texto por Gabriel Pinheiro
No final da década de 1930, um curioso grupo de pessoas convive numa pequena cidade no sul dos Estados Unidos. Com o mundo à beira de adentrar sua segunda grande guerra, esses personagens seguem suas vidas, enfrentando os próprios conflitos e demônios internos. Nessa comunidade, dependente, sobretudo, dos moinhos de algodão, a pobreza é a principal marca no horizonte daqueles que ali residem. “O coração é um caçador solitário” (“The Heart Is a Lonely Hunter” no original) é um romance de Carson McCullers, lançado pela Carambaia com tradução de Rosaura Eichenberg.
Nessa cidade, um cidadão se destaca. Se, a princípio, esse destaque se dá por uma característica física, descobrimos neste homem uma espécie de magnetismo que atrai com cada vez mais força aqueles que o circulam. Singer é um trabalhador surdo. Apesar da ausência da audição, ele se revela um atento ouvinte para um inusitado conjunto de personagens, que passam a compartilhar com ele questões profundamente íntimas, seja no interior de seu quarto na pensão onde reside, pelas ruas da pequena comunidade ou na mesa de um café. Mick, uma jovem talentosa e inquieta que vive o turbilhão de sentimentos e hormônios que marcam a adolescência; Copeland, um médico negro dedicado aos cuidados e ao anseio da emancipação de sua comunidade; Blount, um forasteiro com uma grave relação com o álcool que carrega em si ideais comunistas e busca maneiras de comunicá-los; e, por fim, Biff, o solitário dono de um café por onde esses personagens, por diversos momentos, circulam.
Singer é um personagem tão complexo e interessante, daqueles que marcam nossa experiência de leitura. Enquanto se abre ao desconhecido daqueles personagens com que convive, estes pouco ou nada sabem sobre sua história e uma série de acontecimentos que o levaram até ali, até aquele momento específico na vida de cada um.
Carson McCullers cria um mosaico de personagens fortemente vívidos, construindo uma América dolorosamente real em suas carências e contradições. Estamos no final dos anos 1930, a segregação racial é uma realidade brutal e oficial nos Estados Unidos. Um dos pontos que salta aos olhos no romance, observado pela própria crítica na época de seu lançamento original, é a profunda humanidade com que ela constrói os personagens negros. Carson era, então, uma jovem escritora branca de apenas 23 anos quando lançou o romance em 1940 – a lei de Direitos Civis nos EUA, que decrataria o fim da segregação racial no país, só seria assinada por Lyndon B. Johnson em 1964. Pensando na época em que fora escrito, “O coração é um caçador solitário” ainda abraça algumas temáticas de vanguarda, como questões acerca da existência queer e da sexualidade.
Talvez a característica que mais cativa num clássico literário seja o olhar atento de seu autor ou autora às questões humanas. Questões essas que podem evoluir e ganhar novas camadas de sentido e interpretação ao longo do tempo, mas que sempre estiveram e sempre estarão aqui nos acompanhando. O romance de Carson McCullers é um exemplo perfeito dessa questão. O sentimento da solidão, mesmo quando estamos rodeados por outras pessoas; a incomunicabilidade; e os medos e anseios quanto ao que está por vir são questões tão intrínsecas à humanidade e permeiam todo o livro, num olhar cuidadoso e aguçado de uma autora singular. “O coração é um caçador solitário” é uma grandiosa jornada dentro dos corações de seus protagonistas – ou como diz a garota Mick, o “quarto interior” de cada um deles. Nestes territórios aparentemente tão íntimos, ouvimos o eco de nossos próprios corações. Um clássico absoluto.
“The Heart Is a Lonely Hunter” ganhou uma adaptação para o cinema em 1968
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.