entrevista por Luiz Mazetto
Uma das vozes mais reconhecíveis e essenciais da história do punk/hardcore dos Estados Unidos, Keith Morris sempre se manteve ativo e com o olhar em frente. Não bastasse ter cofundado e sido o primeiro vocalista do Black Flag, com quem gravou o definitivo EP “Nervous Breakdown” (1979), um marco definitivo do estilo, e depois ter seguido em frente para criar o Circle Jerks, que lançou discos essenciais como “Group Sex” (1980) e “Wild in the Streets” (1982), Keith fundou em 2009 o OFF!, uma das bandas mais interessantes do punk/hardcore das últimas décadas.
Depois de lançar um dos melhores discos de 2022, o intenso e caótico “Free LSD” (2022), que traz a banda misturando punk/hardcore, metal, free jazz e muitas outras influências com uma nova e potente formação junto de Keith e do guitarrista Dimitri Coats, Keith fala sobre uma infinidade de temas, do OFF! e o processo de criação de “Free LSD”, a nova fase do Circle Jerks com Joey Castillo (Queens of the Stone Age, Danzig) na bateria, com quem pretende voltar à América do Sul em breve, explica por que não fala mais com Greg Ginn, ex-companheiro de Black Flag, conta como acabou virando um dos principais vocalistas do punk/hardcore totalmente por acaso, e lembra uma noite histórica em que dividiu o palco com Chuck Berry.
Em 2022, o OFF! lançou um dos melhores discos do ano, “Free LSD” (2022), e agora mais recentemente soltaram um EP chamado “FLSD” (2023). E sei que tem um filme (intitulado “Free LSD”) que irá ser lançado em algum momento. Como foi o processo criativo para criar não apenas um disco conceitual, mas também todos esses projetos a partir do disco, incluindo o EP e o filme, que originalmente seria chamado de “Watermelon”? Vocês tiveram muitas ideias durante a pandemia?
Quando começamos a trabalhar nesse projeto, a ideia principal era que iríamos para um lugar diferente de onde já tínhamos estado musicalmente. O disco ainda tem muito do que faríamos normalmente, mas adicionamos algumas coisas. A maneira como eu e Dimitri descrevemos o disco é que estávamos trabalhando em preto e branco e agora era o momento de ir para um mundo em cores (Nota do repórter: a capa do disco reflete isso, inclusive, já que a arte, mais uma vez assinada pela lenda Raymond Petitbon, é a primera da banda a sair do padrão em P&B). Ele (Dimitri) tinha essa ideia para um filme conectado com a gravação do disco, duas coisas que caminhariam juntas – o disco levaria ao filme e o filme então levaria para a música. Então nós já estávamos pensando nisso desde o início quando começamos a trabalhar no disco ou escrever as músicas para o que nós chamávamos de trilha sonora. E acabamos de lançar um EP com algumas músicas incidentais, ruídos, free jazz, todas essas coisas doidas (nota: o EP é chamado “FSLD”). Eu deveria ter um papel nessa parte mais “doida”. Mas o Dimitri já tinha muitas coisas de todo o equipamento, pedais e efeitos. Por isso, não pareceu a coisa certa eu fazer algumas das mesmas coisas que ele estava fazendo. A minha ideia… eu acabei comprando um aparelho para fazer samples e comecei a separar pedaços de algumas das minhas músicas favoritas. O cara com quem eu estava trabalhando – Randy (Randall), do No Age, uma ótima banda que já lançou quatro ou cinco discos – me ensinou como fazer esses samples e adicionar alguns efeitos para torná-los irreconhecíveis. Nesse processo, eu estava apenas aprendendo a usar o aparelho, ainda não o tinha dominado de verdade. Então quando chegou a hora de gravar, eu não estava fazendo todas as coisas que devia estar fazendo nesses trechos, então tudo acabou ficando no meu canto do estúdio. Eu estava em um corredor e estava com todas as minhas coisas montadas enquanto eles estavam gravando bateria, saxofone e todos esses dispositivos de efeitos do Dimitri, ele tem umas duas maletas desses efeitos. E como sou uma pessoa que aprende as coisas devagar quando estamos falando desses aparelhos, eu apenas não estava com tudo pronto para conseguir fazer o que queria. Consequentemente, quando estávamos gravando essas partes, o nosso produtor na cabine de gravação disse: “Ah, eu sei de onde isso veio. Sei quem é esse artista. Também conheço esse disco. Você não fez a sua lição de casa”. Ele não disse isso (a última frase), mas era o que ele estava sinalizando, algo como: “Você poderia ter feito um trabalho melhor para isso”. Mas eu também estava memorizando as letras, e também estou em outra banda (Circle Jerks). Acabamos ficando meio ocupados no final da gravação, assim como quando estávamos gravando o filme, quando o Dimitri chegou e falou: “Vocês vão precisar tirar três semanas para a gente fazer o que precisa”. E eu sempre apoiei o Dimitri nisso, já que o OFF! é a banda mais importante no meu mundo. Ok, preciso dizer também que a minha outra banda está pagando pelo meu aluguel, o seguro do meu carro, me alimentando, pagando pelas minhas roupas, de forma que preciso me dividir entre as duas. Mas está tudo bem. Consegui separar tempo para falar com você, falar com outras pessoas. Quanto à minha criatividade para a gravação, as coisas que eu queria fazer, gostaria de ter contado com um amigo que toque teclado, talvez um órgão Hammond ou até um Mellotron. Também adoraria ter tido alguém tocando flauta, oboé. Mas esse não era o caso. Tipo, tudo soa muito legal, mas nós não temos o dinheiro para pagar essas pessoas para virem tocar nas nossas músicas. E é apenas como as coisas são, isso terá de ficar para outro momento no futuro.
Quando vocês decidiram chamar o Justin (Brown), que é um baterista incrível que também toca com o Thundercat, e o Altry (Fulbright II, baixista, do And You Know Us by The Trail of the Ddead), já tinham em mente essa ideia de trazer mais cores, como você disse, para a música? Era esse o plano desde o início quando escolheram a nova seção rítmica da banda?
O que aconteceu em nossa evolução como uma banda é que nós chegamos a um impasse com a nossa primeira seção rítmica, em que eles estavam cada vez mais ocupados. Eu e Dimitri tiramos dois anos para escrever, para criar o disco. E o Steven (McDonald, baixista, que também toca no Melvins e no Redd Kross) e o Mario (Rubalcaba, baterista e ex-skatista, que também toca no Earthless e Rocket from the Crypt) estavam tipo em seis outras bandas. Nós pensamos: “Será que eles vão conseguir nos dar três ou quatro semanas no estúdio?”. Nós queríamos passar mais tempo, ser mais criativos no estúdio e poder criar todas essas coisas extras. No filme, seria como música incidental, que poderia estar tocando quando alguém está dirigindo o carro. Mas eles não podiam se comprometer com o que nós queríamos no estúdio, então as coisas ficaram um pouco estranhas, um pouco feias. Eles são nossos amigos, mas parecia que não estavam agindo como amigos. Era algo como: “Tanto faz, o que eu estou fazendo é mais importante do que o que vocês estão fazendo. Então vocês podem esperar por mim”. E no processo nós percebemos que, para eu e Dimitri seguirmos em frente – precisávamos fazer isso. Nós já havíamos dado dois anos para os caras saírem e tocarem com todas as outras bandas deles, tipo o Melvins, o Rocket from The Crypt e o Earthless. E não estou querendo diminuir essas bandas, porque amo todas elas. Mas ficamos, eu e Dimitri, um pouco chateados porque nós basicamente dissemos: “Nós vamos viver de sopa e salada pelos próximos dois anos enquanto vocês estão tocando com todas as suas bandas”. O Redd Kross é uma das minhas bandas favoritas de todos os tempos, por isso entendo você querer escrever e gravar um disco com o seu irmão mais velho (nota: os irmãos McDonald, Steven e Jeff, são a base da banda desde a sua criação, em 1980). Toda a força para você. Ou tipo: “Sim, você quer fazer um disco ao vivo com o Earthless, eu vou comprar. Não vou te ligar ou escrever para pedir uma cópia. Vou comprar o disco. Sabe, vou apoiar o seu trabalho”. Porque até então eu e Dimitri estávamos muito tranquilos com a seção rítmica original, mas as coisas começaram a ficar um pouco demais. Tipo, nós temos essas músicas e as gravamos duas vezes. Uma com o Steven no baixo e o Dale Crover, do Melvins, na bateria. Acho que gravamos 23 músicas com essa seção rítmica. E quando estava acontecendo, estava realmente acontecendo. Mas então houve alguns momentos ruins. Foram momentos em que pensamos: “Nós não vamos usar isso, não podemos usar. Vamos precisar regravar.” Então tivemos algumas dificuldades. Mario escutou a gravação e disse “Não, não, não”, porque o Mario nos disse originalmente “Sou um baterista, não um ator, não vou participar do filme”. E o Steven sempre falou algo como “Bom, vocês não têm o dinheiro para fazer o filme, vou ler o roteiro quando vocês tiverem o dinheiro”. Para nós, isso não foi muito encorajador. Então chegamos a um impasse com esses caras e foi tipo, tudo bem, chocamos com um muro, nos recompomos e percebemos que precisávamos encontrar novos integrantes para o OFF!.
Tocamos com o Brian (Evans), que era o baterista original de uma banda chamada Retox (que também contava com Michael Crain, do Dead Cross) e ele era ótimo. Depois de ele começar a tocar com a gente, nós também fizemos testes com uma garota do Japão, que tocava baixo meio que no mesmo estilo do Geezer Butler (Black Sabbath). Ficamos: “Uau, isso está acontecendo”. Ela toca com os dedos, o que significa que ela traz um som mais quente, em vez de apenas aquele som mais marcado da palheta. Então isso foi legal. Mas o nosso baterista naquela época, o Brian, não estava realmente curtindo, e ele nos contou isso. Então pensamos: “Vamos fazer testes com outras pessoas”. Nós conhecemos o Autry, bem, eu conheci o Autry em Austin, no Texas, em um show do OFF!. O Dimitri conhecia o Autry porque a outra banda do Dimitri, The Burning Brides, tinha feito uma turnê com o And You Will Know Us by The Trail of the Dead. Então já existia meio que uma amizade ali, e quando o Dimitri falou com o Autry, ele topou imediatamente. Ele disse “Vocês são a minha banda favorita, é claro que vou tocar com vocês”. Então o Brian nos fez bater em outro muro, e foi feio. Foi ótimo ter acontecido quando aconteceu, porque teria sido horrível se a gente tivesse gravado o disco e caísse na estrada e só então descobrisse essa questão com o Brian. O lance de estar em uma banda é que no começo você está totalmente dentro, tipo “Vamos nessa, um por todos e todos por um”. E à medida que você fica mais próximo dos seus colegas de banda, muitas vezes acaba descobrindo algumas discrepâncias nas personalidades das pessoas, e isso não é bom. Daí que é melhor que isso aconteça antes do que no meio de uma turnê, quando você estiver na Europa ou na América do Sul, por exemplo. De qualquer forma, estávamos nós três e em uma conversa com o Autry, o Dimitri pergunta: “Você conhece algum baterista?” Porque o Autry é um dos produtores do Thundercat. O Justin Brown toca com o Thundercat – o Thundercat tem tipo seis bateristas diferentes, mas o Justin é sempre a primeira opção. O Autry mencionou o Justin. Tivemos que dizer para o Brian: “Não há motivo para você ficar dirigindo de San Diego até aqui, passar três horas na estrada para ensaiar conosco, porque nós não queremos tocar com você”. O Dimitri e o Autry falaram com o Justin algumas vezes e ele nem precisou pensar. O Justin entende a história do Thundercat, sendo um baixista com quem ele tocou. E o irmão dele (do Justin) já tocou bateria em um determinado momento no Suicidal Tendencies. Então você tem todas essas coisas, todos esses eventos que aconteceram e que estão prestes a acontecer. Nós começamos a tocar com o Justin e foi algo louco. Ele não é um baterista que segue, ele não é um baterista que toca um padrão. Logo no começo, ele chegou e disse: “Caras, eu não vou tocar essas músicas da mesma maneira todas as vezes que as tocarmos”. Isso criou um desafio para nós, porque nós estávamos acostumados a ter bateristas que criavam e seguiam um certo padrão. Não era necessariamente sempre a mesma coisa, mas nós tínhamos algo que é a fundação para o que estamos fazendo, essa é a parte principal da planta antes de a casa ser construída. Então nós temos isso. E a primeira coisa que gravamos com esse lineup foi o cover de “Holier Than Thou”, do Metallica.
E vocês foram convidados pelo Metallica? Como acabaram entrando no tributo?
As pessoas que estavam ajudando a fazer o disco (de covers) do Metallica, a reunir todas as bandas e artistas que gravariam, eles procuraram o nosso agente de shows na época, que também trabalha com Circle Jerks, GBH, Pennywise e Social Distortion. O Metallica queria que o Social Distortion fizesse um cover deles para o box do “Black Album” (1991) – intitulado “The Metallica Blacklist”. Então eles entraram em contato com o nosso agente e ele trouxe isso até nós e dissemos “Claro!”. Então escutamos o disco e tentamos escolher a música para a qual iríamos fazer a nossa versão (nota: a banda escolheu “Holier than Thou”, que também teve versões, menos inspiradas, feitas por nomes como Biffy Clyro, Corey Talor, The Chats e PUP). E o resto é história.
Talvez você já tenha ouvido isso de outras pessoas, mas o “Free LSD” me soa como um disco de metal e stoner com hardcore, consigo escutar bandas como Mastodon, High on Fire, Kyuss, Fu Manchu e até algumas coisas de black metal. Isso foi algo que você, o Dimitri e os caras conversaram antes, de forma intencional, ou foi apenas como as coisas saíram?
Sabe, sou um grande fã desse… deixa eu ver se consigo te mostrar. Esse é o disco (Nota: Nesse momento, mostra um pôster do “Vol. 4”, de 1973, do Black Sabbath).
E você chegou a vê-los nessa tour?
Sempre fui muito fã do Black Sabbath. Vi eles no começo dos anos 1970, na turnê do “Master of Reality” (1972). Os vi ao vivo duas vezes. E então os vi na próxima vez que eles vieram tocar na cidade, quando eles tocaram no Hollywood Bowl para a tour do “Volume 4”. E o Dimitri também é um fã. Nós já tocamos com o High On Fire. Nossas influências são infinitas. Também adoro sentar e ouvir Suicidal Tendencies, poderia fazer uma lista enorme aqui. Há muitas bandas desse gênero que adoramos ouvir e que poderíamos citar como influências. O Dimitri, em um determinado momento, fez muita lição de casa, quando estava estudando Black Flag e Circle Jerks. Então escutamos muitas dessas bandas. Adoro stoner rock, adoro o Queens of the Stone Age, que é a banda para qual o Josh meio que seguiu depois do Kyuss. Amo todas essas bandas. O que fizemos quando estávamos ouvindo música para despertar nossa imaginação foi ir para muitos lugares diferentes do que as bandas que fazem parte da cena hardcore costumam ir, eles não costumam ir para esses lugares. Nós estávamos ouvindo Ravi Shankar. Em sua primeira viagem para a Índia, quando se tornou espiritualmente iluminado, o George Harrison encontrou o Ravi Shankar, que o levou para ver essas orquestras indianas com tablas, cítaras e tudo mais, todas as outras influências do Oriente Médio e diferentes instrumentos. Nós também escutamos industrial, agora estou curtindo bandas industriais que já conhecia por termos alguns dos seus discos. O single “Zyklon B Movie” (1978), do Throbbing Gristle – que eu acredito que era o gás (Zyklon B) que os nazistas usavam nos campos de concentração. Também gosto do Einstürzende Neubauten, porque o cara principal da banda é como um herói nacional na Alemanha, acho que o nome dele é Blixe, Blixa (nota: é Blixa Bargeld).
Isso, ele tocava com o Nick Cave!
Bom, é isso, ele fazia parte dos Bad Seeds. E tenho outro associado, o Kid Congo, que tocou no Gun Club, no Cramps e com o Nick Cave. E também é integrante do Pink Monkey Birds. Mas me familiarizei com a música dessas pessoas porque tenho amigos associados com elas. O Dimitri também nos fez sentar e escutar coisas como Albert Ehler, free jazz, Miles Davis. E chegou um momento em que estávamos vendo vídeos do Miles e eu disse: “Dimitri, houve um momento em que eu saía e ia ver esses mestres do jazz e acabei vendo, nos anos 1970, o Miles Davis com o Herbie Hancock e os Headhunters (banda de Hancock)”. E o Dimitri ficou muito animado porque o Justin Brown já tocou com o Herbie Hancock, o que é algo realmente gigante no mundo do jazz. Então nós tínhamos todas essas linhas acontecendo. Minha visão inicial para o disco é que eu queria ter elementos do “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” (1967), dos Beatles. E, é claro que, se há algumas referências disso, não é o que você escutaria naqueles álbuns dos Beatles, como “Sgt. Peppers”, “Revolver” ou “Magical Mistery Tour” (1967). Então nós estávamos escutando todas essas coisas diferentes, passeando por essas avenidas musicais diferentes, apenas checando de tudo um pouco – e incorporando muitas dessas coisas no que estávamos fazendo, esses estilos diferentes, em vez de soar apenas como máquinas hardcore marcadas, militarizadas. Nós propositalmente pegamos caminhos diferentes.
E você acredita que se tornou mais desafiador para vocês tocarem ao vivo agora?
Quando tocamos com o Justin, nos encontramos eu, o Dimitri e o Autry, tentando alcançar o Justin em algumas partes. Ou ficar ao fundo e tentar entender o que ele está fazendo e tentar acompanhá-lo. Porque a forma como ele toca bateria, ele é como Buddy Rich. É algo como: “Caras, vocês estão errando. Vou começar a punir vocês, vou começar a multar vocês, como o James Brown e a banda dele. Você fez ‘bup bup’ em vez de ‘bup bup bup’. Você fez um ‘bup’ a menos, isso vai te custar 5 dólares”. Com o Justin, as coisas são loucas, é bizarro, é caótico. Em um momento, isso foi antes do Justin, eu e o Dimitri falávamos sobre algumas bandas de hardcore. Havia uma banda de Washington DC chamada Void. Quando você os escuta, parece um trem a 200 quilômetros por hora e que começa a descarrilar. Então eu e o Dimitri entrávamos em conversas sobre a importância do Justin: “Cara, nós estamos voltando ao que você falou sobre o Void e como o som deles parecia como que eles estavam um passando na frente do outro. Parecia que eles estavam todos correndo para a linha de chegada para ver quem seria o mais rápido. Então teremos um pouco disso nos shows aí no Brasil. Onde você vive?
Em São Paulo.
Ah, esse é o show do festival, do Primavera (Sound). Nós vamos tocar com o Mario (na bateria). O Mario voltou porque o Justin está em turnê com o Thundercat. Porque nós não podemos esperar sentados o Justin terminar o que ele estiver fazendo porque a agenda dele é tão lotada que ele não consegue ler mesmo se tiver escrito ou estiver no telefone dele. E mesmo assim ele não consegue lembrar. Então em um determinado momento nós dissemos: “Olha, não podemos voltar para a mesma situação que estávamos com a seção rítmica original. Nós temos trabalho a fazer, contas a pagar”. Isso é o que fazemos como banda, é como promovemos o nosso trabalho. É como nós ganhamos um pouco de moolah, dinero ou como vocês chamem o dinheiro aí no Brasil. Nós precisamos trabalhar!
E as coisas estão bem com o Mario depois de tudo que aconteceu?
Já fizemos alguns shows com o Mario e está tudo bem, legal. Quando o Mario saiu, foi por uma razão ridícula. E nós não temos nada contra ele porque ele estava em um período em que a vida dele estava… Sabe, eu achava que nós éramos uma banda, que nós quatro iríamos pegar no telefone e falar sobre o que estava acontecendo. E toda vez que íamos ao Steven, porque ele estava em turnê com o Melvins, então tinha uma agenda a seguir. E as folgas dele eram poucas e muito espaçadas, era algo como “Ei, caras, posso falar com vocês na terça-feira às 7h30 da manhã, mas estarei sentado na banheira, tomando banho, escovando os dentes, arrumando a mala para seguir para o próximo show”. E nós não conseguíamos nenhum tempo com o Steven e tínhamos coisas a falar. Foi algo como: “Eu preciso fazer algo para salvar a banda”. Porque o Dimitri estava travado diante de um muro: “Não estou sentindo isso, não quero mais fazer isso”. Isso teria sido desastroso para mim, porque investi tanto tempo (na banda) e não iria permitir que isso acontecesse. Eu iria fazer tudo que estivesse ao meu alcance, dentro das minhas capacidades, sendo o mais velho da banda e a superestrela punk que eu sou (risos). Eu precisava tomar as rédeas e fazer algo, meio que bater o pé e dizer: “É assim que as coisas são”. Tive que fazer algo que não queria fazer e o Mario não concordou. Eu e o Dimitri fizemos uma ligação com o Mario e explicamos para ele o que estava acontecendo e o Mario não concordou, ele não apenas não apoiou isso. Quer dizer, ele entende agora que eu tive de fazer o que tinha de ser feito – e que eu não queria fazer aquilo. Mas é como se estivéssemos encurralados e tivemos que sair mordendo, lutando e chutando.
No seu livro (“My Damage: The Story of a Punk Rock Survivor”), você fala que o OFF! mudou tudo para você, que você se sentiu mais energizado e criativo com a banda. Quando iniciou a banda como Dimitri, em 2009, imaginava que seria a sua banda mais duradoura, já que vocês nunca pararam e fizeram tours ao redor do mundo nesse tempo? Já tinha ideia de que tinha algo especial acontecendo quando começaram a banda?
A banda poderia ter acabado quando tive a situação com o Steven, isso poderia ter sido o fim do OFF!. Em termos criativos, a banda é uma das coisas mais incríveis de que já pude fazer parte. Já toquei com ótimos guitarristas e com bateristas e baixistas incrivelmente brilhantes, mas não poderia estar mais feliz no momento. Temos alguns shows na costa oeste dos EUA, depois voamos para Dublin, na Irlanda, onde vamos fazer cerca de uma semana de shows no Reino Unido. E então vamos para a Espanha, onde tocaremos em um evento do Primavera. Depois vamos para a Cidade do México para tocar no Corona Festival, que é o maior festival do México. Aí temos um ou dois dias de folga, vamos para Guadalajara e de lá para a América do Sul. Acredito que vamos fazer três shows no Brasil. Sei que vamos tocar em…como se fala, é Curitiba?
Isso, vocês tocam em Curitiba e Porto Alegre.
E também no festival (Primavera) em São Paulo.
Sim, sim. Você já tocou duas vezes no Brasil, se não me engano, uma com o Circle Jerks e outra com o OFF! há 10 anos exatamente. Por isso, queria saber quais suas memórias dessas visitas ao país. Conseguiram ver algo além das casas e pessoas relacionadas aos shows?
O que eu fiz… Gosto de acordar para ver a luz do sol e não apenas ao meio-dia ou algo assim, não mantenho horários de vampiro de rockstar. Gosto de acordar e sair para andar por aí, não procurando por algo específico, apenas sair pela rua e ver o que estiver acontecendo, as pessoas vivendo suas vidas, os mercados, a comida, os restaurantes, os bares, as livrarias. Apenas gosto de coisas assim, procurar por uma loja de discos. Ou posso ir à uma loja de departamento e minha desculpa para isso é que posso estar precisando de uma cueca nova ou de um par de meias. Porque você nunca pode ter muitos pares de meias ou cuecas. Ou posso comprar uma grande garrafa de água, algumas barras de chocolate ou algo assim. Apenas caminhar por aí para matar o tempo e dar uma olhada pela cidade. Não saio procurando por um museu, mas se tiver um pelo bairro, posso acabar indo. Não busco por igrejas, não quero ficar parado em frente à delegacia de polícia. (Quero) Apenas sair e ver as pessoas vivendo suas vidas.
E houve algo em especial que chamou a sua atenção nessas suas viagens ao Brasil, algo em particular, como uma comida ou algum lugar?
O show que nós fizemos no Brasil, que aconteceu em São Paulo, foi em uma casa de shows muito, muito boa (Hangar 110). E estava lotada. Devia ter umas 500 pessoas lá, o que é uma boa quantidade de pessoas quando você está em uma banda do nosso nível, do nosso nicho, do nosso groove, do nosso gênero. Mas o que me chamou mais a atenção foi sair do lugar do show e ver o que estava acontecendo no caminho para o hotel. Acho que era uma segunda ou terça-feira à noite, e essas pessoas estavam festejando como se o mundo fosse ser tomado por alienígenas e não fôssemos mais estar aqui no dia seguinte, algo como: “Então vamos todos nos reunir e vamos fazer isso hoje à noite”. E esse parecia ser o consenso entre os caras da banda. Um dos caras da banda descobriu um novo drink e disse: “Eu bebi e comecei a alucinar. Então tomei outros 10”. E ele pode ter desmaiado na calçada e acordado três horas depois para ir aos trancos e barrancos para o hotel. Porque esse era o tipo de personagem que ele era, e possivelmente ainda é.
Aliás, você conhece bandas ou artistas do Brasil?
Conheço os Mutantes. E também, o cara que depois formou o Soulfly?
O Max Cavalera, que era do Sepultura.
Lembro de ver o Sepultura algumas vezes, poderia curtir com eles. E o Sergio Mendes também.
Ah sim, ele é ótimo. Acho que vive nos EUA hoje em dia, não.
Provavelmente. Bom, ele era da A&M Records e, em um determinado momento, o Circle Jerks teve a A&M Records colocada na nossa frente como os burros que nós somos. E estávamos extremamente animados porque agora nós teríamos colegas de gravadoras como o Peter Frampton, Procol Harum, Dickies, The Police – eu não gosto do Police, mas estou apenas tirando um sarro deles porque eles eram uma banda popular entre quem ouvia música mais nova. Mas o acordo com a A&M Records acabou não dando certo. Mas o nosso cara na A&M era o terceiro na linha de comando, ele era importante na gravadora. Mas mesmo tendo essa posição de poder, você ainda precisa convencer todas as pessoas que trabalham lá, as pessoas no departamento de artes, de imprensa, de publicidade, de marketing. Você precisa convencer todas essas pessoas que elas precisam te apoiar nisso. Todo mundo precisa fazer o trabalho delas, do tipo “Vamos fazer isso acontecer”.
Falando sobre o Circle Jerks, vocês têm feito shows para comemorar os 40 anos do “Group Sex” (1980), que acabaram sendo adiados por causa da pandemia. Como está sendo voltar à estrada com a banda e com o Joey Castillo (Queens of the Stone Age, Danzig)? Ele ainda está tocando bateria com vocês, certo?
Nós não seremos mais uma banda quando o Joey disser que não quer tocar mais com a gente. O que deve ainda estar a anos e anos e anos de acontecer. Porque isso foi algo que levou anos para acontecer. Nós somos a banda favorita dele. Isso é legal, porque ele é um baterista incrível. Ele conhece as nossas músicas melhor do que a gente. Quando nós estamos ensaiando, o Joey pode perguntar algo como “Então vocês querem que eu toque como o Lucky tocava no single de “Wild in the Streets” (1982) que vocês fizeram para “Posh Boy”? Ou vocês querem que eu toque do jeito que o Kevin tocava no disco ao vivo no House of Blues? Ou como o Chuck Biscuits tocava?” Tipo, ele conhece todos os bateristas e as pequenas diferenças na maneira como eles tocavam as nossas músicas. É apenas um grande prazer trabalhar com ele.
E há alguma chance de o Circle Jerks voltar ao Brasil?
Sim, nós vamos voltar. É apenas uma questão de quando nós conseguiremos fazer isso acontecer. Nós temos agora uma tour com o Descendents com cerca de 50 datas. O que isso significa, no entanto, não é que vamos fazer 50 shows seguidos, caso contrário eu morreria. Mas eu adoro isso, adoro tocar para as pessoas. Adoro ir para todos os lugares. Realmente quero voltar para a América do Sul e tocar músicas do Circle Jerks.
Legal! Agora são as últimas perguntas. Gostaria que você me dissesse três discos que mudaram a sua vida e por que eles fizeram isso.
Assim na lata? Hmm, diria o “Are You Experienced?” (1967), do Jimi Hendrix Experience. Esse foi o primeiro disco do Jimi Hendrix que eu tive. Eu amo esse disco. Não acho que seja o melhor trabalho dele, acredito que o “Electric Ladyland” (1968) seja o melhor. Mas esse foi o primeiro disco que eu comprei com o meu dinheiro, que segurei nas minhas mãos… Acho que essa é uma pergunta terrível porque há tantas direções diferentes que eu posso ir. Eu poderia dizer o primeiro disco do Black Sabbath, o primeiro do Led Zeppelin, ou ainda o primeiro do The Damned. Poderia dizer o “Fireball” (1971), do Deep Purple, o “Phenomenon” (1974), do UFO. Ou o Alice Cooper. Tenho todos esses pôsteres aqui na minha sala, estou olhando aqui e vendo coisas como “Love it to Death” (1971), do Alice Cooper, “Vol. 4” (1972), do Black Sabbath, Jesus Lizard, Chambers Brothers, The Kinks, The Beatles, muitos discos dos Beatles, o “Never Mind the Bollocks” (1977), do Sex Pistols.
E teve algum disco que te fez querer estar em uma banda?
Não. Tem outros aqui, o “Golden Decade” (1972), do Chuck Berry, “Lola” (1970), do Kinks, o “Their Satanic Majesties Request” (1967), dos Stones. E tem um outro deles também, que não consigo lembrar o nome.
O “Exile”? Ou “Let it Bleed”?
Os Rolling Stones lançaram dois discos em sequência e os dois são… Todo mundo considera o “Exile on Main Street” (1972) o auge deles e é um disco ótimo, mas acredito que há alguns discos anteriores que são tão bons quanto ou ainda melhores. O “Let it Bleed” (1969) é ótimo. O disco que é um convite da rainha, vou lembrar do nome quando estiver indo almoçar. Aí vou te ligar de volta para te contar (risos). Mas nunca fui inspirado a ser um vocalista em uma banda, é algo que apenas aconteceu para mim.
Sim, no seu livro você menciona que inicialmente deveria ser o baterista do Black Flag e que o Greg Ginn (guitarrista e cofundador da banda junto com Keith) um dia viu você cantando uma música do Stooges – não me lembro se “Raw Power” ou “Search and Destroy” – e decidiu que você seria o vocalista da banda.
Sim, mas eu estava totalmente fora de mim. Tipo, subindo e descendo de móveis, mesas. Em um determinado momento, eu caí de cara no chão, pulei imediatamente e continuei gritando a música (Nota: nesse momento, Keith começa a cantar a letra de “Search and Destroy”, do Stooges: “I’m the world´s forgotten boy, the one who searches to destroy”).
Aliás, você ainda fala com o Greg ocasionalmente?
Não, não mesmo. Há um grupo de nós que nos recusamos a falar com ele e a ir aonde ele estiver. Ele nos processou. Nós não fizemos nada para merecer isso. Em um momento, o advogado dele disse para o nosso advogado: “Sabe, nós ainda não estamos nem na metade disso. Vou fazer isso custar 500 mil dólares para os seus clientes”. Tinha sete de nós no processo e alguns dos caras, dois ou três, falaram: “Nós precisamos acabar com isso. Nós não podemos ficar indo atrás dele para receber todos os nossos royalties. Não podemos ir atrás dele para fazer as coisas da maneira certa e do modo como deveriam ser para os nossos fãs”. O advogado dele apenas nos disse “Nós vamos apenas acabar com vocês”. Então o nosso advogado falou: “Pessoal, essa é a hora de dar um passo para trás porque está começando a ficar feio”. Já era algo feio desde o início, mas estava ficando pior. E a forma como as coisas são é que há dois de nós que são solteiros e que não são donos das propriedades em que vivem. Por exemplo, eu sou apenas um locatário. Nunca serei dono de uma propriedade porque não quero ficar preso em nenhum banco ou lidando com juros do dinheiro que eles me emprestariam. Algo como: “Nós te emprestamos 100 mil dólares e queremos mais 400 mil dólares de volta além disso”. Porque é como as coisas são agora. E três dos ex-integrantes do Black Flag possuem propriedades, tem filhos. É algo como “Eu preciso ganhar dinheiro para pagar para o meu filho estudar, ir para a universidade, comprar um carro para ele”. E eles (Greg e o advogado) apenas teriam continuado nos processando até que eu tivesse de vender minha coleção de discos, todos os meus DVDs, meu aparelho de som que não funciona. Foi apenas o momento de dizer “Já deu, isso precisa acabar”.
Então não há mais chances de termos shows do FLAG no futuro por causa disso?
Nós podemos fazer shows como FLAG. Não podemos lançar um disco ao vivo nem criar música nova.
Essa é a última pergunta. Você gravou alguns dos principais discos de hardcore da história. Você tem tocado com o OFF!, uma das melhores bandas a surgir nas últimas décadas. Você já trabalho como produtor de bandas com nomes como The Nymps e The Hangmen, já trabalhou em uma gravadora – basicamente, você já trabalho em todas as partes da indústria musical, em diferentes épocas. Por isso, gostaria de saber do que você tem mais orgulho na sua carreira.
Bom, eu tive a oportunidade de cantar “Roll Over Beethoven” com o Chuck Berry. Eu e você não estaríamos tendo essa conversa se não fosse pelo Chuck Berry. Não teríamos D.O.A., Sepultura ou Sergio Mendes se não fosse por ele. Bom, talvez o Sergio Mendes, mas não teríamos os Stones ou os Beatles. O desenho inaugural do rock. E é o que todos nós estamos tocando. Sempre que alguém pega uma guitarra, liga no amplificador e começa a tocar, tocará rock, em algum nível ou forma diferente. Mesmo que ficar apenas dedilhando, de uma forma meio folk. Ele (Chuck) fez um dos maiores elogios a uma das minhas bandas que qualquer banda poderia receber. Depois de tocar conosco, e isso foi com o Circle Jerks em um local chamado Mississipi Nights em St. Louis, no Rio Mississipi. Quando o Chuck estava saindo, ele chamou o dono da casa de shows e falou “Diga para esses caras que eles são uma das melhores bandas de rock que eu já vi”.
– Luiz Mazetto é autor dos livros “Nós Somos a Tempestade – Conversas Sobre o Metal Alternativo dos EUA” e “Nós Somos a Tempestade, Vol 2 – Conversas Sobre o Metal Alternativo pelo Mundo”, ambos pela Edições Ideal. Também colabora coma a Vice Brasil, o CVLT Nation e a Loud!