texto e vídeos por Bruno Capelas
Fotos de Adriely Ferreira, Bruno Carachesti, Ygor Negrão, Mariana Almeida
Saiba como foi o Dia 2
“Conjunto variado. Multiplicidade. Índice que leva em conta a abundância e a equitabilidade de uma comunidade”. Quem olhar no dicionário a definição para a palavra “diversidade” provavelmente encontrará esses significados de maneira rápida. Mas em livros alternativos, talvez se encontre também, lá entre as acepções, um termo curioso: “primeira noite do Se Rasgum 2023”. Em sua 18ª edição, o festival paraense celebrou em seu dia de estreia a diferença e a variedade existente não só em corpos, etnias, orientações sexuais, gêneros e crenças, mas também um caleidoscópio de sonoridades da música brasileira (e por que não, mundial?). Em uma época em que a mistura de ritmos se tornou até uma receita comum em lineups espalhados pelo país, o evento de Belém do Pará chama a atenção por ser dono de um liquidificador potente – e capaz de receber grandes shows, indo do pagodão baiano ao rap paulista, passando por pós-punk, groove setentista, reggae, funk carioca e claro, música paraense.
A bem da verdade, é importante que se diga: a noite da sexta-feira, 17 de novembro, realizada no Espaço Náutico Marine Club, próximo ao campus da Universidade Federal do Pará (UFPA), não foi a primeira noite do Se Rasgum. Entre os dias 14 e 17 de novembro, o evento reuniu debates e palestras sobre negócios da música na conferência Music on the Table, realizada no Palacete Faciola, em Usinas da Paz e no Teatro do Gasômetro. Além disso, duas noites de shows gratuitas rolaram na quarta e na quinta-feira – a primeira, no Espaço Apoena, teve a estreia da banda Buk, do organizador do festival Marcelo Damaso, ao lado do grupo paulistano Crime Caqui e de discotecagens do jornalista e Sr. Popload Lucio Ribeiro e Meta/Esquema. A reportagem do Scream & Yell, porém, só chegou à capital paraense na tarde da quinta-feira, bem a tempo de conferir o lançamento (em palco) do Circuito Amazônico de Festivais, no Espaço Cultural Pier das Onze Janelas.
Criado para unir oito festivais da região – Varadouro (AC), Calango (MT), Quebramar (AP), BR-135 (MA), Casarão (RO), Tomarrock (RR) e Até o Tucupi (AM) –, o Circuito teve no Pier das Onze Janelas uma demonstração rápida da articulação que pretende ter. A abertura foi com um coletivo de rappers mulheres da Amazônia, depois passando por Negah Ysa, uma das vencedoras das seletivas do Se Rasgum. Quem subiu a temperatura da noite, porém, foi a Calorosa, do Mato Grosso, que misturou o sabor amazônico com o pequi do cerrado em uma mistura envolvente de batuques e guitarras. Destaque também para o fato de que a banda fez sua auto-descrição antes de começar a tocar, em uma mostra de acessibilidade e respeito para o público deficiente visual.
Na sequência, a banda acreana Filomedusa (com o onipresente Saulo Olímpio na guitarra) fez um show roqueiro bonito, com participação da cantora local Ana Clara. Pra fechar, teve ainda o retorno do grupo indie paraense Cravo Carbono: há 15 anos sem tocar, a banda de enorme influência local fez um espetáculo poético, bastante apreciado pelos presentes, mas difícil de se compreender à queima-roupa – o baixo volume das guitarras de Pio Lobato durante boa parte da apresentação não ajudou.
Feitas as apresentações iniciais, vamos ao Espaço Náutico Marine Club. A previsão inicial era que os shows começassem às 19h na orla de Belém, mas os trabalhos só foram abertos pela cantora queer Enme Paixão ‘as 20h. Vinda de São Luís do Maranhão, a artista chamou a atenção pela produção. Além dela, havia quatro músicos e quatro dançarinos no palco, todos prontos para acompanhar seu som requebrante e variado – que passeia do pagodão baiano ao peso de temas que não passam longe do Planet Hemp, naquela mistura de rap intenso e guitarras pesadas que consagrou a banda carioca. Vale ficar de olho.
Na sequência, foi a chance de conferir o que anda fazendo um dos principais ícones da música paraense na última década: Keila, ex-vocalista da Gang do Eletro. Subindo ao palco Devassa (o principal do evento) um mês e meio após dar à luz, a cantora começou sua apresentação num clima mezzo nostalgia, mezzo novidade – seu último trabalho, o EP “Millennials” (2023), faz uma homenagem ao tecnobrega e à canção popular dos anos 2000, num clima bem Y2K não só nas canções, mas também nos figurinos e maquiagens. Acompanhada por um corpo de baile de seis dançarinos, com direito a trocas de roupas, e o DJ Tonny Brasil, ela entrou no palco a 100 km/h, a despeito do público ainda escasso e do palco gigantesco, mostrando deliciosas canções como “Cremosa” e “Sarrar”.
Pouco a pouco, porém, Keila foi misturando o tecnobrega com o funk carioca, até desembocar de vez no batidão com um medley de clássicos que incluiu “Atoladinha” e “Dança da Motinha”. Foi a deixa para que ela trouxesse pela mão sua parceira de apresentação, a veterana funkeira Deize Tigrona, que acelerou ainda mais o ritmo do rolê. Para começar, Deize mostrou “Monalisa”, climática faixa de seu último disco, “Foi Eu Que Fiz”, lançado no ano passado, com direito a coreografia envolvente com a cantora paraense.
Na sequência, todo mundo rebolou sem parar com o clássico “Injeção” e até se emocionou com a homenagem ao saudoso MC Marcinho em “Glamurosa”. Outro hit clássico de Deize, “Sadomasoquista”, botou fogo na pista do Se Rasgum, abrindo espaço para Keila fechar tudo em altíssima voltagem com “Galera da Laje”, da Gang do Eletro, deixando todo mundo pronto pra gritar bem alto: “endoida caralho!”. Uma demonstração de alto nível da maravilha que é a música eletrônica brasileira, preta e periférica. Alguém anotou a placa?
“Endoida caralho” foi também a primeira coisa em português que Echo Mars, a vocalista do grupo americano Thus Love, disse no palco do Se Rasgum. Vindos de Vermont (e escalados também para tocar no Balaclava Fest, em São Paulo), o grupo poderia ter sido engolido com seu pós-punk após os furacões Keila e Deize, mas não foi bem isso que aconteceu. Tocando no palco Coca-Cola (que intercalava apresentações com o Devassa), o grupo “não tomou conhecimento do adversário” e chegou com uma pegada muito forte. O som é pós-punk de cartilha, com várias passagens áridas e graves sacolejos, mas conquistou os presentes com o baixo pesado de Ally Juleen e a presença explosiva de Mars, que não parava quieta no palco com sua guitarra, envolvendo até mesmo quem não estivesse lá muito ligado – ainda que o público ali presente tivesse afinidade com a banda, com muitas camisetas pretas esperando pelo Terno Rei.
Ao final do show, aliás, um grupo de pelo menos 100 adolescentes e jovens adultos não largou seu lugar na frente do palco Coca-Cola, esperando a chegada de Ale Sater e seus companheiros de Balaclava. Enquanto isso, no Devassa, era a vez do rapper Rashid se apresentar. Mas bastou ele dar boa noite ao público belenense para a energia do palco cair, como se o cantor revivesse a maldição do Lollapalooza, festival no qual ele teve dois shows cancelados em 2019 e 2022. Após cerca de quarenta minutos de tentativas, nada feito – a reportagem do Scream & Yell aproveitou a oportunidade para se hidratar, comer uma coxinha com massa de macaxeira e conferir a feira criativa presente no Se Rasgum, com lojas de artesanato local, bijuterias, roupas e, claro discos. Depois desse breve intervalo, a programação do festival continuou mesmo com o Terno Rei, aumentando ainda mais os atrasos no Se Rasgum. Melhor para os adolescentes, que puderam ver o grupo paulistano em alta octanagem.
Após passar por Lollapalooza, Primavera Sound e The Town, além de uma turnê extensa pelo Brasil nos últimos dois anos (incluindo um show festejado no Casarão 2023, em Porto Velho), o Terno Rei parece ter chegado ao ponto de se tornar uma profecia autorealizada: por onde passa, a banda já chega com público cativo e apaixonado. Isso faz com que parte do desafio de subir ao palco numa cidade diferente a cada noite não exista, porque o público não só acolhe, mas também carrega a banda, cantando efusivamente todas as canções, num setlist que em Belém se centrou no repertório dos discos “Violeta” (2019) e “Gêmeos” (2023).
Sem o peso nas costas de precisar se provar constantemente, o Terno Rei desloca essa carga para um som mais dinâmico e intenso, com doses cavalares de paredes de guitarra. Mais que isso, é sensível a evolução da banda ao vivo nos últimos dois anos, trabalhando o carisma para corresponder ao calor do público do começo – com “Difícil”, “Sorte Ainda” e o hit “Yoko” – até o final, FM-apoteótico, com “Dias da Juventude”. Foram só 50 minutos, é verdade, mas dá para apostar um tacacá que teve gente saindo dizendo que foi o melhor show da vida, como é comum na Beatlemania que o grupo de Ale Sater vive hoje.
Enquanto isso, no terceiro palco do festival, o Dançum, a cantora Luê sofria com a reverberação do som do grupo paulista, buscando apresentar música típica paraense ao lado de Junior Soares e Ronaldo Silva, do Arraial do Pavulagem. Cerca de 250 pessoas acompanhavam o show, cujo repertório incluiu “Rodopiado”, de Ronaldo – aquela dos versos “veneno, veneno/veneno pinga da boca daquela cobra”, que viraram hit no TikTok e serviram de base para o duo Sofi Tukker fazer a recém-lançada “Veneno”. “Êta, globarbarização”, diria Tom Zé.
Em sua segunda tentativa de subir ao palco, Rashid foi mais bem-sucedido: ainda que os problemas técnicos tenham atrapalhado de forma breve o começo de sua apresentação, ele retornou ao palco Devassa para fazer um show correto, marcando sua primeira passagem por Belém acompanhado de DJ, percussão e backing vocal – além de muitas projeções insipiradas na cidade de São Paulo, como o edifício Banespa e os trens da CPTM.
Mais divertido, porém, foi acompanhar a paraibana Bixarte, que veio ao palco Dançum para fazer seu primeiro show na região Norte. “Só gosto de fazer show quando o buço fica molhadinho”, brincou a cantora, prestes a completar 23 anos e portando um figurino pronto para enfrentar o calor nortista. Em Belém, ela fez um espetáculo potente, misturando o melhor do brega-eletrônico que Pabllo Vittar ensinou o Sudeste a amar com raps contundentes e irônicos (“Preta Cara”), além de fazer uma defesa de seu povo e pedir uma salva de palmas para exu, “porque exu é bom o tempo todo”. Laroyê!
Depois, foi a vez da história da música brasileira subir ao palco, em duplo aniversário – enquanto o cantor Marcos Valle celebra 80 anos neste 2023, o grupo Azymuth está comemorando meio século de existência. Faça as contas: dá mais de um século de serviços bem prestados à MPB. Quem começou os trabalhos foi o Azymuth, que subiu ao palco com o membro fundador Alex Malheiros (baixo), ao lado de Kiko Continentino (teclados) e Renato Massa (bateria) – este último com a difícil função de substituir Ivan Conti, o Mamão, falecido em abril deste ano. Emendando grooves e viagens instrumentais, o trio esquentou os motores a tal ponto que até se permitiu um voo mais lento com o clássico “Linha do Horizonte”, antes de anunciar “o nosso padrinho, Marcos Valle”
Para começar, os quatro atacaram o tema instrumental que deu nome à banda, composto por Valle e Novelli no final dos anos 1960 para a novela “Véu de Noiva” (a primeira da Globo a ter trilha sonora original, contendo ainda temas como “Irene” e “Teletema”. Não é fraco não). Depois, Valle enveredou por seu repertório mais balançado, agradecendo a Marcelo D2 (“Mentira”), além das indefectíveis “Os Grilos”, “Não Tem Nada Não” (dedicada a João Donato) e “Estrelar” – que parece, com o tempo, ter se tornado maior que “Samba de Verão”. Já estava bom, mas pra fechar os quatro ainda enveredaram por quase dez minutos de groove e improviso, chapando a cabeça de quem estava no Se Rasgum. Bonito demais, uma verdadeira prova de longevidade.
Por falar em chapar a cabeça, a fumaça subiu por volta da 1h30 da manhã. Não era neblina, mas sim “a nação regueira” pronta para testemunhar outro veterano subindo ao palco do Se Rasgum: o jamaicano Max Romeo, de 78 anos. Anunciado como headliner da noite, Romeo botou todo mundo pra dançar, em um dos maiores públicos cativos do festival, a despeito das duas horas de atraso com que subiu ao palco.
A avançada noite ainda teve Felipe Cordeiro e sua guitarra maquinada. Feliz de estar no festival que o ajudou a se projetar nacionalmente, Cordeiro respondeu com hits (“Problema Seu”, numa tour de force de cinco minutos de guitarrada) e até música nova, “Amazon Money”, em que brinca/denuncia o interesse corporativo-mercantilista na Amazônia, em meio ao momento em que bilhões em financiamento são anunciados para Belém receber a conferência do clima COP-30 em 2025.
A noite ainda prometia mais, mas os pés cansados e o sono que bateu após uma porção de arroz paraense (feito no caldo de tucupi, com jambu e camarão seco) condenaram a reportagem do Scream & Yell à volta para o hotel antes das passagens da premiada no Grammy Latino Xênia França e do grupo Àttooxxá, acompanhado de Jadsa, Afrocidade e Naieme. Amanhã, depois de uma dose cavalar de sorvete de cupuaçu, a gente promete que tem mais – com direito a Mukeka di Rato, Silvia Machete, Luisa e os Alquimistas, Josyara, Anelis Assumpção e Planet Hemp. Endoida, caralho.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010. A foto que abre o texto e de Adriely Ferreira.