texto de Davi Caro
Pouco resta a dizer sobre Bob Dylan, homem e/ou mito. A trajetória de Robert Allen Zimmerman, lendária por si só, é constituída de momentos históricos, ainda que, como de costume, poucos pudessem dizer se tratar de estarem vivendo a história. E assim foi quando, em meio à sua badalada passagem pelo Reino Unido, em 1966, o bardo de Minnesota tocou no Royal Free Trade Hall de Manchester, no dia 17 de maio. Como fez em toda tempestuosa turnê daquele ano (mapeada com profundidade no box “The 1966 Live Recordings”), Bob alternava um primeiro set solo de canções acústicas conduzidas ao violão e gaita com um segundo set ao lado dos fiéis escudeiros da The Band (então ainda conhecida como The Hawks, tendo recentemente acompanhado o frontman Ronnie Hawkins) atiçando os já numerosos opositores em meio a sua base de fãs, que se sentiam traídos pela recente adoção de elementos elétricos, nos quais seu fiel violão era trocado por uma guitarra e suas apresentações assumiam peso e dinamismo estranhos às sutis reflexões folk através das quais se tornou conhecido. Noite após noite em 1966, “fãs” pagavam ingresso para vaiar Dylan, expediente que se tornou mitológico neste show em Manchester.
Perpetuando uma rotina que se repetiu durante os shows da turnê de 1966, com aplausos nas performances solitárias e vaias nos momentos elétricos, quase ao fim da apresentação em Manchester, um homem na plateia chama Dylan de “Judas!”, e Bob vira para a banda e grita um pedido: “Toquem alto pra caralho!”. Transformado em álbum pirata (erroneamente atribuindo o local do show ao Royal Albert Hall, em Londres), a parte elétrica desse show circulou em vinil entre fãs de Dylan já no começo dos anos 1970 com os nomes mais variados – “In 1966 There Was”, “Royal Albert Hall Concert 1966”, “Royal Albert Hall” – e foi lançado oficialmente pela Columbia apenas em 1998 (incluindo a parte acústica) dentro das Bootleg Series do bardo com o título “Volume 4: Live 1966 The Royal Albert Hall Concert” – transformando esse show em um registro histórico. D.A Pennebaker, que havia filmado a turnê europeia de Dylan em 1965 para o documentário “Don’t Look Back”, lançado apenas em 1967, e acompanhado Dylan na turnê de 1966, registrou o trecho cataclísmico do show de Manchester, mas as filmagens permaneceram inéditas até 2004, quando foram encontradas numa pilha de filmes danificados pela água recuperados do cofre de Dylan e inclusas no documentário “No Direction Home”, de Martin Scorsese.
Chan “Cat Power” Marshall com certeza entende o status do concerto de Dylan com devoção quase religiosa. Cada vez mais próxima do trigésimo aniversário de seu primeiro disco, “Dear Sir” (1995), a vocalista e instrumentista é, por si só, protagonista de alguns discos notáveis da discografia indie. Tendo iniciado seus trabalhos na mitológica gravadora Matador, transita entre o mainstream (de trilhas sonoras para filmes de Hollywood) e o underground (às vezes, literalmente… como em seu show no metrô de São Paulo em 2014), num movimento que a diferencia em meio a seus co-geracionais – um avatar do sonho da independência criativa, tão batalhado, conquistado com louvor. Não que a cantora tenha, em momento algum, sido capaz de esconder sua devoção por Dylan, ou a influência que este teve em sua própria trajetória: um retorno ao início dos anos 1990 já mostraria a artista fazendo shows inteiros ao som de um violão de duas cordas e repetindo a exaustão a palavra “não” – uma pista inegável da natureza disruptiva herdada de Bob. Sob esta ótica, o lançamento de seu “Cat Power Sings Dylan: The 1966 Royal Albert Hall Concert” como o primeiro álbum ao vivo de sua carreira poderia até parecer óbvio.
Ao mesmo tempo, porém, tamanha devoção ao prestar tributo a um ídolo, embora possa evocar cinismo e até desdém por parte dos menos flexíveis, também não deixa de suscitar certo nível de admiração e simpatia: aqui está, afinal, alguém compelido a celebrar o legado de Dylan ao ponto não apenas de manter o mesmo título (a despeito do já citado equívoco relacionado a sua localização – Marshall, de fato, gravou seu show no local indicado) e o mesmo repertório, como, em inúmeros momentos, também mostra sua reverência ao material original adaptando sua própria interpretação àquilo preferido por Bob quando de sua performance original. Ou seja: mesmo sendo uma cantora de registro vocal mais “tradicional” (ou “aprazível”, para alguns), Cat Power se aproxima dos tons de seu herói o suficiente para deixar sua devoção brilhar, sem nunca descambar em direção ao pastiche.
A primeira parte do set, devotada às seleções puramente acústicas, é um exemplo primoroso disso: o silêncio que se impõe entre os aplausos iniciais e a execução de “She Belongs To Me”, por si só, já enuncia a atmosfera quase ecumênica do show. A delicadeza firme de seu desempenho em “Visions of Johanna” não apenas a aproxima de Dylan, como também deixa fluir suas auspiciosas semelhanças com a também dylanófila Patti Smith, a tangibilidade de sua voz e respiração em evidência. Escapar de um documento de importância histórica ao realizar uma reinterpretação é um jogo arriscado, e Chan sabe disso: basta escutar tanto a cortante “It’s All Over Now, Baby Blue” quanto a cinematográfica “Desolation Row” para perceber como a enunciação da influenciada caminha ao lado daquela de seu inspirador; aliás, no que tange os dois segmentos do show, vale muito a pena analisar com atenção as interpretações tanto do nativo de Duluth quanto da intérprete de Atlanta, e escutar como a ênfase em determinadas palavras se mantém tanto em um quanto em outro. Mais do que admiração levada às últimas consequências, o tenro fim da parte violão-e-gaita (com a dobradinha das indefectíveis “Just Like A Woman” e “Mr. Tambourine Man”) mostra um alinhamento de ambições e uma declaração de máximo respeito.
O mesmo detalhamento e esmero se reflete, de modo diferente (como não haveria de ser diferente) na segunda parte do repertório: enfileirando as delirantes “Tell Me Momma” e “I Don’t Believe You (She Acts Like We’ve Never Met)”, Power conjura imagens do Dylan carregado em anfetaminas de 1966, mas com uma tridimensionalidade que a afasta do rigor preto e branco de Pennebaker e a aproxima das imagens vistas em “No Direction Home”, de Martin Scorcese, que trata do mesmo período – ainda que Dylan pareça ter vivido 10 anos entre 1965 e 1966. A virulência que a cantora exprime nos versos de “Just Like Tom Thumb’s Blues” por si só já faria com que seu registro valesse a pena independentemente do mítico registro original. O vigor dos arranjos preservados na impressionista “Leopard-Skin Pill-Box Hat” surpreende os menos preparados.
A conclusão do disco, porém, é onde as múltiplas diferenças entre as performances de Dylan e Marshall se fazem mais nítidas: talvez por causa de sua intepretação menos dúbia (favorecida pelo magnífico trabalho de mixagem), “Ballad of A Thin Man” foge da dubiedade arrastada (em comparação) do concerto original e alcança níveis de intensidade menos ambíguos e mais claros; a cantora, ao contrário de Bob, não age como se precisasse se provar a ninguém, tampouco como se tivesse legiões de fãs inflexíveis diante de si. E as distinções que separam o ouvido em 1966 do escutado em 2023, se ainda não estivessem evidentes, são escancaradas na imortal “Like A Rolling Stone”: é claro que, dada a natureza celebratória e devocional da ocasião, alguém não perderia a chance de gritar “Judas!”; diferente de Dylan, porém, que fez história ao responder, desafiador, “Eu não acredito em você. Você é um mentiroso”, Cat Power se contenta em devolver um semi-surpreso “Jesus”. O que se segue é um dos pontos altos do show, conduzido por uma artista que não se vê tão desafiada – a performance, portanto, perde em peso, mas não em riqueza, e o que poderia ser um demérito faz as vezes de uma carinhosa lembrança de que o mundo, e suas audiências, definitivamente não são mais os mesmos.
É difícil definir à quem “Cat Power Sings Dylan” deve apelar mais. Os fãs de Dylan, fervorosos como são, serão tentados a fazerem comparações que, inevitavelmente, serão favoráveis ao essencial documento de 1966. Tal preferência, embora esperada, não deve deixar de trazer doses generosas de elogios à reinterpretação (só se pode sonhar em saber o que Zimmerman dirá a respeito). A extensa base de fãs de Cat Power, por sua vez, talvez tenha menos facilidade em digerir um repertório que se distancia – pelo menos de forma conceitual – do mostrado em “You Are Free” (2006) ou “Moon Pix” (1998). Os mais atentos, no entanto, perceberão caminhos anteriormente já apontados nos dois discos de covers – uma paixão assumida – já lançados pela cantora (em 2000, 2008 – incluindo versões de “Paths of Victory” e “I Believe In You”, respectivamente – e 2022), e, com sorte, se sentirão compelidos a buscarem as gravações originais.
Mantendo arranjos fiéis ao documentado há quase 60 anos e buscando espaços para respirar em pontos chave, “The 1966 Royal Albert Hall Concert” trilha o caminho da celebração de um momento transgressor, ímpar e determinante para a história da música popular como um todo, fazendo jus a seu autor original ao mesmo tempo em que cria seu próprio espaço. Marshall não é Dylan, e ela, mais do que qualquer outro, demonstra saber disso. E, seja Dylan quem for, seu legado permanece sendo celebrado por mãos mais do que competentes. E Cat Power, corajosa e desafiadora ao desbravar algumas das mais longevas e transformadoras canções do último século, se mostra mais do que capaz (espelhando o próprio Zimmerman) em sua busca por algum tipo de verdade, seja ela qual for.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo
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