texto de Davi Caro
Ao longo da história, existem muitos que se referem ao conceito de exorcismo muito mais como uma bênção do que como uma punição. A mitificada ritualização da expulsão de espíritos malignos de um corpo inocente é, há muito mais tempo do que se é capaz de recordar, motivo de intriga e curiosidade que abarca de devotos fervorosos a céticos – as inúmeras controvérsias e supostos relatos de ritos fracassados e trágicos vem povoando o imaginário popular por décadas. E o fascínio gerado por um passado tão remoto (e tão controverso) da história da civilização deve perdurar por muito mais tempo.
Talvez não seja possível atribuir o crescimento da atenção junto a este tópico exclusivamente ao lançamento de “O Exorcista”, em 1973. A produção, dirigida por William Friedkin (então egresso de seu trabalho no clássico “Operação França”, lançado dois anos antes) e adaptada do livro de William Peter Blatty, foi recebida pela grande mídia como uma bomba catalisadora de tensos debates e embates envolvendo acusações de profanidade e inúmeros espectadores abalados ao saírem da sala de cinema. À época de suas primeiras exibições, o filme, que contava com a ainda muito jovem Linda Blair no papel da protagonista Regan McNeil foi quase tão debatido quanto assistido, e acabou se convertendo em um dos maiores clássicos da história do cinema de horror, figurando inclusive em inúmeras listas de melhores longa-metragens de todos os tempos.
É quase impossível encontrar alguém minimamente curioso a respeito de cinema que não conheça a história de “O Exorcista”, mas vamos lá: a protagonista, vivida por Blair, passa a apresentar comportamentos estranhos e atípicos de uma pessoa de sua idade, e sua mãe, Chris (Ellen Burnstyn) começa a perceber estranhos fenômenos que coincidem com essas bruscas mudanças de atitude. Depois de uma série de exames feitos com médicos e especialistas, e mais incidentes perturbadores, a mãe de Regan decide procurar a ajuda da Igreja, e acaba tomando contato com o padre jesuíta e psiquiatra Damien Karras (Jason Miller), que se mostra cético a respeito da necessidade de um exorcismo, ideia que considera estapafúrdia. Isso é, até se deparar com a menina McNeil coberta de pústulas e feridas, cuspindo gosma e vociferando obscenidades. Traumatizado com a morte recente da mãe, que o aparente demônio – posteriormente denominado Pazuzu – usa para desestabilizar o religioso, vendo a situação se deteriorar e Chris à beira da insanidade, Karras busca ajuda nas mãos experientes do também padre Lankaster Merrin (o saudoso Max Von Sydow), que não apenas tem experiência com o sobrenatural, mas se mostra ser um antigo conhecido da entidade que possuiu Regan. Tudo isso acontece bem debaixo do nariz do tenente William Kinderman (Lee J. Cobb), que acaba criando uma relação de amizade com Damien e não consegue deixar de lado a sensação de que algo muito estranho está acontecendo.
Como se a história não fosse chocante o suficiente, os até hoje citados efeitos práticos do filme, que podem se mostrar datados e não chamar muito a atenção dos afoitos por CGI, conseguem até os dias atuais chocar em sua inovação. Momentos pontuais da história, como o engatinhar de costas escada abaixo, ou o pescoço giratório, ou até mesmo o já citado líquido verde foram incorporados à cultura de massas ao ponto de serem referenciados em inúmeras produções que, seguindo o mesmo tipo de efeito ou mesmo perseguindo o mesmo tópico, não conseguem escapar da sombra de suas inovações. E isso sem falar nas bruscas e amedrontadoras aparições do personagem Captain Howdy, numa referência à forma como Megan percebe a criatura que a dominou. E, por baixo de tantas passagens icônicas, está um enredo que atesta a qualidade do material original, fiel que é as dramáticas e assombrosas descrições de Peter Blatty.
Analisar o contexto no qual “O Exorcista” chegou ao mundo é determinante para entender seu apelo tão longevo, assim como colocar em perspectiva as inúmeras tentativas de realizar uma sequência que estivesse a altura do original (mais a respeito disso à frente). O filme é um exemplo primoroso da nova onda do horror, que havia dominado o consciente coletivo no lugar de figuras como o monstro de Frankenstein ou as várias encarnações do conde Drácula. Num processo iniciado pelo também cultuado “O Bebê de Rosemary” (de Roman Polanski, 1968), o horror nas telas começou a tratar de questões mais mundanas e que ressoavam como uma bomba em meio aos dramáticos acontecimentos da época: num mundo ainda pré-Watergate, mas que já testemunhava os horrores da Guerra do Vietnã, as visões de família deturpadas e corrompidas por entidades das trevas e praticantes de feitiçaria obscura acentuavam o senso de falência que tomava conta da sociedade estadunidense de então. Tal identificação das questões atuais como sendo um pano de fundo para tenebrosas cenas e antagonistas macabros acabou por encontrar uma conclusão lógica com o celebrado “O Massacre da Serra Elétrica” (1974, dirigido por Tobe Hooper), que escancarava a desarticulação do American Way of Life, intoxicado pelo fracasso civilizatório que relegava modelos de vida ultrapassados às margens da lei e da insanidade.
Outro ponto importante a ser ressaltado para que se compreenda “O Exorcista” como fenômeno, embora pareça mais distante e menos relevante, tem a ver com a conturbada produção do longa, onde incêndios misteriosos consumiram parte do set de filmagens, membros do elenco se feriram durante as gravações e pessoas próximas à equipe faleceram durante a produção – sem contar custos exorbitantes para a realização das filmagens, que triplicaram à medida que o tempo demandado se estendia. Todos estes fatores contribuíram para que se difundisse a ideia de uma espécie de maldição, numa espécie de prelúdio à maré de tragédia e mistério que cercaria “Poltergeist” (de Steven Spielberg e do já citado Tobe Hooper), quase dez anos depois. Hoje em dia, é inútil tentar dissociar “O Exorcista” da controvérsia que o acompanhou ao chegar aos olhos do público pela primeira vez, e beira a nostalgia pensar em uma época em que uma produção desta magnitude poderia ter algo como “segredos ocultos”, do tipo que anabolizam o potencial comercial de algo que teria tudo para ser, até então, atrativo somente aos mais interessados (ou os menos sensíveis).
Não se pode deixar de reconhecer que, de lá para cá, a subsequente franquia que expande o universo do livro de Peter Blatty parece ter seguido o mesmo caminho percorrido por muitas das mesmas séries intermináveis de filmes que procuraram ocupar seu legado, ou ao menos canalizar um pouco de sua amedrontadora atmosfera: uma primeira sequência, “O Exorcista II: O Herege”, chegou aos cinemas em 1978 e foi massacrada por público e crítica, calcada em tentativas de surfar o hype criado pelo original e se perdendo em uma trama incoerente com pouquíssimas resoluções. Já em 1990, “O Exorcista III” adaptou a sequência escrita por William Peter Blatty, “Legião”, e contou com a direção do próprio autor; embora malcompreendido, essa segunda sequência (que tem foco no personagem do Tenente Kinderman) vêm sendo positivamente reavaliada e atingiu o status de cult, embora não chegue perto do original. Duas prequels, “O Início” e “Domínio” (de 2004 e 2005, respectivamente) tentaram expandir a mitologia dos filmes dando foco ao padre Merrin, em seus primeiros encontros com Pazuzu, e falharam de forma retumbante. Uma série homônima, produzida pela Fox entre 2016 e 2017 e cancelada após duas temporadas como uma sequência direta do filme original, foi cercada de grandes expectativas e não fez jus a elas.
Mesmo que todas as produções desde 1973 tivessem roteiros impecáveis, é improvável que chegassem aos pés da leitura de Friedkin (que faleceu em agosto). Cinquenta anos após o filme original, uma nova sequência, “O Exorcista: O Devoto”, tem seu lançamento programado para outubro (com direção de David Gordon Green, responsável pelas sequências-legado da franquia Halloween), e promete conexões diretas com o primeiro longa enquanto parece ignorar as outras investidas da franquia, apostando pesado no retorno de Ellen Burstyn ao papel de Chris McNeil. Seja como for, é difícil imaginar que o novo filme seja capaz de cativar audiências tanto quanto o enredo original foi em sua época. Cinco décadas depois, a fascinação por “O Exorcista” só faz crescer – e basta escutar as primeiras notas da memorável “Tubular Bells”, de Mike Oldfield, para que a imaginação voe e os terrores do sobrenatural tomem conta do espectador, seja ele experiente ou de primeira viagem. Nada é capaz de cativar tanto quanto o medo, e mesmo 50 anos não seriam capazes de apagar a bruxuleante luz de um dos maiores clássicos do cinema moderno.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo