinos numa atuação performática genial. Depois, brincou com o público paulistano: “Vocês nesse sol tão sentindo como é ser do Piauí, né. Lá é assim… de noite”. Canções como “Perigo”, “Tempestade”, “Tapuru” e “Ranço”, que poderia ser do Rei Reginaldo Rossi, agitaram o público presente. “Eu tava esperando três pessoas… estou feliz de ver vocês aqui”, disse antes de prometer: “Gente, um show de forró no Primavera Sound…. uou. Eu quero dar um beijo no cuzinho de todos vocês. Vou estar por aí. É só me dar um tchauzinho”. Showzão.
O OFF! – liderado por Keith Morris, que gravou o melhor disco do Black Flag, montou o Circle Jerks logo depois e mais recentemente vem destruindo a tudo e todos com essa banda – veio na sequência distribuindo riffs acelerados para um público que buscava se esconder na beiradinha de sombra que o palco fazia na pista. É aquele velho caso de banda bacana demais tocando num horário complicado para cerca de 400 pessoas suando muito e preocupada com a insolação. No caso deles, ok, os caras despencaram de Los Angeles e fizeram diversos shows na América do Sul, e também extras no Brasil, em Curitiba e POa, mas é uma banda pra se ver num muquifo, é ali que ela faz sentido. Num festival ela soa… honesta (tai: eles caberiam bem numa tenda coberta, e até o pogo seria mais efetivo – Keith Morris não merece o pogo tosco que ele viu do palco no autódromo).
Se no Cine Joia, em show dentro do Primavera na Cidade, na quarta-feira anterior, a banda entrou no palco dançando ao som de “Anunciação”, de Alceu Valença, em Interlagos, os britânicos mandaram “Tchutchuca”, do Bonde do Tigrão, antes da porradaria, que foi mais econômica do que no evento fechado (fizeram praticamente metade do show no autódromo), ainda que caótica no mesmo nível. O trio “953”, “Speedway” e “Sugar/Tzu” foi uma belíssima introdução para quem não os conhecia (aqui, o público já estava um pouco maior), e o sol ardido na cara pode ter diminuído a efusividade da banda, mas eles permaneceram ali, indo do inferno à Broadway, como fazem tão bem, e até inserindo “Clube da Esquina 2” na jam final. Se tiver a chance de vê-los, principalmente num lugar fechado, não deixe a oportunidade escapar.
A banda canadense Metric, liderada pela esguia Emily Haines e que acabou integrando o line-up de última hora, substituindo a banda MUNA, veio na sequência com seu indie rock aeróbico e redondinho que até já causou com Scott Pilgrim e Ramona Flowers (suspiros) numa versão com Brie Larson (ops, Envy Adams), e surpreendeu com um show vibrante, dançante e repleto de hits, de “Gold Guns Girls”, “Help, I’m Alive” e “Gimme Sympathy”, três singles do álbum “Fantasies” (2009) até a própria “Black Sheep” (música da trilha de “Scott Pilgrim contra o Mundo”), um dos momentos mais festejados do show. Haines chegou a questionar se o público “preferia Beatles ou Stones?” antes de “Gimme Sympathy”, mas o sol não estava permitindo muitas interações. Ainda assim, os canadenses saíram aplaudidos do Palco Barcelona – no entanto, o show fechado, no Cine Joia, um dia antes, foi mais elogiado.
Da América do Norte para a Europa com mais uma apresentação contundente dos suecos do The Hives. Verdade seja dita: se em estúdio, a banda do sensacional vocalista Howlin’ Pelle Almqvist segue nostálgica, repetitiva e até mesmo “cringe”, ao vivo a coisa toda ganha muito mais força pelo entrosamento perfeito do quinteto – quatro deles estão juntos desde 1993, só o baixista The Johan and Only entrou mais tarde, em 2013 – e postura irrequieta do frontman, um dos melhores do rock nos últimos… 30 anos? Hits como “Main Offender”, “Tick Tick Boom” (com Pelle entrando dentro de um freezer no fosso dos fotógrafos para tentar aplacar o calor) e, principalmente, o hino “Hate to Say I Told You So” fizeram o povo suar mais ainda do que já estava suando num show “100% rock e 0% samba”, uma deliciosa provocação para incomodar nacionalistas. Um dos showzaços do fim de semana.
Até então, estava sossegado alternar o Palco Barcelona e o Palco Corona, bastante próximos, ainda que a curiosidade em ver Dorian Electra e Marina Herlop tenha batido ponto, mas numa cobertura é preciso fazer escolhas, pois é impossível abraçar tudo (principalmente debaixo de um sol torando). Dentro desse imbróglio tradicional de festival, a questão das 17h do sábado era: assistir Slowdive 17h20 no Palco São Paulo ou conferir mais uma volta do CSS às 17h40 no Palco Barcelona, ambos levemente distantes um do outro. A primeira ideia foi ver a turma de Rachel Goswell (impossibilitada de cantar, mas presente e divando) e Neil Halstead com amigos, mas ao se perder deles e ter na conta o show de dois dias antes no Primavera na Cidade, pesou o fato de assistir a um outro artista do line – mas deu tempo de ver “shanty”, “Star Roving” e “Slowdive”, e perceber que seria tão bonito quanto foi no Cine Joia – e disseram que foi mais!
E então veio o CSS, uma banda que não está em atividade, mas que vira e mexe é chamada para line-ups de festivais, ocupando um espaço importante de bandas que estão ai diariamente no corre. É lógico que essa questão poderia ficar em segundo plano se o show tivesse sido bom (como, aliás, foi em 2019, no Popload Festival), mas a apresentação careceu daquilo que marcou, principalmente, a fase inicial da banda: irreverência e um certo “foda-se” ao vivo que tornava tudo meio caótico, e muito divertido – algo que até já havia sido pontuado no Scream & Yell (12 anos atrás). O som que saia pelas caixas estava quadrado, sem graça e sem emoção, tudo que a banda não era no início. Lovefoxxx continua brilhando e emocionando a todos (o discurso foi lindo), mas ela sozinha não consegue segurar um show todo. Quem sabe num próximo festival…
Se o show do CSS é sempre uma incógnita (numa entrevista dos primórdios da banda, com o ex-integrante Adriano Cintra, este repórter questionou o que acontecia ao vivo com o CSS, pois ele tinha visto “três shows muito bons e quatro muito ruins”), Marisa Monte ao vivo é garantia de sorrisos no rosto e, vez em quando, lágrimas de emoção. Acompanhada de uma superbanda (que une nomes como o baixista Dadi, o guitarrista Davi Moraes, o baterista Pupillo e o multi-instrumentista Pretinho da Serrinha), Marisa condensou o repertório da incrível turnê “Portas” para o Primavera, e vale dizer que soou muito (mas muito) melhor ao vivo em um lugar amplo e aberto do que no Espaço Unimed, por exemplo. Sucessos como “Ainda Lembro”, “Eu sei (Na mira)” e “Não Vá Embora” foram cantados em uníssono, mas o que tornou esse show único foi a surpresa final, com Roberto de Carvalho sendo chamado ao palco para tocar “Doce Vampiro” e “Mania de Você” em homenagem à Rainha Rita Lee. Não bastou suar quase toda água do corpo, também derrubamos lágrimas…
A finaleira da noite de sábado prometia fazer o público inteiro dançar, e a promessa não foi em vão. Primeiro vieram os Pet Shop Boys com seu caminhão de hits irresistíveis para testar a ginga de até aqueles que pensam que não vão dançar no show, mas que em algum momento irão se render e mexer os quadris cantando “Domino Dancing”, “You Were Always on My Mind” (baladaça de Wayne Carson, Johnny Christopher e Mark James, mais famosa com seu terceiro intérprete, Elvis Presley) ou mesmo o medley que une um hit do U2 dos anos 80 com um hit sessentista de Frank Valli: “Where the Streets Have No Name (I Can’t Take My Eyes Off You)”. Os senhores Neil Tennant (69) e Chris Lowe (64 anos) não são lá de interagirem com o público, e quem viu as apresentações anteriores do duo no Brasil diz que pouca coisa mudou no show, e até as piadas continuam as mesmas, mas o fato é que quem tem hits como “It’s a Sin” e “West End Girls” tem um bom show na manga pra vida inteira.
Fechando a noite, enquanto não consegue um cassino em Vegas para fazer residência, o mais fanfarrão de todos os artistas do indie rock anos 2000, Brandon Flowers e seu Killers já entraram entregando de bandeja o hit mais poderoso do grupo, “Mr. Brightside”, para fãs incrédulos que se beliscavam não acreditando. “Smile Like You Mean It”, “Human” (em versão eletrônica), “Somebody Told Me” e “For Reasons Unknown”, dos dois históricos primeiros discos surgiram alternadas com canções bocejantes mais novas, como o single “boy” e faixas esquecíveis dos álbuns “Imploding the Mirage” (2020) e “Pressure Machine” (2021), fazendo do show uma gangorra de emoções. Quando o Killers perceber, tal qual o Interpol, que a única coisa que vale a pena na sua discografia são os dois primeiros discos, e decidir sair em turnê tocando os dois na integra, teremos um show impecável para se acabar de cantar e pular. No Primavera Sound, no geral, foi divertidinho.
DOMINGO – 03/12/2023
O segundo dia do Primavera Sound São Paulo 2023 começou com sol aparentemente mais forte do que no sábado, mas um diferencial marcante: estava ventando, o que diminuía bastante a sensação térmica do lugar. Ainda assim, foi difícil encarar os shows debaixo do sol torando a moleira novamente, e a farta distribuição de água e protetor solar ajudou a diminuir um pouco todo o drama. Escalados para abrir também o Coala 2023 com sol na cara, Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo mostrou o aprendizado no festival anterior e não perdeu tempo com conversinha: “Se quiser ouvir a minha voz, minha liga”, disse Sophia, que encarou os 30 minutos dedicados à banda a partir de 12h30 com o repertório mais acelerado de seus dois discos, uma decisão acertada que deixou o pequeno público feliz cantando “Quem Vai Apagar a Luz”, “Fora do Meu Quarto”, “Delícia/Luxúria” e “Segredo”, entre outras.
Também da nossa safra roqueira nacional, e defendendo com muita honra seu rock de favela, Mateus Fazeno Rock entrou em cena com dançarinos, DJs e bases pré-gravadas para mandar o seu recado: “Jesus não voltará”. A canção, faixa título de seu poderoso segundo álbum, um dos destaques do ano, conta com Jup do Bairro, que estava assistindo ao show na frente do palco. Vez ou outra, o músico de Fortaleza pegava uma guitarra para reforçar o peso de suas canções, mas o que é mais forte em seu repertório são as letras, que não tem medo de expor várias das feridas do povo pobre e preto brasileiro. Tanto canções novas como “Pose de Malandro / Me Querem Morto” quanto “Legal, Legal” e “Melo do Djavan” (do já clássico disco de estreia “Rolê das Ruínas”, de 2020) ecoaram forte no Primavera. Foram apenas 30 minutos, mas foi bastante intenso a ponto de ser defendido por vários jornalistas como um dos destaques do fim semana.
Uma das bandas atuais favoritas de Robert Smith (que na passagem anterior pelo Brasil, em 2013, escolheu duas bandas locais para se abrirem os shows do Cure: a gaúcha Lautmusik e a paulista Herod Layne), o Just Mustard chamou atenção tanto pela música quanto pelo charme da vocalista Katie Ball, descrita como uma mistura de Hope Sandoval, a delicada vocalista do Mazzy Star, com Wandinha, e o fato do primeiro disco dos irlandeses se chamar “Wednesday” (2018) só pode ser uma mera coincidência. O fato é que Katie e sua turma angariaram fãs debaixo do sol em São Paulo, como o parceiro de cobertura Fernando Yokota: “Imagina uma mistura do God Is An Astrounaut com Cranberries e True Widow. Virei fã”, escreveu o fotógrafo, um shoegazer viciado em feedback – o Just Mustard soava bem shoegaze no início, mas vem abrindo portas barulhentas e, da sombra onde eu estava, pareceu bastante promissor (mais um show que poderia ter sido bombástico numa tenda).
Ainda na sombra, e esperando Soccer Mommy no rápido intervalo de 10 minutos entre um show e outro, quase fui enfeitiçado pela Flautista de Hamelin, ops, Filipe Catto, que lá no Palco São Paulo cantava apaixonadamente as músicas do repertório de Gal Costa. Foi possível ouvir “Negro Amor”, uma das favoritas, e se arrepiar, enquanto Sophia Regina Allison ajeitava sua guitarra para um dos shows indies mais legais do dia: Soccer Mommy. Bastante introspectiva, alguns diriam tímida, Sophia focou no som e distribui belas canções guitarreiras para o povo que se amontoava na sombra que começava a se formar na frente do Palco Barcelona, mas a falta de interação deixou alguns fãs frustrados. “Circle The Drain”, “Shotgun”, “Cool”, “Your Dog” e “Don’t Ask Me” podem ter aumentado o fã clube da artista suíça no Brasil de meia dúzia para uma dúzia inteira, mas, ainda assim, ela continua a ser um segredo indie bem guardado.
O choque de horários no show anterior também marcou o próximo horário, com a loirinha Carly Rae Jepsen – após uma festa quase intima no Rio – angariando um enorme número de fãs no Palco Corona enquanto o Él Mató a Un Policia Motorizado arrebatava outro tanto no Palco São Paulo. Para o editor de um site presente em uma aliança de veículos independentes de cultura ibero-americanos, a escolha parecia fácil, certo. Isso sem contar que “Super Terror”, o disco mais recente do quinteto de La Plata, está entre os melhores lançamentos do ano. E a plateia de hermanos e brasileiros que acompanhou o vocalista e baixista Santiago Motorizado sofrer com o sol direto no rosto mostrou que já tem as músicas novas na ponta da língua cantando apaixonadamente a strokiana “Un Segundo Plan” mais “Tantas Cosas Buenas” e, principalmente, o single “Medalla de Oro” (enquanto ecos do show de Carly cortavam o ambiente). Momentos bonitos apareceram, como sempre, nas canções amadas pelos fãs, como “Más o Menos Bien”, “Chica Rutera” e “Chica de Oro”, encerrando mais um show excelente dos argentinos.
O show de Marina Sena, entrincheirado numa hora do dia que não batia diretamente com nenhum outro artista, soou um luxo descabido, visto que é uma artista brasileira que faz show em festivais aqui e acolá a toda hora (os shows solo, assim como o de uma outra partner de redes sociais, andam difíceis de lotar) enquanto artistas estrangeiros que pouco tocam no Brasil, como Carly Rae Jepsen e Roisin Murphy, tiveram a plateia dividida com outras atrações. Esse fato aliado ao cansaço e a fome tornou esse momento da tarde perfeito para uma pausa para descanso e alimentação, quase uma revolta silenciosa contra uma artista que mais foca no visual do que na música (seu segundo disco e suas caras e bocas no show deixam isso claro) em um festival que valoriza a… música. Deu para assistir a um ou outro momento via telão ao longe, mas a preocupação maior era conquistar um bom lugar para assistir ao show de Beck enquanto aguardamos que Marina Sena, que tem uma carreira promissora pela frente, resolva o problema que tem com seu pior inimigo: ela mesma.
Com show cancelado no Rio devido a uma rápida visita ao hospital (e, também, à saúde financeira de seu espetáculo na capital carioca, que aparentemente não havia angariado público), Beck encontrou um público desconfiado em São Paulo, e não perdeu tempo: entre as três primeiras faixas vieram dois de seus maiores hits, “Devils Haircut” e “The New Pollution”, em versões portentosas – seu terceiro hit inconteste, “Loser”, viria no trecho final, de forma arrebatadora. Com uma banda afiadíssima, Beck alternou momentos dançantes (“Qué Onda Guero”) com faixas lentas dilacerantes (“Lost Cause”, de seu álbum de homem traído), fez cover de Gorillaz (“The Valley of the Pagans”) e declarou o seu amor pela música brasileira: “Me desculpem por não falar em português, mas eu amo a música brasileira desde quando eu tinha quatro anos e ouvi Tom Jobim. Amo a música que vem daqui”, confidenciou. Ao final do show, avisado que o tempo havia acabado, pegou uma gaita e, sozinho no palco, tocou a pepita de ouro “One Foot in the Grave”, de seu segundo disco, o folk “Stereopathetic Soulmanure” (1994), encerrando uma apresentação memorável – para desespero dos fãs cariocas.
Beck seria uma passagem natural para o show do Cure, o que fez estranhar o posicionamento do Bad Religion como sub-headliner da noite. Não que a banda californiana não faça jus ao horário e a posição no line-up, mas até na questão visual, o show de Beck soava mais apropriado para o começo da noite (o Bad Religion só trazia um telão com o nome da banda atrás). Tergiverses a parte, o show da banda do fundador do lendário selo Epitaph Records, o guitarrista Brett Gurewitz, e do vocalista mestre em Geologia e doutorado em Zoologia Greg Graffin, é aquele caminhão com bola de demolição que derruba tudo o que vê pela frente. Daqueles shows para quem ama a banda, não apenas os discos, o Bad Religion tocou canções de 15 de seus 17 álbuns, privilegiando o álbum “No Control” (1989), que cedeu três músicas para o set, sem se esquecer dos hinos que fazem o Bad Religion ser o que é, hits como “American Jesus’, “Punk Rock Song”, “21st Century (Digital Boy)” e “Infected”. Daqueles shows que tem o poder de transportar muito adulto de volta ao passado a mirar um quarto com sua porção jovem sem fé na vida ouvindo uma velha canção de punk rock. Bad Religion é sempre bom!
Os 10 minutos de intervalo entre Bad Religion e Cure pareceram eternos, até porque um contingente enorme de fãs já tinha montado acampamento fazia tempo nas redondezas do palco principal esperando Robert Smith e companhia. Foram 10 anos de espera, sendo que na última passagem pelo país, Smith já dizia que talvez não voltasse mais ao Brasil. Não só voltou como surgiu com uma camiseta preta estampada com um beijo nas cores verde e amarelo (para desespero de antibolsonaristas que necessitam entender que a bandeira do Brasil é de todo brasileiro, que precisamos resgata-la e, principalmente, que nem todo mundo que desfila essas cores é escroto e canalha) e ainda trouxe consigo o poderoso baixista Simon Gallup (único da formação oitentista a permanecer na banda até hoje – e decisivo na formatação do som Cure) e o lendário guitarrista Reeves Gabrels, que teve uma bandinha nos anos 80, Tin Machine, com um tal de David Bowie… e seguiu acompanhando o camaleão em discos e turnês em todos os anos 90 – está fixo ao lado de Robert Smith no The Cure desde 2012.
Como tem feito em quase todas as apresentações recentes, a banda começa tocando a inédita “Alone” enquanto Robert Smith entra lentamente no palco e admira a plateia. A primeira parte do concerto é dedicada a canções mais reflexivas, como “Pictures of You”, “A Night Like This”, “Lovesong”, “Fascination Street” e outras duas canções que remetem muito a fase “Disintegration” da banda, a nova “And Nothing Is Forever” e “Burn”, da trilha sonora do filme “O Corvo” (1994). Quando o hit pop “In Between Days” ressoa no Primavera Sound enfileirado com “Just Like Heaven” (que dobradinha, que dobradinha) já se foram quase uma hora de show. A voz de Robert Smith está impecável, e se mostrará perfeita até o final da noite. A banda segue o mestre e executa os arranjos em seus menores detalhes com devoção. Gallup ganha os holofotes na dobradinha “Play for Today” e “A Forest”, que ele encerra citando… Iron Maiden (“Death of the Celts”, do disco “Senjutsu”).
No primeiro bis, já com mais de 100 minutos de show, uma surpresa: Bob estende essa entrada com uma música a mais (ele fará o mesmo no segundo bis estendendo o set brasileiro para 29 canções, o maior desta perna latina ao lado do show em Lima, no Peru – para se ter uma ideia, o show em Buenos Aires teve 27 canções) num momento mais climático marcado por canções como “Plainsong”. Já o segundo bis é todo pop com “Lullaby”, “Hot Hot Hot!!!”, “The Walk”, “Friday I’m in Love”, “Close to Me”, ‘Why Can’t I Be You?” e “Boys Don’t Cry” numa sequencia para lavar a alma de todo o público presente e mandar todo mundo para casa sem voz e com sorriso no rosto. O show termina, mas Robert Smith, sozinho em cena, demora a sair, e até parece cogitar um terceiro bis, que não vem. O Primavera Sound São Paulo 2023 foi fechado com chave de ouro.
Com cerca de 50 mil pessoas por dia (ainda que a presença de domingo tenha parecido mais massiva do que a do sábado), o Primavera Sound São Paulo reverteu as expectativas fechando o ano (do festival e da própria produtora T4F) de maneira surpreendentemente positiva. Ainda que criticado por muitos (que brincam que é mais fácil ir para o Primavera Buenos Aires do que para Interlagos), o autódromo é, definitivamente, um espaço versátil para grandes festivais. E não só: é um dos raros espaços em São Paulo que permite abrigar 50 mil pessoas numa disposição de vários palcos – testado durante anos, o Jockey é ineficaz nessa função – abrindo possibilidade, inclusive, para criação de novos espaços num potencial crescimento do evento (já deixo uma dica: que tal tendas menores atrás do Palco Barcelona?). O saldo final foi de calor intenso, muito suor, algumas lágrimas e muitos grandes shows, sendo que alguns, como esse do Cure, irão permanecer na memória de muita gente por anos e anos e anos. O que um festival pode querer mais do que isso? Até 2024.
ESPECIAL: O TOP 10 SHOWS DO PRIMAVERA SOUND POR 10 CONVIDADOS
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/
Texto maravilhoso. Adorei saber das suas impressões sobre vários shows. Fui no domingo e consegui ver o final do Beck, assisti o Bad Religion inteiro (ótimo show) e, depois, prontíssima pra ver o nosso amado Cure. Um dos shows da minha vida. Viajante, lindo, emocionante. Sobre a estrutura, espero que essa distribuição de água durante todo o evento, mais protetor solar, não sejam “esquecidas” na próxima edição e vá além, com todas as demais produtoras fornecendo o básico nesses tipos de evento em locais abertos.
Texto excelente, fui no Domingo, saí de Contagem MG com um casal de amigos para ver nossa banda favorita: THE CURE, foi incrível, intenso , místico e surpreendente. Parabéns Primavera Sound , na próxima chama o NEW ORDER e o DEPECHE MODE , kkkkk.
Excelente pedido para o próximo primavera!!!
Compartilho com tudo que você disse Weksley. Também sou de Contagem/MG bairro Eldorado e fui ao show do lendário, místico, e fantástico THE CURE. É o 4° show que vou desta banda ímpar. Estão ainda melhores do que 10 anos atrás.
Que venham New Order e Depeche Mode em 2024…
Foi simplesmente maravilhoso, fomos no domingo para o show do the cure e foi magico, o festival estava impecavel. Distribuindo agua, protetor solar pras pessoas. So um pedido tragam the cure de novo !!!!
Só eu achei o Robert Smith um pouco baleado? Ele tá a um passo da decadência do Axel Rose. A voz mais rasa e grave. Tudo bem o conhecido misancene. Mas valeu a nostalgia e o som da banda está animal.
PS: nada a ver o comentário político da camisa do Robert Smith.
Muito boa postagem, Mac. Só um adendo: “Burn” não é uma música nova. Ela faz parte da boa trilha de “O Corvo”, de 1994. Abraços!