texto de Davi Caro
Tudo começa com um par de pés. Sem que se possa ver a quem pertencem, eles caminham, entre a determinação e a hesitação, em direção ao centro do palco, sob aplausos. Vêm a proposta: “Olá! Tenho uma fita que gostaria de tocar”, e a figura, que agora sabemos se tratar de um homem, coloca ao lado de si uma boombox com a casualidade de um construtor civil manejando suas ferramentas de trabalho. Do aparelho, passam a soar batidas sintetizadas, e os até então acanhados pés passam a acompanhar o ritmo. Sozinho em um palco vazio, com olhos arregalados que escancaram a dubiedade entre a estranheza calculada e o pânico desenfreado, ele é a última coisa que poderia passar por transgressora, e a forma como toca o violão que traz consigo não é tão diferente assim de um cantor e compositor de canções pop como já se viram muito por aí.
E as palavras, então, começam a ser despejadas aos que querem (e sabem) ouvir: uma voz idiossincrática em si entoa versos que intercalam paralelos entre ansiedade social e camas pegando fogo junto com partes em francês; o desajustado indivíduo passa a alternar entre danças quase desconexas e truncadas, como se lutando para desviar a atenção da própria inadequação em direção à esta mesma. “Você não precisa entender”? No fim, (quase) todos acabariam entendendo. Logo, o mesmo homem, com um quê alienígena, não estará mais sozinho num palco, que, em tempo, não estará mais vazio. E, ao longo de uma hora e meia, qualquer aparente falta de entrosamento com seu público se transformará num enervante e instigante tipo de intimidade. O terno que veste vai parecer aumentar de tamanho, ou talvez seja o próprio homem que diminua. Um pedestal de microfone, uma guitarra, um par de óculos, seus vários colegas, um abajur. Fazer sentido, como o espectador vê, nunca foi o objetivo, e nem os olhos mais atentos são preparados para o que estão para testemunhar.
Quando os quatro membros do Talking Heads – o vocalista e guitarrista David Byrne, a baixista e vocalista Tina Weymouth, o baterista Chris Frantz e o guitarrista e tecladista Jerry Harrison, necessariamente nesta ordem – subiram ao palco do Pantages Theater, em Nova York, ao longo de três noites de dezembro de 1983 sob as câmeras e o olhar atento do diretor Jonathan Demme, e amparados por um time de cinco outros músicos, ninguém imaginaria estar fazendo história. Mesmo depois de lançado, o resultante projeto filme-disco não deveria aparentar muito mais do que um ambicioso delírio, fruto da mente de um compositor que fez da inquietação seu ganha-pão. Quase quatro décadas depois de visto pela primeira vez nos cinemas, “Stop Making Sense” é, neste setembro de 2023, relançado após uma cuidadosa remasterização da produtora A24, e exibido em diversos cinemas IMAX ao redor do mundo. Mais do que oferecer novas possibilidades de imersão na produção e vir acompanhado de uma nova versão do disco (que, assim como o novo corte do longa, também conta com faixas não incluídas originalmente), a ocasião também marcou o reencontro dos quatro integrantes da banda, que se desintegrou em 1991 e que se reuniu pela última vez em 2002, quando foram incluídos no Rock & Roll Hall of Fame.
É fácil pensar no Talking Heads como o ícone multi-influente que a banda se tornou depois de sua dissolução e se esquecer que, em 1983, os quatro já eram considerados um ponto bastante fora da curva. Divulgando o disco que melhor escancarava seu flerte com o pop contemporâneo até aquele momento, “Speaking In Tongues” (do mesmo ano), a banda vinha de sucessivos lançamentos anteriores sob a batuta do produtor e colaborador Brian Eno, num período no qual fundiram o nervoso art-punk com o qual tomavam de assalto o clube CBGB com refinamentos rítmicos pesadamente influenciados pelo afrobeat de Fela Kuti, embalado em letras dadaístas e reflexões profundas demais sobre questões e elementos mundanos demais (não são todos que conseguem igualar o amor a um prédio em chamas e fazer o mínimo de sentido). Em 1980, haviam lançado o clássico-entre-clássicos “Remain In Light”, com o qual chegaram à MTV e que os fez passar a excursionar com uma banda expandida, a fim de conseguir reproduzir os arranjos feitos em estúdio com fidelidade ao mesmo tempo que podiam expandir os limites das gravações originais. Em outras palavras: em 1983, o Talking Heads não apenas era uma banda importante; com o fim do The Clash e a implosão do Police, eles talvez tenham se tornado a banda que mais importava, senão a única que verdadeiramente importava.
Trata-se de um clichê entre os fãs da banda dizer que muitas das versões ao vivo contidas em “Stop Making Sense” se tornaram os registros definitivos das respectivas canções, e isso não poderia estar mais correto. Para além da supracitada “Psycho Killer”, muitas das músicas interpretadas superam suas contrapartes de canções, e basta comparar “Slippery People” e “Life During Wartime” (de “Speaking” e “Fear of Music”, respectivamente) com suas primeiras gravações para entender isso. “Once In A Lifetime”, uma das mais nervosas e peculiares canções de um catálogo repleto destas, ganha em intensidade e mostra David Byrne se entregando completamente ao personagem que encarna na gravação.
É óbvia a importância de assistir ao filme para que se tenha melhor entendimento da magnitude da performance, da gradual adição de pessoas e efeitos a apresentação às eletrizantes participações dos membros convidados, que incluem Bernie Worrell (ex-tecladista do Parliament-Funkadelic), o percussionista Steve Scales e as backing vocals Ednah Holt e Lynn Mabry. As duas últimas brilham, tanto na película quanto no disco, na maluca performance de “Genius of Love”, do projeto Tom Tom Club – formado pelo casal Weymouth e Frantz no início da década – que também é a única na qual o frontman não participa. Ao mesmo tempo que impressiona pela segurança e pela simpatia (especialmente por parte da baixista, que traz em seus vocais uma leveza que quebra com a seriedade e a ambiguidade do restante do show), não é como se faltassem momentos para Byrne brilhar. Seja nas agitadas “Burning Down the House” e “Making Flippy Floppy”, ou na delicadeza de “Heaven”, ou na já citada “Once In A Lifetime” o fato é que o vocalista assume um papel determinante, simbolizado por suas interações em cena, ora por meio dos simétricos movimentos do próprio corpo, ora em quase-coreografias com seus companheiros, e, ocasionalmente, também com diferentes objetos.
Desses momentos, dois indubitavelmente se destacam: o abajur com o qual Byrne parece dançar sem que nunca o deixe tocar no chão vem a mente de 10 a cada 10 pessoas ao escutarem a dulcíssima “This Must Be The Place (Naive Melody)”, na qual o parco equilíbrio do item decorativo pode funcionar como uma metáfora para a corda bamba na qual o cantor caminha, se abrindo ao seu público somente o indispensável para que todos possam vê-lo como o sujeito estranho que canta sobre descobrir o amor como fala de encontrar um lugar novo para morar. É ao mesmo tempo o mais dúbio e mais sincero momento de todo o filme.
E dubiedade é o que não falta ao segundo dos pontos mais importantes do concerto: sim, o terno muitos números maior que o vocalista veste conforme a apresentação se encaminha para o fim é não apenas o signo mais associado a “Stop Making Sense”, como também é atualmente tido como um momento icônico da história do cinema. De acordo com Byrne, a concepção da vestimenta foi muito influenciada pelo kimonos da vertente de teatro Noh, que ele próprio havia visto em algumas apresentações no Japão. A utilização do adereço, durante a canção “Girlfriend Is Better” (que inclusive empresta, em sua letra, o título do longa), se tornou marca registrada do cantor, e passaria a ser referenciada múltiplas vezes em entrevistas ao longo dos anos seguintes, ainda que nunca mais utilizada de novo.
Vale citar também que a restauração da A24, que adapta o filme para a resolução 4K, ainda resgata dois números omitidos das edições em DVD e Blu-Ray, e encontrada somente no lançamento original em home video: a dobradinha “Big Business”/“I Zimbra”. A primeira, pinçada da trilha sonora feita por Byrne para o projeto de dança “The Catherine Wheel”, de Twyla Tharp (assim como “What A Day It Was”, essa presente na versão mais conhecida do álbum/filme), ganha em peso e dinamismo na interpretação do grupo principal do vocalista, enquanto a segunda, que abre “Fear of Music” (1979), é um plano de vôo das experiências com polirritmia e repetições oriundas da música nigeriana da qual os quatro, na época, já eram fãs declarados. A junção das duas canções faz jus a reputação do grupo como os descobridores do elo perdido entre a música pop dançante e dissertações cerebrais sobre a sociedade, fossem essas digressões explícitas desde seu título (“Business”) ou quase intransponíveis por excelência (“Zimbra”, adaptada de um poema do dadaísta Hugo Ball). Não à toa, foi mais ou menos nesta época que o jornal The New York Times cravou Byrne como “o rockstar para o homem pensante”.
Para além do terno e das coreografias, trata-se de um estigma associado não só ao frontman, bem como à sua banda pelos muitos anos seguintes. Apesar de não eclipsarem a reputação do Talking Heads, Tina Weymouth e Chris Frantz alcançaram o status de inovadores ao mesclarem suas pretensões, típicas de estudantes de arte, com o então crescente movimento hip-hop. Jerry Harrison, por sua vez, se contentou em permanecer na posição de produtor (tendo trabalhado com nomes que vão do No Doubt ao Crash Test Dummies). David Byrne chamou para si a tarefa de superar a si mesmo, e há quem diga que ele chegou perto com seu “American Utopia” (2018), que originou uma lucrativa turnê (onde todos os membros da extensa banda de Byrne, e inclusive o próprio, atuavam de pé por quase todo o espetáculo, constantemente em movimento e usando ternos no mínimo muito familiares – embora nos tamanhos certos) que o trouxe ao Brasil e ganhou registro de seu curto período na Broadway pelas mãos de ninguém menos do que Spike Lee; o mesmo foi responsável por conduzir a rodada de perguntas e respostas entre o público e os quatro ex-colegas de banda em sua segunda “reunião”.
Um detalhe interessante que pode escapar ao assistir a “Stop Making Sense” pela primeira vez é que, excetuando um breve momento no início do show, a platéia nunca é focalizada pelas câmeras. Ao longo dos anos, uma das muitas razões para que o filme viesse a se tornar o grande parâmetro em termos de filme-show tem a ver com sua capacidade de imersão, algo no qual o Talking Heads já se mostrava mais do que competente; o disco ao vivo “The Name of This Band Is Talking Heads”, de 1981, já servia como evidência do impacto do grupo ao vivo. Ainda que uma menção honrosa ser necessária para “The Last Waltz” (onde Martin Scorcese registrou ricamente a badalada última apresentação da The Band, de 1976), o fato é que “Stop Making Sense” talvez seja o melhor exemplo de sua categoria.
A banda deixaria de excursionar após o filme – a produção serviria como testamento de suas energéticas apresentações. Jonathan Demme ganharia um Oscar em 1992 por seu perturbador “O Silêncio dos Inocentes”, do ano anterior; o diretor faleceu em 2017, e ao que tudo indica, sua ausência foi bastante sentida no evento que promovia a nova versão – ainda que a reunião dos ex-integrantes ainda chame mais atenção. Mais do que isso, ver os quatro juntos contrasta tanto com a beleza do trabalho que fizeram enquanto em atividade conjunta, quanto com as amargas disputas e trocas de acusações que vieram dos dois lados nos últimos anos. À luz de seu legado, o fim da banda como foi realmente não faz muito sentido. Ainda que, mesmo antes de David Byrne subir ao palco nervoso e apertar o “play” em sua boombox, ou imortalizar uma peça de roupa grande demais, uma coisa já estivesse clara: o grande feito do Talking Heads sempre foi fazer prevalecer o sentido, ainda que aparentemente não exista nenhum – convidando a dançar e refletir simultaneamente como nenhum outro, antes ou depois.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo