texto por Luciano Ferreira
Na segunda metade da década de 1980, o Depeche Mode viu sua carreira deslanchar no mundo todo com o lançamento de álbuns que marcaram uma guinada musical ao mesmo tempo em que a banda passava por uma mudança visual, com o início da parceria com o fotógrafo Anton Cobijn, e direcionava os temas tratados nas letras para assuntos mais instigantes.
O início dessa fase se deu com o sombrio “Black Celebration” (1986), prosseguiu no poder radiofônico de algumas canções de “Music for the Masses” (1987), que também reservava momentos experimentais, e culminou no aclamado “Violator” (1990), álbum de tons soturnos que soa como uma mescla da sonoridade de seus dois antecessores, com o grupo se permitindo aprofundar no uso de elementos que viriam a se tornar constantes em sua música dali em diante, incluindo o uso da guitarra, que já havia dado as caras anteriormente em “Never Let me Down”, segundo single do disco anterior.
A “Music For the Masses Tour”, que começou em outubro de 1987 e terminou em junho de 1988 com um show sold out para mais de 60 mil pessoas na Califórnia, colocou a banda num patamar que seguiria se elevando a cada novo lançamento. O documentário “101”, dirigido por D. A. Pennebaker – o homem que filmou Bob Dylan em “Dont Look Back” (1967), David Bowie em “Ziggy Stardust and the Spiders from Mars” (1979) e Jimi Hendrix em “Jimi Plays Monterey” (1986), entre outrios -, lançado em 1989 e que mostra a turnê do Depeche nos EUA, dá uma dimensão da enormidade que a banda havia chegado, com sua popularidade se tornando gigantesca.
Com os novos enfoques musicais que o grupo explorou em “Violator”, surgia uma nova “fórmula”. Ou melhor, um novo universo de possibilidades para o Depeche Mode, cujo nome estava associado desde o seu início, de forma umbilical, ao que ficou conhecido na primeira metade dos anos 80 como synthpop – estilo que prima pela vibe totalmente eletrônica, impulsionada por camadas de teclados, sintetizadores, batidas eletrônicas e elementos de música Industrial -, do qual eram ícones. O êxito alcançado com “Violator” foi enorme, coroando o início da parceria com o produtor Flood e também com o fotógrafo Anton Corbijn, que apresentava a banda em imagens sombrias, quase que exclusivamente em preto e branco.
Esse contexto criou uma pressão gigantesca sobre a banda para o sucessor de “Violator”, principalmente em Martin L. Gore, o responsável pelas composições desde a saída de Vince Clark lá nos primórdios do grupo. Isso influenciou negativamente o processo criativo de Gore e amplificou as tensões internas. Mas era apenas o começo dos problemas que envolveriam as gravações de “Songs of Faith and Devotion” (1993).
Para as primeiras gravações, tomando como exemplo algo feito com resultados positivos pelo U2, Flood sugeriu que a banda se enfurnasse numa casa em Madrid onde todos passariam a morar/gravar por algumas semanas. A ideia que parecia promissora na teoria, na prática se mostrou desastrosa, criando uma tensão enorme entre Alan Wilder e Martin Gore. Essa nova dinâmica de gravação acabou se tornando um verdadeiro inferno para todos os envolvidos. Sem um trabalho de pré-produção, como eles costumavam fazer antes das gravações dos álbuns, o grupo se viu preso num ambiente sufocante, marcado pela falta direcionamento, o que, inclusive, minou parte da confiança dos integrantes.
Em muitos momentos a rotina no estúdio consistia de jams, com Gore tocando guitarra, Wilder no baixo e alguém operando uma drum machine ou algo do tipo, enquanto outra tocava pandeiro.
Ao mesmo tempo, Dave Gahan, que na época havia fixado residência em Los Angeles, mostrava-se extremamente influenciado pelo contato com o grunge e a sonoridade de bandas como Jane’s Addiction e Soundgarden. Gahan queria que o Depeche fizesse um álbum de rock, diferente do que o restante da banda tinha em mente. Nesse período, Gahan tinha se viciado em heroína, mudado completamente seu visual (deixando a barba e cabelo crescerem) e perdido bastante peso, chegando a pesar apenas 55 quilos. Sua rotina durante boa parte do período de gravações em Madrid consistia em trancar-se em seu quarto, enquanto Wilder e Gore travavam discussões ferrenhas, situação que levou Flood a testar seus limites, e a chorar com toda a situação em que o grupo estava envolvido (esse seria seu último trabalho com a banda). Ao abandonar tudo que deu certo em “Violator”, banda e produtor pareciam num caminho sem saída.
Se essas primeiras gravações serviram para algo, foi mostrar o quão equivocado foi todo o processo de gravação do disco. Gore diria, posteriormente, que “Songs of Faith and Devotion” foi o álbum mais difícil de fazer até então e que, apesar de tudo, era um dos seus favoritos.
O ambiente tóxico das gravações deixou uma marca negativa indelével em Wilder, que decidiu que não permaneceria mais na banda, embora só fosse deixar grupo dois anos depois, em 1995. Para o multi-instrumentista, esse período serviu de aprendizado, um alerta para que nunca esquecesse daqueles momentos, considerando-o o pior pelo qual já havia passado na banda, e uma grande perda de tempo. De todo modo, as dez longas e tortuosas semanas em Madrid renderam a gravação de três canções, “Walking in my Shoes” dentre elas.
No documentário “We Were Going to Live Together and It Was Going to be Wonderful”, lançado em DVD, em 2006, na versão Collector’s Edition do álbum, banda, produtor, empresário, jornalistas e técnicos envolvidos no processo contam sobre o terror que foram as gravações. O próprio título é uma frase dita por Alan Wilder em uma de suas falas, e é uma completa ironia: ‘Vamos morar juntos e será maravilhoso’.
O processo de gravação do álbum só começaria a funcionar quando a banda voltou para a rotina normal de estúdio, já no Chateau du Pape, em Hamburgo, na Alemanha. Apesar de todo o pesadelo inicial, ocasionado por essa série de mudanças, “Songs of Faith and Devotion” redefiniu a trajetória da banda e se tornou, na época, o álbum mais bem sucedido do Depeche Mode, atingindo o topo das paradas em diversos países simultaneamente, algo até então inédito para o grupo.
Porém, apesar da aclamação do disco, a relação do quarteto estava desgastada, e corroía cada um dos integrantes, cada um a seu modo, com rumores alardeando que a banda iria se separar. A turnê de divulgação do álbum, a gigantesca (e cara) “Devotional Tour”, seguida pela “Exotic Tour/Summer Tour”, a mais extensa feita pelos ingleses – durou 14 meses somando mais de 150 apresentações -, acabou por esfacelar o grupo física e psicologicamente, com Gore se entregando ao vício em álcool, Fletcher sendo afastado de vários shows (substituído por Daryl Bamonte), Gahan cada vez mais se afundando no vício e Wilder, no íntimo, esperando o momento de deixar a banda.
Como todo esse cenário caótico pintado, ainda assim não há como não pensar que, de muitas formas, Gahan conseguiu seu intento inicial, já que, até ali, esse era o disco mais rock do Depeche Mode, com o uso de riffs distorcidos de guitarras em algumas faixas (“I Feel You”, “Rush”), balanço funk em outras (“Mercy in You”), uso da bateria orgânica se misturando ao lado eletrônico (que pode ser conferido no excelente “Devotional”), corais gospel e ritmos de blues (“Condemnation”, “Get Right With Me”), algo que os fãs mais puristas olharam com certa desconfiança, mas que permitiu ao grupo expandir ainda mais seu público, não só pela densidade das canções como pelos temas tratados nas letras: culpa, dúvida, dor, prazer, religião.
O álbum renderia hits poderosos e atemporais como “Walking in my Shoes” (para alguns a melhor canção do grupo), “In Your Room”, “Judas” e “Condemnation”, faixa que impactou Gahan de uma forma tão positiva que ele lutou (e conseguiu) que Gore cedesse para ele cantar, e o resultado é realmente sublime.
“Songs of Faith and Devotion” foi lançado no dia 22 de março de 1993, alcançando 30 anos em 2023. Suas referências seriam mantidas na música do Depeche Mode em álbuns posteriores, e sua influência, que atingiria artistas ao redor do mundo, pode ser resumida na declaração do músico inglês Gary Numan, contemporâneo dos rapazes de Basildon: “Eu senti aquela música [Walking in My Shoes] profundamente e ela me atraiu para o resto do álbum que, junto com algumas outras, me ajudou a reformular o tipo de música que eu estava fazendo e assim me levou à música que fiz nos últimos 20 anos”. Um clássico que você precisa ouvir.
– Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.
Para mim, SOFAD é a grande obra do Depeche Mode, apesar de todo esse processo de quase autodestruição e a saída de Alan Wilder. É um álbum sublime do início ao fim!