texto por Leonardo Vinhas
fotos por Cesar Gallego
Bike e Tagore se apresentaram no Centro da Terra, um espaço cultural na zona oeste de São Paulo, no dia 19 de setembro. O show foi concebido como um passeio pela psicodelia brasileira de vários períodos, com o apropriado título de “MPB ou LSD?”. Embora ambos os artistas tenham um longo repertório próprio e sejam dignos representantes da boa chapaceira musical atual, o show-tributo não é deslocado: o cenário indie vem ganhando cada vez mais nomes que se apresentam como “psicodélicos”, mas a maioria se divide entre emular arranjos e estruturas do Tame Impala ou sugar até a última gota do caldo lisérgico dos anos 70.
No primeiro caso, praticamente ninguém ultrapassa a fronteira do pastiche, e no segundo, o mais comum é vermos bandas que fazem canções longas e mal resolvidas mascaradas sob o rótulo da psicodelia. Não é o caso da Bike. Influenciados na mesma medida por Walter Franco e pelo kraut rock, a Bike sabe que emular gringos ou vampirizar o passado pode até trazer algum prazer pessoal, mas buscam (e entregam) mais que isso para que sua música tenha corpo e identidade. Esse é um caminho que eles vêm construindo desde 2015, e que se encontra muitíssimo bem resolvido em seu último álbum, “Arte Bruta”, um dos melhores lançamentos nacionais de 2023 (conheça ele aqui faixa a faixa).
Já o pernambucano Tagore, contemporâneo do quarteto paulista, começou fortemente influenciado pelo udigrudi pernambucano. Fez um primeiro álbum excelente, “Movido a Vapor” (2014), que veio acompanhado de excelentes shows, mas se perdeu na estética kevinparkeana em “Pineal” (2018). Conseguiu, porém, unir os dois mundos com sucesso no ótimo “Maya” (2021). Parecia um nome adequado para estar ao lado do Bike nessa empreitada. Mas a prática nem sempre reflete a lógica do papel.
O show começa com a gravação de “Louvado Seja Deus”, sandice sem graça de Arnaldo Baptista, que abre caminhos para uma jam com temas de Tagore. De cara, soa um problema que permeia todo o show: a voz do pernambucano vem muito baixa, soterrada sob os instrumentos, de modo a tornar as letras incompreensíveis. A não ser quando o vocalista subisse muito o volume de seu vocal, seus vocais soariam incompreensíveis – ou simplesmente não soariam. Uma pena, porque é uma voz com personalidade.
O show só começaria seu voo lisérgico pra valer no segundo tema, “Um Só”, pérola de Pedro Sorongo Santos, brilhante músico e compositor que havia caído no esquecimento até que gerações mais recentes revalorizaram seu único álbum, “Krishnanda” (1968). Na versão original, a canção é conduzida apenas por voz, percussão e metais. Trazer essa música para uma releitura onde a guitarra é protagonista foi um belo trabalho da Bike que, mesmo que privilegiando as seis cordas, conseguiu preservar a força percussiva da composição, com um belíssimo trabalho do baterista Daniel “Fumega” Dandas.
Só que enquanto a banda desfilava essa ótima versão, Tagore estava … desenhando. O músico sentou no chão e ficou fazendo ilustrações, um ato que se repetiria em várias outras músicas do set. Mais perto do fim do show, ele diria que essas obras, “autografadas e numeradas”, eram um presente para o público. Nas vezes em que deixaria o chão para reassumir microfone, partiria para uma performance quase sempre exagerada, estapeando várias vezes o próprio rosto, tremendo, saltando e fazendo aquele quatro com as pernas que o Ian Anderson adorava fazer enquanto tocava flauta no Jethro Tull.
Repito: Tagore é um bom vocalista e um compositor extremamente talentoso, mas seus exageros destoaram bastante da música compenetrada e da postura de palco tranquila da Bike. Quando vieram canções mais agitadas, como a sequência com “Lindo Sonho Delirante” (Fábio) e “Lugar do Caralho” (Júpíter Maçã), essa discrepância se tornava aguda. Em alguns momentos, parecia a banda certa com o frontman errado. Em outros, um artista solo desconectado de uma excelente banda.
Esse descompasso permearia boa parte da apresentação, mas, em momentos em que o tom suavizava um pouco, como na excelente recuperação de “Pareço Moderno” (Cérebro Eletrônico), dava pra ver quão mais interessante a combinação entre paulistas e pernambucano poderia ser (e teria sido melhor ainda se a voz de Tagore se fizesse ouvir). Ainda assim, não chegava a ser um problema que impedisse o público de curtir o show. Afinal, havia pérolas desencavadas (“Não Fale com Paredes”, superior à original do Módulo 1000) e ótimas versões de temas inescapáveis (“Nas paredes da Pedra Encantada os Segredos Talhados por Sumé”, de Lula Cortes e Zé Ramalho). Nelas, a Bike alternava a construção de muralhas de som de efeito mântrico com arranjos mais diretos, quase uma psicodelia “kraut punk”, se tal coisa é possível. E o final do show, com a mãntrica “Santa Cabeça”, composição própria do Bike, foi praticamente uma sacramentação da união desses dois mundos, apropriadamente emendando com “Cabeça”, preciosidade de Walter Franco.
Como toda experiência psicodélica, ela não teve seus efeitos vigentes apenas no “durante”. Nos dias seguintes, o show acompanharia o resenhista. É impossível assistir a uma apresentação dessas e não pensar no quão rico e variado é o repertório da psicodelia brasileira – e que é ainda melhor quando ele é usado como ponto de partida para novas criações, em vez de servir de molde para requentar as mesmas ideias. Também é inevitável pensar na omissão dos anos 1980: se a década não foi tão frutífera em termos de sons chapadas, pelo menos ela teve o Violeta de Outono, uma das bandas mais decididamente cancioneiras (no sentido pop do termo) do universo lisérgico brasileiro – e que abrasileirou a linguagem britânica do estilo, em vez de beber tanto na fonte norte-americana.
Porém, a impressão maior é que o encontro foi subaproveitado. Tagore é um artista interessante e capaz, e sua voz tem registros mais amplos e cheios de possibilidade que o dos dois vocalistas do Bike, os também guitarristas Julio Cavalcante e Diego Xavier. Com um som melhor, esse aspecto poderia ter sido ressaltado, talvez até amenizando a estranheza causada pelos excessos performáticos. Por outro lado, as reinvenções tão respeitosas quanto personalistas enfatizaram – como se ainda fosse necessário – o quanto a Bike é uma das bandas mais singulares e inventivas do rock brasileiro atual.
Mas tudo bem: esse foi um primeiro show conjunto. Ele pode ter sido um primeiro passo para novas colaborações entre os artistas, e certamente há espaço para isso tudo crescer e se tornar uma união mais amalgamada e menos o choque de dois mundos. E mesmo com suas falhas, foi um show que provou que existem muitos caminhos interessantes para a psicodelia brasileira: passado rico já existe, e dá para usar as lições dele para criar coisas novas e cheias de personalidade. Foi, definitivamente, uma viagem: não a melhor possível, mas uma que valeu ter vivido.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.