texto especial de Davi Caro
Talvez nenhum arquétipo seja tão perene na história da cultura pop quanto o do arqui-inimigo. Seja no cinema, na literatura, no teatro ou nos quadrinhos, poucas ideias são tão sedutoras quanto a de um personagem representar a antítese de outro, e dos conflitos que tal oposição é capaz de gerar. E, mesmo dentro da imensidão do imaginário popular, poucos antagonistas são tão onipresentes e facilmente reconhecíveis quanto o Coringa.
O palhaço do crime, que fez sua estreia nas HQs em 1940 – um ano após a primeira aparição de seu nêmesis, o Batman – foi criado pelo trio Bob Kane, Bill Finger e Jerry Robinson, que conceberam a identidade visual do criminoso usando como referência o personagem vivido por Conrad Veidt no filme impressionista “O Homem Que Ri”, de 1928. Apesar de muitas revisões feitas em seu visual e suas principais características desde sua origem, porém, uma coisa suscitou atenção e intriga por meio dos fãs por décadas: ainda que inescapável nas páginas dos quadrinhos (e, mais tarde, nas TVs, na esteira da série iniciada em 1966 que contava com a antológica interpretação de Cesar Romero) e mesmo dividindo dois de seus três criadores com o Homem Morcego, faltava ao Palhaço do Crime algo que sobrava ao seu grande inimigo: uma história de origem concreta.
À exceção, talvez, do Superman, o Batman tem uma das mais conhecidas e reproduzidas gêneses de todos os tempos. Para cada dez fãs capazes de se lembrarem do colar de pérolas de Martha Wayne se desfazendo e do jovem Bruce de joelhos em um beco diante dos pais mortos, talvez um tivesse a mínima ideia da origem do Coringa. E assim foi, por muitos anos, até que um britânico, barbudo, anarquista e praticante de bruxaria tomasse para si a tarefa de determinar como, onde, e por que o sorridente criminoso se tornou o que era, e é. O resultado final, “A Piada Mortal” (“Batman: The Killing Joke” no original), não apenas se tornou um marco na carreira de Alan Moore (roteirista) e Brian Bolland (artista), mas também na história dos quadrinhos como um todo: mais do que traçar uma antológica origem para uma figura simultaneamente adorada e assustadora, os dois conduziram um estudo de caso em forma de graphic novel sobre os limites da insanidade e os mais perturbadores contornos da psique humana. Trinta e cinco anos depois de seu lançamento, trata-se de uma das obras mais influentes da história da nona arte.
Moore, é claro, já tinha status de lenda em 1988. Após anos escrevendo para publicações como a 2000 AD e Warrior (na qual resgatou e revitalizou o antigo herói Miracleman), o autor foi responsável por reformular o personagem do Monstro do Pântano em histórias que se aproximavam muito mais do terror, e que simbolizaram seu primeiro trabalho junto a DC Comics. Histórias memoráveis com outros baluartes da editora, como o Superman e o Lanterna Verde, porém, serviram como um prelúdio para aquele que seria seu feito mais renomado: com “Watchmen” (1986), Moore mudaria o curso das narrativas super-heróicas dentro e fora dos quadrinhos, empregando níveis de sátira e reflexões acerca da falibilidade de seres super-poderosos (ou não) e gerando uma série de 12 edições que se converteria em um fenômeno inter-geracional, trazendo personagens novos e instantaneamente reconhecíveis e construindo um universo fascinantemente próximo do mundo real, para o bem e para o mal. Dois anos depois, o escritor utilizaria seus talentos para trazer novos tons de realismo e drama não a uma nova figura, mas sim a um dos maiores símbolos dos quadrinhos modernos. E ele não estaria sozinho: Brian Bolland, convocado para transformar as angulares narrativas de Alan em arte, também era oriundo de revistas e histórias de horror e ficção científica na Inglaterra, e seus traços hiper-realistas cairiam como uma luva sobre uma narrativa que fazia de seu aterrorizante protagonista uma figura com a qual, pasme, o leitor poderia até se identificar.
O que era para ser uma rotineira visita ao Asilo Arkham se converte em um pesadelo familiar quando o Batman descobre que o Coringa, mais uma vez, fugiu. O gângster, porém, tem um plano especial: desta vez, ele provará ao vigilante de Gotham City que os dois, afinal, não são tão diferentes assim. Para o palhaço, basta um dia ruim para que o mais são dos cidadãos desabe em direção ao abismo da loucura. Ao fazer uma visita ao Comissário Gordon, o criminoso, com a ajuda de seus capangas, fere a filha do policial, Barbara (que também atuava como a heroína Batgirl) com um tiro que fere a coluna da jovem e a paralisa. Após espancar e sequestrar o veterano Gordon, o Coringa despe a moça baleada e, de modo cruel, tira diversas fotos de seu sofrimento, com as quais pretende enlouquecer o Comissário e, assim, mostrar ao mundo, e ao Batman, que mesmo o mais correto ser humano precisa apenas de um empurrãozinho para ceder a insanidade. O que se segue é uma corrida contra o tempo para que Batman consiga derrotar seu mais antigo inimigo e salvar um de seus mais valorosos aliados.
Em paralelo a isso, Moore se utiliza de inovadores elementos narrativos para contar a origem do Coringa. Um engenheiro sem nome, ele deixa seu emprego em uma empresa química para se dedicar a carreira de comediante, ainda que pese o fato de ter uma esposa grávida e uma situação financeira crítica. Quando surge a oportunidade de conduzir um assalto, junto a um grupo de criminosos, a uma fábrica vizinha àquela onde trabalhava, o homem se vê mais próximo de poder proporcionar uma vida mais tranquila a sua família; um acidente doméstico fatal que vitimiza sua esposa o faz repensar sua escolha, mas, pressionado pelos ladrões, ele segue em frente com o plano, apenas para, disfarçado como o criminoso Capuz Vermelho, ser surpreendido pela polícia e pelo Batman. Após uma perseguição, o homem, desesperado, se joga em um córrego de despejos da fábrica onde era empregado. Emergindo desfigurado, com o rosto branco e um permanente sorriso, o homem se deixa levar pelo trauma da perda e, assim, se transforma no lendário e temido maníaco homicida.
Falar de “A Piada Mortal” é, primeiramente, fazer referência à primorosa arte de Brian Bolland. O artista, mais conhecido por suas deslumbrantes capas, vê na perturbadora história criada por Moore uma oportunidade de expandir seu rico estilo à construção de todo um universo, e seu senso de iluminação e realismo extremo fluem de modo brilhante pelas passagens mais tensas da obra – a passagem que retrata o surgimento do vilão, em especial, é até hoje digna de calafrios. Mas é claro que o destaque fica para a brilhante roteirização de Alan Moore. Fazendo uso de técnicas de espelhamento como fio condutor para a inserção de flashbacks, e empregando alternância entre passado e futuro de forma contextualmente fluida e consistente ao longo da história, o escritor segue um caminho não muito diferente (guardadas, claro, as devidas proporções) daquele que desenvolveu para aprofundar os personagens introduzidos em “Watchmen”. À medida que a situação no presente da história escala a níveis desesperadores, Moore orienta o leitor por situações carregadas em diálogos que, ainda que não excessivos, trazem gravidade e peso ao trabalho – destaque para o melancólico e tenebroso encontro de Batman com a já vitimada Barbara no hospital.
Também imprescindível, em se tratando da graphic novel, é falar sobre seu intrigante e dúbio final. A ambiguidade do clímax, no qual, após capturado, o Coringa, num lapso momentâneo de sanidade, recusa a proposição do herói de poder ajudá-lo, numa tentativa de evitar o fato de que o longo conflito dos dois somente terminaria com uma morte de algum lado. Considerando-se uma causa perdida, o psicopata passa a contar uma piada, apenas para se ver rindo junto com seu arqui-rival, num final ambíguo que, ao longo dos anos, passou a ser entendido por cada vez mais pessoas como uma representação do Batman cruzando seu limite de não tirar uma vida, e estrangulando o Coringa. Tal interpretação tomou mais força na grande mídia após ter sido mencionada e defendida pelo também escritor de quadrinhos Grant Morrison no podcast de Kevin Smith, já em 2013. O fato é que, apesar de nunca confirmada por nenhum de seus dois autores, tal visão do ponto final na história amplifica e aprofunda as dimensões da narrativa e se firma como um dos pontos chave da história moderna do Batman e de seu nêmesis.
Tal interpretação, porém, exibe também uma possível contradição em termos de continuidade: a paralisia derivada do ataque a Barbara Gordon teria impacto direto na linha editorial das revistas da Bat-Família, onde, impossibilitada de seguir combatendo o crime, a jovem passaria a operar, de sua cadeira de rodas, um sistema de suporte aos heróis relacionados com o Homem-Morcego, assumindo a identidade de Oráculo. Desta forma, portanto, “A Piada Mortal” seria parte do cânone da DC, ponto fundamental na cronologia adotada principalmente a partir dos anos 90. A morte do Coringa, porém, a colocaria à parte das várias histórias escritas a partir da graphic novel, tendo em vista que o vilão permanece vivo nas revistas subsequentes. Assim, a obra se encaixaria num ponto entre a cronologia “oficial” da editora e um evento isolado, ocorrendo em uma realidade alternativa – chamada então pela DC de “Elseworlds”, ou “ Túnel do Tempo”, no Brasil.
Independente do status da HQ junto ao universo regular do Batman, é inegável o apelo que “A Piada Mortal” vem exercendo desde sua publicação original: um sucesso imediato, a história seria fonte de inspiração para a concepção do Coringa em “Batman” (1989), com o diretor Tim Burton se declarando fã do trabalho de Moore e Bolland. Certos elementos seriam também trazidos a tona nas representações tanto de Heath Ledger (em “O Cavaleiro das Trevas”, de Christopher Nolan, 2008 – pelo qual o ator ganhou um Oscar póstumo) quanto de Joaquin Phoenix (no aclamado, embora divisivo “Coringa”, de 2019, com direção de Todd Phillips). “A Piada Mortal” foi finalmente adaptada em uma criticada e controversa animação produzida pela Warner em 2016, no qual uma pouco-inspirada trama completamente original foi enxertada, e tomou conta da primeira parte do filme sem motivo aparente, inclusive chocando muitas pessoas devido a determinadas sequências inesperadas (trailer abaixo). Além do cinema, porém, o quadrinho também foi de direta inspiração para o recente arco “Três Coringas”, de 2020, no qual Bruce Wayne, uma reabilitada Barbara Gordon e Jason Todd (o segundo Robin, assassinado pelo Coringa no arco “Uma Morte na Família”, de 1989, mais tarde ressuscitado e trazido de volta sob a identidade do agora anti-herói Capuz Vermelho) se confrontam com o Coringa, que aparenta ter sido não um, mas três indivíduos diferentes o tempo todo – um deles decalcado claramente no desenvolvido por Alan Moore e Brian Bolland.
Seja como for, “A Piada Mortal” segue sendo a história de origem definitiva do Coringa, referência máxima de intepretação do personagem em todo seu sadismo, e ao mesmo tempo o melhor e mais complexo retrato de sua complicada relação com seu eterno algoz encapuzado. Desde sua publicação, continua sendo reimpressa e redescoberta por fãs de todas as idades, e ainda é referenciada como uma das pedras angulares da Era Moderna dos quadrinhos. Dali a pouco tempo, Moore deixaria de colaborar com a DC, numa relação conturbada que o manteve distante das várias adaptações de suas obras para qualquer mídia – incluindo “Watchmen” e “A Piada Mortal”. Já Bolland seguiria desenhando capas maravilhosas e trabalhando em várias edições do então recém-criado selo Vertigo. As obras posteriores dos dois, porém, sempre serão interligadas por uma de suas mais perturbadoras e maravilhosas obras, no retrato definitivo de um dos mais controversos, familiares, intrigantes, tenebrosos e trágicos personagens da Nona Arte, seja lá como foi que tudo começou. Afinal, como o próprio admite em um dos momentos chave da trama: “Às vezes eu me lembro de uma forma, às vezes de outra…se eu for ter um passado, prefiro que seja de múltipla escolha!”.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo